domingo, 20 de novembro de 2022

ESPERANÇA? "QUEM PUDER QUE A TENHA".

A construção dos edifícios, piscinas e jardins, bem como de outras estruturas que o mundial de futebol em curso exigiu, tem provocado milhares de mortes entre os trabalhadores da vasta e indefinida classe designada por "mão-de-obra". Não sabemos (e talvez nunca saberemos) quantos são esses milhares. Circula um número, mas já li que, afinal, ele será, pelo menos, o dobro.

Considerem-se as causas das mortes: não foram devidas a um desastre natural, a uma doença súbita, enfim, a algo imprevisível e altamente destrutivo a que o ser humano não tenha possibilidade de deitar a mão. Foram as terríveis condições de trabalho - e a miséria que lhe anda associada - que levaram a vida a tanta gente. 

Será que isso interessa? Dirão uns que, mesmo que se tratasse de centenas de mortos, dezenas, um só... deveríamos inquietar-nos. Considerando a vida, e a dignidade que ela requer, como bem supremo, é para aí que somos conduzidos. 

Acontece que as ditas pessoas estão entre as mais pobres e anónimas dos países de origem, migrando para sobreviver, acrescentam o "ser-se  estrangeiro" à sua frágil condição. Não têm mais valor do que aquele que a produtividade dita, numa linha altamente organizada e controlada. Caindo uma, é de imediato substituída por outra, que muito provavelmente cairá... Este retrato, comprova-nos a História, é recorrente, estando bem visível no momento em múltiplas latitudes, não apenas nesta, de que muitos falam com justificada indignação, estando dispostos a considerá-la indigna do estado civilizacional que julgam ter sido alcançado.

Ora, tal estado civilizacional é deveras enganoso: deslumbrados que ficamos com a tecnologia - essa filha da ciência, que não raras vezes se desvia da linha de conduta da mãe -, esquecemo-nos da ética a que ela tem de estar submetida. Melhor, desprezamo-la, subvertemo-la, fazemos com ela o que nos der mais jeito para atendermos a interesses próprios ou corporativos, incluindo invocá-la para defender pontos de vista e acções que não têm defesa possível.

Uma tal atitude remete-nos para o estado de barbárie que nos vem dos confins dos tempos. Este mundial de futebol é apenas mais um ilustrativo exemplo disso mesmo. Enquanto morrerem pessoas nas condições que bem sabemos, que não podemos ignorar, e que acima recordei, são usados os mais sofisticados meios tecnológicos, nomeadamente na monitorização dos jogos, dos jogadores, da bola, etc. Esses e outros meios são engendrados e usados por técnicos e profissionais, que, para chegarem a um elevado nível de especialização, terão frequentado universidades, algumas delas de renome. A educação escolar não está, portanto, afastada da equação.

O que interessa notar neste ponto do raciocínio é a dissonância formada, não há como a negar. 

E aqui, consciente da importância que a tecnologia sempre teve para a humanidade, lembrei-me do físico, professor e poeta - entre outras coisas - que foi Rómulo de Carvalho. Assumindo o seu pseudónimo - António Gedeão - declarou em 1995, numa entrevista a Maria Augusta Silva:
“Os seres humanos continuam como eram há séculos e séculos (…). Permanecemos exactamente os mesmos. [Nem uma maior preparação académica propiciou melhorias?] Não creio. O homem de hoje faz tantas barbaridades como o das cavernas” [Terá as mesmas motivações?] Podem ser outras. A maneira de planear também mais cínica, possivelmente. Os outros eram mais impulsivos, agora tudo se faz com mais mediação. Mas o homem continua bárbaro, como há milénios. O nosso progresso é todo técnico e científico (…). Basta ver os episódios da História das várias nações, mesmo na idade contemporânea. (...) Verifica-se um grande progresso na ciência e na técnica, mas apenas aí. [Não existe esperança?] Quem puder que a tenha. Eu não tenho esperança numa melhoria social (…). A minha estrela polar é esse desejo inatingível de a humanidade melhorar nos sentimentos e na forma de actuar.”
Nesta dissonância que não sabemos, ou não queremos, encarar de frente porque isso seria, a diversos títulos, demasiado exigente, ou, mesmo insuportável, para nós, assumamos como modo de pensar colectivo e, portanto, também nosso, o dito por um presidente de um país europeu, democrático e humanista, perante pessoas desse mesmo país, por certo democratas e humanistas:
“(...) não respeita os direitos humanos (...) mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas..."
É que, bem vistas as coisas, quem consegue resistir ao "circo", que, no caso, assume a figura de futebol?
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A frase do presidente é tal como transcrita na imprensa (ver aqui, por exemplo): “O Qatar não respeita os direitos humanos. Toda a construção dos estádios e tal, mas, enfim, esqueçamos isto. É criticável, mas concentremo-nos na equipa. Começámos muito bem e terminámos em cheio”

As imagens usadas circulam na internet, não tendo conseguido identificar a sua fonte.

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