domingo, 15 de junho de 2025

A "VOZ DOS ALUNOS" QUE (NÃO) QUEREMOS CONHECER

Uma iniciativa do Ministério da Educação designada por A Voz dos Alunos, surgida na década passada, teve dois momentos altos: a Conferência Currículo para o Século XXI: A Voz dos Alunos, em 2016, e o Dia do Perfil do Aluno, em 2018. A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), que, no seu projeto para o horizonte 2030, destaca a student agency, louvou-a muitíssimo e deu-lhe visibilidade em Paris. 

O consenso pareceu-me, à altura, generalizado (ver aqui, aqui, aqui): a opinião livre dos alunos era dita como nada menos do que crucial para renovar as orientações para a educação no mundo e para aferir a legislação nacional. O grande entusiasta da iniciativa foi um secretário de estado da educação que se tornou ministro da pasta. As escolas aderiram e puseram-na em marcha, a comunicação social transmitiu-a sem fazer perguntas incómodas e a academia não lhe prestou grande atenção.

Nesta década, o Conselho Nacional de Educação publicou, em 2021, uma recomendação com o título A voz das crianças e dos jovens na educação escolar e, no site da Direção-Geral da Educação, vejo anunciada a 2.ª edição do Projeto Voz dos Alunos, que terá decorrido entre finais de Novembro de 2024 e Maio de 2025. A livre exposição de ideias e debate de opiniões mantêm-se como pressuposto básico.

Acontece que o referido secretário de estado e, depois, ministro publicou recentemente um longo artigo no jornal Expresso (ver aqui, está em acesso aberto), no qual se mostra apreensivo, indignado com opiniões que alunos do segundo ciclo do ensino básico expõem numa prova de avaliação nacional, alegando serem influenciadas por um certo clima político que se adensa no país,

Passando por cima da questão delicada que é a revelação de uma pergunta constante nessa prova bem como do uso de respostas de alunos sem o devido consentimento, e não podendo deixar de reconhecer que as transcrições são, de facto, muito preocupantes, a verdade é que "dar voz" aos alunos sem delimitação de barreiras ou estabelecimento de regras (barreiras e regras académicas, entenda-se) não é, ao contrário do que possa parecer, um procedimento educativo; é, realmente, o contrário pois faz passar a mensagem de que tudo se pode dizer no espaço público e, mais, tudo o que se diz tem o mesmo valor e legitimidade.

A solicitação da opinião dos alunos, sem mais, porque destacada em documentos curriculares, incluindo manuais, e solicitada em provas de avaliação passará, presumo, para o ethos pedagógico. Tenho visto, nesses documentos e provas, tornar-se abundante e soberana, valerá para justificar tudo o que os alunos digam - pois se é opinião... -, mesmo na ignorância ou negação do conhecimento que deveriam ser levados a aprender na escola. 

Deduzo que, no caso, nem haveria conhecimento concreto a avaliar pois a pergunta em causa seria um "apelo à elaboração de um texto narrativo e à criatividade dos alunos". E eles (ou alguns deles) "criaram", que é como quem diz, reproduziram ipsis verbis o que o "contexto social" e as "redes sociais" lhes incutem ininterruptamente, sem qualquer respeito pela sua condição de menores, com direito a serem educados. E é isso que se sobrepõe ao que a escola ensina ou tem obrigação de ensinar. 

Há, sem dúvida, um mérito no artigo em causa: levar-nos a indagar a efetiva importância da escola neste preciso momento. De modo mais claro, a importância que tem na formação humanista, tão destacada no Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória.

4 comentários:

Anónimo disse...

Estimada Helena Damião, acaba um colega de Tomar, João Barroca, de me dar a conhecer a barbaridade que revela. Na verdade, estarrece a mediocridade dada como exemplo. Foi nisto que se transformou a escola com a estreita cumplicidade de professores que abandonaram as suas convicções, transformando-as em resignação e obediência. Percebo agora muita coisa que se passa na Escola, nomeadamente no 2.º ciclo, e sobre isso irei escrever, agradecendo-lhe sobremaneira esta triste e terrífica notícia! Já andámos mais longe de um dia voltar ao geocentrismo!... Um forte abraço Maria do Carmo Vieira

Anónimo disse...

A maioria dos professores demitiram-se das suas funções, mesmo quando continuam a fazer figura de corpo presente, perante os seus alunos, em contexto de sala de aula. Os outros professores, a minoria, não sabem que se demitiram porque, infelizmente, nem sabem o que fazem!
Há cerca de meia dúzia de anos fui corretor de uma prova de aferição do 8.º ano de escolaridade. No meio da catástrofe de respostas absurdas, que classifiquei com zero pontos, respigo o caso da prova de uma rapariga que colide de frente com a importância suprema atribuída à "voz dos alunos", no sentido de que agora é a "vez dos alunos" determinarem o que querem aprender, subalternizando o que os professores pretendam ensinar. A situação é análoga à de um conhecido primeiro-ministro que, depois de arruinar o sistema educativo do seu país, recusou, no âmbito de um processo judicial, ser julgado pelo juiz que o queria julgar! Voltando à prova de aferição, recordo que a aluna praticamente não respondeu a nada, mas, numa dada alínea escreveu, com todos os pontos nos is, que não precisava das físico-químicas para nada, o seu objetivo era mais alto, queria ir para Direito na Universidade. Para ela a prova de aferição era uma brincadeira inconsequente. Mais adiante, respondendo a outra pergunta, ironizava com a minha persistência de ainda ali estar a corrigir a sua prova, aconselhando-me a ir descansar.
As crianças e os jovens são, de um modo geral, muito arteiros!
Não são tão pobrezinhos nem tão ingénuos como alguns ministros da educação nos querem fazer crer!

Helena Damião disse...

Estimado Leitor, não é por acaso que, por exemplo, Gert Biesta, insiste no dever que os professores, como classe profissional, têm de ensinar. E, sendo-lhe negada essa função, pelo menos por palavras, precisam de resistir à ideia peregrina de que os alunos aprendem sozinhos (learnification). O exemplo que apresenta ilustra bem o desapego ostensivo pela aprendizagem quando não se vê utilidade imediata nela. Cumprimentos, MHDamião

Helena Damião disse...

Estimada Carmo Vieira, o exemplo que apresenta é bem real, como é o do criacionismo ou dos vários negacionismos. O criacionismo, por exemplo, já marcou presença na Biologia do Ensino Secundário (https://dererummundi.blogspot.com/2010/01/teoria-e-crenca.html - ver tópico 6), mas julgo ter sido superada. Quando se diz que "o aluno constrói o seu próprio conhecimento/os seus próprios valores", entre as várias interpretações que a declaração pode ter (e tem mesmo várias), não se pode excluir a de ser o construir "conhecimento" e "valores" que negam o conhecimento reconhecido como verdadeiro e os valores reconhecidos como eticamente defensáveis. O abraço de sempre, MHDamião

"O QUE PASSARÁ A SER HUMANO?"

... muitas dessas vozes acolchoadas no medo do que por atavismo ou negligência não entendem ou que por iniquidade se recusam entender (...)....