segunda-feira, 21 de novembro de 2022

OS PRINCÍPIOS DA EDUCAÇÃO : 2.ª PARTE

Segunda intervenção minha no debate on-line sobre educação realizado em 15/Junho/2020:

Mário Fortes –Tenho aqui uma que vai já diretamente para o Prof. Carlos Fiolhais, que é do Prof. Eduardo Leite: não obstante a importância da educação, tendo em mente a lição de Hannah Arendt, o homem sem consciência e moral, não estará, infelizmente, a prosperar nas sociedades modernas?

Carlos Fiolhais – Quando me pedem-me para comentar as possibilidades que podem acontecer no futuro, sei que corro sempre alguns riscos. Aliás qualquer pessoa que fala do futuro arrisca-se a errar, quer dizer, adivinhar o futuro é impossível. Nós não sabemos o que vai acontecer. Quem diria no final do ano passado que este ano estamos a viver a situação de pandemia? As pessoas, com base na pandemia, estão agora já a projetar cenários. Esses cenários são, em geral, desejos das próprias pessoas. Essa atitude é bastante natural. Nós projetamos aquilo que por que ansiamos, mas o certo é que ninguém sabe como será o mundo daqui a um ou dois anos e muito menos a dez ou vinte anos. Não fazemos ideia nenhuma. Apesar dessa incerteza ou mesmo por causa dessa incerteza, a educação escolar continua a ter um papel. E é um papel muito forte.

 Permitam-me que seja crítico de algum rumo deste mundo cuja economia, com a ajuda da técnica, se globalizou muito rapidamente. O dinheiro circula muito mais rapidamente do que as pessoas. Ganha-se, aliás, dinheiro só com a circulação de dinheiro, por vezes sem acrescentar nada, sem prestar quaisquer serviços: ganha-se dinheiro simplesmente ao movê-lo de um lado para o outro. A economia do mundo decorre sem grande controlo. Ora, a economia está relacionada com a educação e nem sempre da melhor maneira. Não é por acaso que o Banco Mundial, por exemplo, trata de problemas de educação, estabelece objetivos para a educação. Não é por acaso que as métricas (a Luísa falou da questão das classificações) comparativas da educação dos vários países sejam criadas pela OCDE – a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico – que anda a par com o Banco Mundial. Isto significa que, de uma maneira ou de outra, por vezes de maneiras muito subtis, a educação escolar pública – noto o carácter “público” – é colocada ao serviço da economia, podendo nós ter dúvidas acerca dos princípios de justiça social subjacentes. E podendo nós ter dúvidas se o desenvolvimento de que se fala é apenas para uns e não para todos. Vivemos num mundo ferido por profundas desigualdades. Daí que apareçam esses sentimentos da falta de consciência e moral.

Curioso, nesse processo de domínio da educação pela economia e é que os professores tenham perdido boa parte da autoridade que tinham. Uso aqui a expressão “autoridade” no sentido que Arendt lhe deu: ser “autor” por ter dado uma interpretação única ao conhecimento de que beneficiou, e que oferece aos mais jovens para que eles construam a sua “autoridade”. Os professores, dizia eu, têm de cumprir objetivos comportamentais, que são embrulhados em frases bonitas, onde consta destacada, por exemplo, a palavra “humanismo”. Por vezes não há nada de humanista nos objetivos que são determinados e que parecem estar afinados para excluir o pensamento abstrato, aquele pensamento que nos conduz ao que de melhor há na nossa condição humana. Esses objetivos, a que agora se chamam “competências transformadoras”, estão por todo o lado do mundo, incluindo em Portugal.

A estrutura pretensamente teórica que é invocada desvaloriza o conhecimento (a Luísa concordará comigo porque eu estou a concordar com ela), o que interessa já não é o saber, mas o fazer. Nessas competências – definidas de uma forma muito equívoca, de modo que ficamos sem saber o que realmente são –, os conhecimentos estão lá, mas como ingredientes práticos para resolver problemas do quotidiano, têm perdido a dignidade que tinham. Incluem ou remetem para as emoções, os afetos, o trabalho de grupo, a aprendizagem ativa... coisas que fazem um belo ramalhete, mas julgo que não serão relevantes sem um conhecimento sólido das ciências, das humanidades, das artes, da motricidade. Quando se fala, por exemplo, de passarinhos da Primavera, temos de ter uma ideia sobre aves e sobre estações do ano, o que não nos deve impedir de gozarmos o chilrear. E não estou apenas a falar de conhecimento científico. Por vezes, fala-se em passarinhos na Primavera sem conhecer o que a grande literatura já disse sobre isso. Por outras palavras, há um apagamento do saber em nome de outras coisas que não conseguimos perceber bem o que são, mas do que percebemos podemos conjeturar que não concorrem nem a bem dos mais jovens nem do mundo. Um responsável do PISA – Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes –, da OCDE, disse em Portugal, como diz noutros países que não é necessário dar conhecimento aos alunos, pois lhes bastará usar o Google, que tem respostas para tudo. A ideia é que agora está tudo nos telemóveis, está tudo nos computadores e, portanto, só temos de os consultar. Ora o Google é um grande «burro», não sabe nada, quer dizer, se eu quiser saber alguma coisa o Google poder-me-á ajudar, mas tenho primeiro de saber alguma coisa. Se eu não souber nada, o Google será absolutamente inútil. O Google não pode levantar as questões por mim, não pode antecipar nenhuma das minhas questões…

As orientações da OCDE estão cheias de metas, uma noção que tem muito a ver com a economia, à qual está subjacente a questão da produtividade. Trata-se, no fundo, de fazer uma escola – ou algo parecido com ela – que não pense nem leve a pensar. Os professores não são chamados a pensar e os alunos muito menos. Como é que os alunos vão, com essa escola, conseguir pensar?

Portanto, estamos perante perigos vários, e alguns deles estão relacionados com a globalização económica. Há aspetos positivos na globalização – partilho dos ideais do José Eduardo Franco sobre um melhor mundo global -, mas temos de encontrar, entre os diversos conceitos de globalização, o que está de acordo com os princípios éticos que assistem à educação. Agora a questão é como é que vamos afirmar esses ideais na vida, em particular, como é que vamos incorporá-los na escola? Voltando a Hannah Arendt – cuja vida, como a nossa, teve as suas contradições: sendo judia perseguida pelo nazismo teve um caso amoroso com Martin Heidegger, um reputado nazi (mas atenção, não deixou de ser um grande filósofo por ser nazi) – no ensaio que referi – A Crise da Educação – escreveu: «O papel da escola consiste em ensinar às crianças o que é o mundo e não lhes inculcar a arte de viver. Dado que o mundo é velho, sempre mais velho do que eles, o facto de aprender está inevitavelmente voltado para o passado, sem ter em consideração a proporção da nossa vida que se dedicará ao presente.» O que quer isto dizer? Nós falamos de futuro – é essa a tónica da educação – quando não sabemos nada do futuro. Isto não quer dizer que a escola negue a preparação para o futuro, efetivamente tem de a assegurar, e sabemos que, nesse futuro, seja ele o que for, precisamos de pessoas razoáveis, sensatas, dialogantes, que não tenham uma atitude rígida, dogmática, mas isso não significa que as tornemos mão-de-obra servil, não pensante. A escola devia ter o propósito iluminista, kantiano, de “ter o atrevimento de pensar”. Temos de ter o atrevimento de pensar a escola, a escola nos seus fundamentos e propósitos. A escola está, neste momento de globalização, ameaçada pelo grande perigo de afastar o pensamento; compete-nos evitar as suas consequências mais funestas.

Mário Fortes – Prof. Carlos Fiolhais, atrevo-me a formular mais uma questão depois daquilo que disse e da sua brilhante exposição: como é que seria para si a escola ideal?

Carlos Fiolhais – A escola, a educação que desde há milénios lhe está confiada, é um problema que temos de enfrentar. Não há uma solução para ele que seja imediata e definitiva. Há um princípio da escola, um propósito da escola, que eu considero intemporal, que é a garantia do humano. Os seres humanos constroem-se com a ajuda da escola. Os seres humanos não seriam os mesmos, não serão os mesmos sem a escola – eu, em particular, não seria o que sou se não tivesse andado na escola. Eu sou eu, claro, mas isso resulta em primeiro lugar dos meus pais (que me deram os genes), em segundo lugar dos meus professores (que me deram o conhecimento do mundo, que não estava nos genes) e só em terceiro lugar de mim próprio (que procurei o conhecimento do mundo). Para esse desafio que me lança, não encontro outra resposta além desta. Em cada momento histórico, temos de construir a escola que é melhor para construir o ser humano e para a odisseia da humanidade. Não consigo imaginar como será a escola de amanhã. E o que eu critiquei é o facto de algumas pessoas hoje quererem alinhar a escola por um projeto de sociedade a que chamam «Quarta Revolução Industrial», um conceito que é mais ou menos quimérico. Não digo que o mundo de amanhã não vai ser diferente. Claro que vai. Mas eu não sei quais vão ser as diferenças e a escola tem de ter guardiã da tradição que permite enfrentar o futuro. A escola tem de ser, eu vou arriscar dizer – espero que esta seleta audiência não me crucifique por dizer isso –, conservadora. Arendt disse isto e não foi bem vista nos Estados Unidos há seis décadas. Se a escola deixar de ser conservadora, deixará de cumprir a sua função essencial. A escola tem de dar o melhor do passado para termos um futuro melhor.

Mário Fortes- A pergunta foi provocatória...

Carlos Fiolhais – Na escola ideal vamos sempre colocar a questão de melhorar a escola. Daqui a dez anos vai-me colocar de novo essa questão e não haverá ainda uma solução, mas os princípios que estou agora a enunciar, os princípios de uma escola que seja uma garantia da história humana, poderão ser repetidos.

 

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