sexta-feira, 15 de junho de 2018

ALOCUÇÃO DO PROF. ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA NO DIA DE PORTUGAL


Com a devida vénia transcrevo a

ALOCUÇÃO DO PROF. ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA 
Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas – 10 de Junho 2018, Ponta Delgada


Ao aceitar o honroso convite do Senhor Presidente da República para vir aqui ocupar um lugar que tem sido preenchido por figuras nacionais para mim venerandas (estou a lembrar-me, por exemplo, de duas já desaparecidas – Jorge de Sena e Natália Correia – o primeiro, para além de todas as sabidas razões, pelo facto de ter vivido nos EUA, e a segunda por ser açoriana), sinto o peso da responsabilidade. Vou, todavia, evitar deixar-me impressionar por esse sentimento potencialmente inibidor, e assumir um papel de porta-voz de duas comunidades a que pertenço por ter sido por elas moldado ou formatado. Primeiro, a açoriana, onde vivi as primeiras duas décadas da minha vida, decididamente as mais marcantes para qualquer ser humano. Depois, a luso-americana, pois passei já cerca de 2/3 da minha existência, nada menos do que 46 anos, no outro lado do Atlântico. Aliás, desde o início interpretei como sendo precisamente isso o que de mim era esperado neste momento. Assim, não venho falar para açorianos nem para os portugueses da diáspora luso-americana, mas chamar para eles a atenção dos meus compatriotas portugueses e de todos os lusófilos. Hoje é o Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, e o Senhor Presidente da República quis colocar no palco duas componentes da pátria – a primeira, os Açores, parte integrante por direito; a segunda, sobretudo pela memória e pelo afeto.

A geografia marca-nos e a minha marcou-me sobremaneira, como fez aos meus patrícios ilhéus. Se geneticamente descendemos quase todos do Retângulo lusitano, com alguns aditamentos adventícios de proveniência variada, incluindo a flamenga, a nossa história insular moldou-nos em peso equivalente, como muito bem viu Vitorino Nemésio ao afirmar que para nós a geografia vale tanto como a história. Era necessário dar apoio às naus que os ventos e as correntes marítimas faziam aportar aqui na volta do largo, que obrigava os marinheiros a semanas e meses à míngua de água e alimentação fresca e por isso havia que, à sua chegada, atender às suas primeiras necessidades. Nessa altura pertenceu a Angra o papel central. Quer dizer, a nossa existência coletiva surgiu do imperativo de desempenharmos uma função vital no grande plano que hoje sabemos resultou na primeira globalização. Foi a nossa primeira razão de viver. Durante o domínio filipino, ainda servimos de entreposto para os navios de Espanha, confirmando esse papel de esteira e de serviço de apoio. Com o esvair-se da energia que nos levou à Índia e ao Japão, os açorianos começaram a sentir-se sem préstimo. Entretanto, porém, o Reino percebeu a urgência de mandar gente para o sul do Brasil. Lembrou-se então da nossa existência, acertadamente decidindo valer-se do excedente demográfico ilhéu, e enviando colonos a ocupar o terreno que os espanhóis, a partir do Uruguai, almejavam controlar. Essa foi a nossa primeira grande ponte para o outro lado do Atlântico, sobretudo para Santa Catarina e Rio Grande do Sul, na primeira metade do século XVIII, ponte que nos últimos tempos tem sido refortalecida, permitindo uma saudável circulação nos dois sentidos.

É ainda nesse mesmo século, agora já na segunda metade dele, que os barcos da baleação americana, por idênticas razões às que haviam levado os portugueses a usar estas ilhas como base de ligação transatlântica, começaram a aportá-las também, transformando-as em base vital de apoio, bem como em fonte preciosa de mão-de-obra. Os primeiros povoadores, que do interior de Portugal foram trazidos com a missão de cultivar as terras, de modo a se poder reabastecer as naus que ainda demorariam três semanas na viagem daqui para Lisboa, viveram sempre entregues ao cultivo do fertilíssimo solo que a natureza vulcânica lhes proporcionava. Parte dessa gente, tradicionalmente voltada para a terra, fez-se então marinheira nos barcos da baleação norte-americana, e aventurou-se pelas rotas do Atlântico Sul e do Pacífico até ao Alaska. Herman Melville, o grande escritor americano dessa epopeia, rendeu-se, registando no seu clássico Moby Dick que não se sabe porquê mas os ilhéus (açorianos, islandeses e cabo-verdianos) são os melhores baleeiros. Essa frase está hoje estampada numa sala do Museu da Baleação, em New Bedford, Massachusetts, que amanhã o Senhor Presidente da República e a sua comitiva visitarão, por ele constituir hoje um espaço simbólico que narra essa grande epopeia da primeira ligação açoriana àquela que hoje constitui a Décima Ilha dos Açores. Nos dois séculos seguintes, os açorianos rumaram quase sempre para as Américas, sobretudo a do norte, estabelecendo uma forte ligação hoje secular. Os que emigraram para o Sul deixaram mais fraco rasto, mas felizmente a sua memória começou a reacender-se de há meio século a esta parte. Durante muito tempo, o Brasil foi para nós a Terra dos Esquecidos. A América do Norte, pelo contrário, passou cedo a integrar o imaginário açoriano. (Tal como em Mau Tempo no Canal, de Vitorino Nemésio, a busca, nos anos Quatrocentos, de uma suposta décima ilha a norte dos Açores simbolizava, para a protagonista do romance, a procura de uma felicidade impossível, pois os açorianos, que na pele sentiram sempre duras privações e carências múltiplas, não acreditavam que as suas terras fossem as Ilhas Afortunadas, ou as da Felicidade, a Macaronésia de que falavam os gregos.) E foi assim que o sonho americano foi ganhando forma – as Califórnias perdidas de abundância do poema “A Ilha”, do poeta florentino Pedro da Silveira. Entretanto, passara já a ser a Horta, no Faial, o polo de ligação intercontinental.

O relacionamento foi-se intensificando quando, na época da navegação a vapor, os navios entre a Europa e a América aqui paravam, mas esse papel só passou a ser de novo vital quando foi preciso conectar por cabos submarinos a América do Norte à Europa e depois à África do Sul. Foi todavia durante a 1ª e 2ª Grandes Guerras que o reconhecimento da importância estratégica dos Açores reforçou fortemente esse nexo açoriano com a América, então de novo a partir da Terceira, mas também de Santa Maria, porque os aviões a hélice, da incipiente aviação comercial, necessitavam de um local de reabastecimento a meio do Atlântico. O último grande momento do sentimento da relevância do arquipélago surgiu quando se tomou consciência de que, num conflito não nuclear, a importância estratégica dos Açores era vital para os EUA e, consequentemente, para a Europa.

De então para cá, muito o mundo se alterou. Depois do 25 de abril adveio a União Europeia e a opção açoriana surgiu clara, apesar de momentos difíceis. Tudo acabou sendo colocado no seu devido lugar porque se afirmaram as raízes da personalidade cultural coletiva açoriana, forjada ao longo de 500 anos de isolamento e sujeição à fúria dos elementos, constantemente inconstantes, quando o Governo de Lisboa era longínquo, e só Deus poderia socorrer e segurar esta terra que vomitava lume e volta e meia tremia. Ultrapassou-se esquecimentos e abandonos e reforçou-se a conexão do continente português com as ilhas, agora com novo estatuto, o autonómico.

No fundo, porém, os Açores têm sido uma pirâmide cuja parte superior da camada socioeconómica se inclinou para Lisboa (era no Continente que se formava a elite local), enquanto a base, aliás de longe muitíssimo maior em termos absolutos, era para a América que se voltava, mesmo no que concerne a população que nunca chegou a sair do arquipélago. Tanto pesou o universo norte-americano no imaginário açórico que um dia, ao perguntarem a um homem do Pico se já tinha ido à América, ele respondeu: Pessoalmente nunca fui.

(Esta estória não é inventada. Partilho-a aqui por ser uma realidade significativa na história destas ilhas.)

Interpelados por essas duas grandes forças magnéticas, a das raízes culturais no sentido da Europa e a da gratidão das classes menos privilegiadas pela satisfação das suas necessidades básicas puxando para a América (a partir dos anos cinquenta temos de passar a falar de América do Norte de modo a incluir o Canadá), os Açores forjaram uma personalidade colectiva, que nos habituámos a referir como “identidade”, com tanto de profundo como fundo é o mar que rodeia estas ilhas. Nada abala essa solidez, por mais que se queira tentar. E desafios não têm faltado. Momentos houve mesmo em que, tendo a metrópole vacilado, estas minúsculas ilhas fincaram pé nas profundezas da placa oceânica e dispuseram-se a intervir no todo nacional. São realidades difíceis de se compreender, mas impossíveis de se não constatar. E nunca faltaram sequer os contributos ao mais alto nível, sempre que a pátria precisou de um safanão. Antero de Quental é certamente o exemplo mais significativo, porém está longe de ser um caso isolado.

Foi, aliás, Antero quem mais luminosamente alertou o país para a sua filiação europeia. Portugal pode bem estar no extremo do continente europeu, pronto a lançar-se ao Atlântico, como precisamente fez no passado, todavia não deixa de estar colado a essa terra firma. Afortunadamente, os ventos da história (e, para nós, sobretudo o 25 de Abril) permitiram o regresso à matriz europeia. Por isso hoje Portugal é – e oxalá assim permaneça por séculos – um bastião do espírito europeu. Felizmente, a Europa conseguiu ultrapassar diferenças milenares, esquecer guerras passadas, e congregar nações de falas diversas em torno de um conjunto de ideais, ao forjar uma União, quase à semelhança da união dos estados americanos, como se o modelo americano tivesse nesse aspeto representado o pagamento de uma dívida de gratidão à Europa. E isso porque, contrariamente ao que muitos europeus estão dispostos a admitir, os Estados Unidos são uma ideia europeia decidida a fazer-se realidade. A modernidade euro-americana foi erguida em torno de um conjunto de valores, noutros tempos referidos como Luzes, ou outros nomes quejandos, consoante as diversas línguas que compõem a complexa manta do tecido europeu. Esses, que têm de prevalecer e será tragicamente prejudicial à Europa, ao Ocidente (que inclui as Américas), e ao mundo em geral, se nos afastarmos deles, ou deixarmos de os ter como ideais norteadores das nossas decisões coletivas. Tais valores são a liberdade, a justiça, o progresso, a verdade (que, na sua vertente natural, significa ciência) e a tolerância. Podem ser frágeis, voláteis, imprecisos, podem não constituir regras sólidas, porque por natureza não são fixos, dependem das circunstâncias, dos desejos, interesses e disposições de cada coletividade, da sua vontade de agir e intervir, de uma miríade de fatores, mas são ideais inultrapassáveis e indescartáveis. Como a mítica décima ilha de Fernão Dulmo, podem não ser nunca atingíveis; têm, porém, de ser um alvo, um ponto de mira para onde devem convergir todos os nossos objetivos e esforços. A Europa não pode vacilar. A Europa não pode abdicar do seu papel. Agora, cada vez mais depurada das mazelas que historicamente criou, ou ajudou a criar, e a que nós portugueses não fomos alheios, porque nada humano nos foi alheio (muito embora nos anos da minha formação e na de tantos que me escutam se tivesse procurado convencer-me do contrário), a única saída é olharmos para o futuro, se queremos tê-lo. Reconheço, ainda assim, que uma coisa é o que na prática é possível conseguir-se, e outra o que almejamos atingir. Por isso, prefiro ater-me aqui ao domínio dos possíveis e não ao do já realizado. Fixarmo-nos numa identidade do passado que nos cola ao que fomos é um erro insustentável; há, portanto, que agarrar-nos a outro conceito de identidade, aquele que nos permite unir-nos em torno de um futuro a construir e a deixar como herança aos nossos filhos.

Hoje, infelizmente, as imagens de marca das cinzentas nuvens açorianas pairam densas sobre o Ocidente, e os ditos valores parecem gerar suspeitas e mesmo descrenças. Valham-nos os países com instituições fortes capazes de continuarem a defendê-los. No nosso caso português, a sua força não vem das instituições criadas na modernidade. Mas, felizmente, temos outras ancestrais. Há que mantê-las sólidas, se bem que abertas ao novo, aos tempos que passarão por cima de nós, e nos cilindrarão se não estivermos atentos e abertos a eles e ao que nos trazem.

É altura de regressarmos a estas terras, as dos Açores e da sua décima ilha, este ano palco da comemoração do Dia de Portugal. Eu, para explicar a americanos o porquê da comoção sentida pela comunidade luso-americana nestas festividades, tenho-lhes dito ser esta data equivalente ao 4th of July, acrescentando que, desta vez é como se o Presidente dos EUA tivesse decidido celebrá-la no Hawaii.

Tenho plena consciência de estar a falar de fora. Ouço com frequência esta crítica, tanto de açorianos como de continentais. Paradigmática, e hoje muito corrente nos Açores, é a afirmação do meu saudoso amigo e escritor Daniel de Sá de que emigrar é a pior maneira de se ficar nos Açores. Respondi-lhe que, se calhar, era a melhor. Na verdade, são dois modos de estar nestas ilhas e ambos proporcionam visões diferentes, porque de ângulos díspares. Mas não posso deixar de falar do meu, que é de fora. Por mais que de dentro me sinta. E eu sinto-me.

Por isso, tendo eu ouvido em 1970 um luso-americano, numa rua de Fall River, recomendar-me que falasse baixinho para ninguém à nossa volta perceber que éramos portugueses, terei necessariamente de fazer notar a longa caminhada que entretanto fizemos. Se bem que sem perder nunca o gosto de se sentir portuguesa, a nossa comunidade, então humilde e envergonhada, cheia do cuidado de não ser percebida como tal, passou a assumir-se como integrada de modo descomplexado no tecido americano. Foi longo, mas sólido, o seu percurso em direção ao tempo desafogado em que hoje vive, desinibida, a ponto de se sentir em casa num espaço intermédio entre a América e os Açores. Em tempos chamei L(USA)lândia a esse espaço – uma ilha portuguesa rodeada de América por todos os lados. Hoje não é mais assim. As fronteiras diluíram-se e ela sente-se tão confortável na América como na sua relação com os Açores e Portugal. Nem os jovens luso-americanos hoje seriam capazes de me entender se eu lhes contasse que, também na década de 70, um bem sucedido luso-americano de nome americanizado me garantiu que com o meu sobrenome terminado em vogal (como a maioria dos nomes dos europeus do sul), eu nunca iria a lado nenhum. Hoje gostaria que ele fosse vivo para lhe perguntar se sabia soletrar Obama. Está aí o Nobel Craig Mello a contradizer a sua ultrapassada teoria. Aliás, longe de ser caso único, muito embora sobrenomes como os de Ernest Moniz, ministro no Gabinete de Obama, e John Dos Passos, esse de origem madeirense, terminem em consoante. (No folclore americano, o apelido do músico John Phillip Sousa era explicado como sendo de alguém cuja origem étnica era desconhecida e que, por ter escrito marchas muito patrióticas deram-lhe um sobrenome que é uma abreviatura de Son Of USA).

Não posso deixar de me regozijar com a dita caminhada que temos percorrido. Nunca na minha vida tinha imaginado que Portugal (sobretudo Lisboa, Porto e Açores) seria um dia tão frequente e encomiasticamente referidos nos media anglo-americanos. De repente, o Portugal tradicionalmente olhado de soslaio pela vanguarda da modernidade que nos precedeu (depois – não esqueçamos – de termos nós aberto espaço para ela em Quatrocentos e Quinhentos) é agora redescoberto como um oásis, como se a tal ilha da Felicidade se tivesse tornado real e encalhasse no litoral europeu mais ocidental. Os portugueses, que sempre gostaram de se lamentar e parecem por vezes não conseguir saborear o que têm, poderão ver na actual invasão mais uma razão de queixa.

* * *

Para respirarmos um pouco, interrompo para uma estória a propósito:

Um cientista social fazia um inquérito junto de portugueses que viveram nos anos antes do 25 de Abril e interpelou um entrevistado: Como era a sua vida naquele tempo? O homem respondeu: Não me podia queixar. Então entrevistador pergunta: E agora, depois do 25 de abril, como se sente? Resposta pronta: Bom, agora eu posso queixar-me.

Não estou longe de terminar. Tenho a noção clara de estar a demorar-me um pouco, todavia obtive a tolerância do Senhor Presidente da República. Na tradição do que tem sido feito neste dia, cabia-me falar também logo em Boston. No entanto disse ao Senhor Presidente que nos EUA a comunidade portuguesa não me quer ouvir a mim, mas a ele. Então optei por consolidar aqui as duas intervenções previstas pelo Senhor Presidente. Serei, porém, mais breve do que se falasse nas duas ocasiões.)

* * *

Lá de fora, nós sentimos como um afago todo este inusitado interesse por Portugal e pelos Açores em particular. E bem gostaríamos que ele fosse mais do que apenas uma descoberta de Portugal como paraíso de férias e aposentação. Queremos o reconhecimento de um Portugal que abriu rotas para as mais diversas partes do planeta, e agora bem poderá reassumir esse seu papel de rampa de saída de pontes sobre o Atlântico. Transformado em país moderno e aberto, por enquanto alheio aos grandes conflitos que assolam outras partes do globo, o nosso jardim à beira-mar plantado talvez possa constituir esse espaço privilegiado. Talvez se revele uma ágora grega de encontro de culturas, um polo dinamizador a fortalecer a ligação entre a Europa e a América, utilizando os Açores como trampolim – papel desempenhado pelo arquipélago ao longo de meio milénio. Se o debate sobre os mares atualmente em curso reverter a nosso favor, bem poderemos ver a superfície dos Açores alargada de modo exponencial, e estas ilhas, sempre lugar de pouca terra e muito mar, passarem a ser uma espécie de mapa, um mapa azul, sem os problemas do antigamente chamado mapa cor-de-rosa, antes, ao contrário, de horizontes largos e promissores. Então o oceano envolvente passará a verdadeiro Rio Atlântico.

Não tenho ilusões sobre o português como língua franca, porque esse seu tempo passou, mas vejo ainda assim um lugar para ela. Bom seria que em português nos entendêssemos com os outros países lusófonos, sobretudo os atlânticos, e conseguíssemos ultrapassar preconceitos acumulados ao longo dos séculos, muitas vezes por culpa nossa, pois tanto fomos descobridores como colonizadores e subjugadores. Os tempos são outros e está no próprio interesse de todos nós reunirmo-nos, porque poderemos constituir uma força e uma voz. Não será necessário embarcarmos na preconizada jangada de pedra de Saramago. Podemos continuar fixados nesta geografia onde hoje estamos, e servir novamente de elo de ligação, permitindo a cada país lusófono que segure os seus próprios interesses e descubra a importância da unidade, de modo a não acabarmos todos dominados pelos gigantes mundiais de hoje, sobretudo o anglófono. E aqui de novo a presença açoriana nos EUA pode entrar como um pilar nessa rede de pontes.

Um dia, no início de um ano letivo, entrou no meu gabinete na Brown um jovem com cara de indiano. Falando português com sotaque brasileiro, interpelou-me em tom interrogativo mas algo frustrado: Nasci em Goa. Em 1961, com a invasão da União Indiana, a minha família emigrou para Moçambique. Criança que era, não entendi nada. Em 1975, com a independência de Moçambique, deu-se nova fuga, mas para o Brasil. Eram já três continentes e eu estranhamente sempre num universo português. Achei que bastava, que deveria fugir, e quis fazer uma pós-graduação numa universidade americana. Cheguei ontem a Providence; esta manhã, ao abrir a janela do meu quarto, ouvi falar português na rua. Pensando que estava a sonhar, debrucei-me e deparei com um grupo de homens fumando e de facto falando português. Perguntei como era possível eu viver em quatro continentes e não me libertar do espaço português. Um deles, quando soube que eu vinha estudar para a Brown, recomendou que eu viesse ter com você e pedisse para explicar pra mim como é que isso é possível.

Tal como esse jovem goês/moçambicano e brasileiro, é inevitável a rede em que todos crescemos. Não é a língua que nos molda, como muitas vezes se repete, mas é ela que delimita as malhas das redes em que nos movemos. Esse é outro dado incontornável que os países lusófonos deveriam considerar seriamente. Nada disto tem a ver com neocolonialismo; quando muito, terá a ver com o desejo, ou a necessidade, de se evitar o colonialismo do mundo anglófono sobre nós. Esta é mais uma visão de fora, eu sei, mas impossível não notá-la e lembrá-la aos de dentro.

Não quero minimizar a importância da língua. É ela que nos leva mais fundo nas idas e voltas permitidas por este molho de afetos que nos proporciona a cultura, a grande força que nos une – e refiro-me à cultura no sentido latino, a do todo resultante da intervenção dos seres humanos na natureza. É a nossa e, por ser nossa, é mais doce do que as outras, como eu percebi uma vez quando de mim se veio despedir um emigrante de S. Jorge que, após uma temporada de trabalho duro na América, regressava à sua paradisíaca ilha. Dizia-me ele: Antes de vir para a América, vivi sete anos em França, mas nunca consegui aprender nada de francês. Dez anos na América ainda foi pior porque o meu ouvido era avesso ao inglês. Não sei porquê, mas o português caiu-me bem.

Se não me tivesse alongado já demasiado, terminaria lendo o escrito, meio em português meio em inglês, de uma aluna da escola portuguesa de East Providence, Rhode Island, onde tem como professora uma luso-americana que um dia nos apareceu na Brown dizendo que sempre quisera estudar português para poder conversar com a avó. Hoje fala e escreve fluentemente a nossa língua, além de a lecionar. Do precioso escrito dessa sua aluna, a Camilla Watts, citarei apenas a frase My avós house is my beautiful haven. A casa dos meus avós é o meu lindo aconchego. Essa casa é, afinal, uma das milhentas bases portuguesas espalhadas pela América, da Costa Leste (New Jersey incluída) até à Califórnia e hoje até a Flórida. E, cada vez, mais muitos destes jovens querem reatar a sua ligação com Portugal. O caso mais recente na minha experiência pessoal foi o de um sobrinho meu, nado nos EUA, que, precisamente quando eu escrevia este texto, felicíssimo, me comunicou ter obtido a cidadania portuguesa para si e para a filha.

Tudo o que disse acaba afinal apenas validando a magnífica intuição do nosso muito estimado Presidente da República, aqui simbolicamente representando uma cultura secular de dentro e fora de muros europeus, ao decidir celebrar este Dia de Portugal num espaço alargado, o mapa azul português voltado para a sua vocação natural: o mar – o Atlântico e o seu além. Deste lado ilhéu e do lado de lá do rio Atlântico, milhares de portugueses rejubilam, como o Senhor Presidente testemunhará amanhã com os seus próprios olhos. Tivesse tempo bastante e ainda testemunharia mais, porque só vai chegar à América de baixo. Há ainda a “de cima”, como se diz na Califórnia. E o Hawaii. É que agora não se trata de se mais mundos houvera lá chegara, do verso de Camões, mas se mais tempo houvera, mais portugueses encontraria. Daqui dos Açores, esse espaço para Ocidente vislumbra-se melhor. É vasto, aberto e cheio de promessas e esperanças. Saibamos nós torná-las realidade.

ONÉSIMO TEOTÓNIO ALMEIDA

1 comentário:

Anónimo disse...

Sr. Fiolhais tenha cuidado com as vénias pois pode ficar com um problema "venal" nas costas e aí passa para o futebol clube do choradinho ADSE do outro articulista que costuma pulular por estas bandas

35.º (E ÚLTIMO) POSTAL DE NATAL DE JORGE PAIVA: "AMBIENTE E DESILUSÃO"

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