No Tratado sobre a tolerância: a propósito da morte de Jean Calas, publicado em 1763, o seu autor (François Marie Arouet, ou seja, Voltaire) partiu da injusta condenação e brutal execução de Jean Calas para dissertar sobre um princípio que nos é (ou devia ser) caro: a tolerância.
Formulado na Grécia Antiga, foi (re)elaborado, na Modernidade, nomeadamente, por John Locke (Carta sobre a tolerância, 1689) que, por certo Voltaire leu, e, mais recentemente, entre outros, por Karl Popper cujo ensaio Tolerância e responsabilidade intelectual (integrado no livro Em busca de um mundo melhor) é bem conhecido.
Pensando a (in)tolerância sob diferentes perspectivas, Voltaire incluiu um retorno a Atenas, a outra condenação à morte: a de Sócrates... Tão distante no tempo e tão presente no nosso horizonte.
"Sócrates, que mais se aproximou do conhecimento do Criador, sofreu punição por isso, dizem, e morreu mártir da Divindade; foi o único que os gregos fizeram morrer por suas opiniões (...). Os inimigos da tolerância não devem, em minha opinião, prevalecer-se do exemplo odioso dos juízos de Sócrates.
É evidente, aliás, que Sócrates foi vítima de um partido furioso animado contra ele. Fizera-se inimigo irreconciliável dos sofistas, oradores, poetas que ensinavam nas escolas, e mesmo de todos os preceptores encarregados dos filhos da elite. Ele próprio confessa, em seu discurso relatado por Platão, que ia de casa em casa provar a esses preceptores que não passavam de ignorantes. Tal conduta não era digna daquele que um oráculo havia declarado o mais sábio dos homens.
Lançaram-se contra ele um sacerdote e um conselheiro dos Quinhentos, que o acusaram; confesso que não sei precisamente de quê, vejo apenas algo vago na sua Apologia; atribui-se-lhe, de maneira geral, a acusação de inspirar aos jovens máximas contra a religião e o governo. É assim que procedem diariamente os caluniadores no mundo; mas um tribunal requer factos comprovados, pontos de acusação precisos e circunstanciados: é o que o processo de Sócrates não nos fornece, sabemos apenas que ele chegou a ter duzentos e vinte votos a favor. O tribunal dos Quinhentos possuía portanto duzentos e vinte filósofos. É muito; duvido que fossem encontrados alhures.
A maioria, enfim, decidiu pela cicuta; mas consideremos que os atenienses, caindo em si, abonariam os acusadores e os juízes; que Melito, o principal autor da sentença, foi condenado à morte por essa injustiça; que os outros foram banidos e que se ergueu um templo a Quinhentos. Jamais a filosofia foi tão bem vingada nem tão honrada.
Voltaire. Tratado sobre a tolerância. Martins Fontes, 2001O exemplo de Sócrates é, no fundo, o mais terrível argumento que posso citar sobre a intolerância. Os atenienses tinham um altar dedicado aos deuses estrangeiros, aos deuses que não podiam conhecer."
2 comentários:
Na parede de um balneário do Campo de Jogos da Fonte da Senhora (ABCD, Benedita), está uma frase de Voltaire que cito de memória: "A primeira lei da natureza é a tolerância pois o homem é feito de erros e injustiças...". A frase não é ingénua, afixaram-na no balneário do árbitro.
É a força das palavras, caro Paulo Costa. Não consigo localizar a frase nos livros de Voltaire que tenho, mas é bem provável que seja da sua lavra, sim. Traduz a ideia que o filósofo explorou de diversas maneiras e ao longo da vida.
Cumprimentos, MHDamião
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