domingo, 3 de junho de 2018

PORQUE NÃO PODEMOS DESISTIR DE PENSAR A EDUCAÇÃO ESCOLAR

Apontamento na sequência de um texto mais antigo (A voz dos alunos: questões de legitimidade e de possibilidade) e de um mais recente ("Nós é que sabemos" ou a desistência de pensar a educação escolar).

Por pressão da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), consolida-se, a um nível muito global, a ideia de que têm de ser os alunos a decidir o currículo escolar. Isto porque eles sabem bem o que querem aprender, para que querem aprender e como querem aprender. Professores, directores e, agora, políticos, devem seguir o que eles decidem no respeitante à sua própria educação formal.

Não é preciso aprofundar muito a reflexão para se perceber que a OCDE orienta com grande precisão a expressão dos alunos, levando-os a dizer o que quer que eles digam. Trata-se de uma forma (enganosa) de legitimar as "orientações" que previamente estabeleceu e que os países transformarão em políticas e medidas. 

Ainda que o exercício seja retórico, redundando na negação da própria voz dos alunos, consolida um modo de pensar inaceitável: que as decisões dos adultos respeitantes ao currículo, ou seja dos educadores, dependem da manifestação de vontade das crianças e dos jovens, ou seja dos educandos. Uma inversão que traduz demissão da responsabilidade de educar.

Em Portugal esse exercício tem tido particular destaque.

Em 2016, o Conselho Nacional de Educação fez a seguinte recomendação:
"que se ouçam os alunos, que tão esquecidos são, e se escute cuidadosamente o muito que têm para dizer e sugerir, em liberdade, em ordem à melhoria dos processos de ensino e de aprendizagem” (CNE, 2016, 18 - aqui).
Em 2017, o Ministério da Educação, através da Direcção-Geral da Educação,
no âmbito da discussão pública Currículo para o Século XXI auscultou as opiniões dos alunos (aquiaquiaqui)
Em 2018, o mesmo Ministério levou à sede da OCDE a maior delegação de alunos, tendo ficado bem claro que:
"Para a OCDE, os alunos não só têm razão como estão a apontar a direção certa aos decisores (aqui). Para se fazer face à demagogia, ao doutrinamento, à pressão e, em última instância, à ignorância, só há um caminho pensar 
Acredito, é mesmo uma questão de crença, que há professores e directores que não desistiram das suas responsabilidades curriculares, que sabem que as crianças e os jovens não se educam sozinhas nem uma às outras e porque chegadas hà pouco temo ao mundo estão num estado de devir, não sabem, não podem saber, que decisões as beneficiam e as prejudicam. 

Uso aqui a linha de pensamento da filosofa H. Arendt para recomendar dois textos em que, a partir dessa linha, se explica com grande pormenor, rigor e clareza o que acima enunciei.
A criança e o mundo, de Marcio Ferrari, e publicado em 2016. 
A crise da educação no contexto da crise política da modernidade, de Maria Rita César e André Duarte, e publicado em 2010.

5 comentários:

Anónimo disse...

Se os socialistas portugueses se gabam de terem feito do nosso sistema de ensino um dos mais avançados do mundo, em consonância com a nossa Constituição política republicana, com a adoção de reformas estruturantes como a da obrigatoriedade de frequentar a escola até aos dezoito anos de idade, porque não fazer do céu o limite na educação em Portugal, estendendo o ensino obrigatório até aos 67 anos de idade. O conceito existente de aprendizagem ao longo de toda a vida ganharia assim um novo fôlego em Portugal, reforçado no seu ideal com a força da lei obrigatória. Os possíveis conflitos geracionais abordados no artigo, entre alunos jovens e professores mais velhos, deixariam de existir porque, no novo sistema seria muito natural e frequente os professores serem muito mais novos do que os seus alunos sexagenários, por exemplo. Por outro lado, veríamos o problema do desemprego dos professores do liceu, da primária e dos jardins de infância resolvido, dado que todos estes profissionais passariam a ter o seu público-alvo alargado a todas as faixas etárias da população.
Em defesa da escola pública, inclusivamente obrigatória , é necessária a mobilização de todos os cidadãos, que se pode traduzir numa maior participação em fora de discussão de alto nível, como se verifica neste blogue.

Satish feito? disse...

Pelos relatórios de 2016/2017 sobre provas de aferição, conclui-se que os alunos não sabem situar Portugal na Europa (eu também não sei o que é que Portugal está a fazer na Europa), têm dificuldade em interiorizar o conceito de divisão, asfixiam na interpretação textual e redigem precariamente. No 2º ano de escolaridade não sabem saltar à corda. Isto tudo ao mais alto nível e muito à frente.

Anónimo disse...

Quem escreve assim, indo direta ao coração dos que sofrem com estes ataques desbragados à escola pública, não padece de gaguez e contribui decisivamente para aumentar o moral das tropas.
Todos seremos poucos para levarmos de vencida a batalha por uma escola pública em que os professores voltem a ser autorizados a ensinar e os alunos devam aprender, ao contrário do que é defendido por muitos especialistas da educação para quem o tempo, contado ao minuto, passado obrigatoriamente na escola, vale mais do que saber localizar Portugal no mapa ou saber distinguir evaporação de volatilização, desde que as múltiplas pressões exercidas sobre os professores acabem por resultar em notas positivas e muito altas para todos os alunos!
Muito obrigado!

Fernando Caldeira disse...

Para quem prefere ler ficção, em vez de ensaio, eu aconselharia O Deus das Moscas, de William Golding escrito em 1954.

Bucha disse...

Romance sobre a naturalidade do mal.
Se calhar somos mesmo naturalmente maus e violentos ou Moisés nunca teria escrito os 10 mandamentos que ninguém cumpre. Até mesmo os 11 satânicos já se tornam difíceis nas partes boas...

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