segunda-feira, 27 de novembro de 2017

A CIÊNCIA E OS SEUS INIMIGOS


Introdução ao meu mais recente livro, escrito com David Marçal, "A Ciência e os seus Inimigos" (extracto publicado no último Jornal de Letras):

Vivemos num tempo indiscutivelmente marcado pela ciência: praticamente toda a nossa vida depende do conhecimento científico, através da tecnologia que dele bebe. Hoje é possível fazer um telefonema com imagem para qualquer sítio do planeta. Servimo‑nos de fontes de energia renováveis como o vento e o sol. Usamos materiais com propriedades extraordinárias feitos à medida de necessidades específicas. Tomamos antibióticos que curam rotineiramente infecções que ao longo da história foram fatais. Por causa das vacinas que as previnem, há doenças de que já nem nos lembramos. Sujeitamo‑nos, se necessário, a complexos transplantes de órgãos que nos podem salvar a vida. Foram anos e anos de desenvolvimento da ciência e da tecnologia que permitiram as nossas actuais condições de vida. E, previsivelmente, será a continuação desse esforço que nos permitirá uma vida ainda mais longa e melhor.

No entanto, e paradoxalmente, vivemos num mundo onde a ciência tem cada vez mais inimigos, alguns deles em degraus altos da escada do poder. Um exemplo emblemático foi a eleição de Donald Trump para a presidência dos Estados Unidos no final de 2016, apesar de o seu discurso ser anticientífico. Para além de uma aversão estrita à visão da ciência — aos factos da ciência e ao método científico que os permite apurar, como é bem ilustrado pelas suas posições sobre o aquecimento global, as vacinas e os vírus —, parece ter uma aversão à própria noção de realidade e ao pensamento racional. Fala‑se hoje de «factos alternativos» e de «pós‑verdade » simplesmente para negar a verificação da realidade e das consequências racionais que se podem assumir com base nessa verificação. Esta mundividência — chegada a um alto cume da política — encontra ressonâncias em posisões ditas pós‑modernas, há muito aparecidas, que são críticas da ciência. Segundo elas, a ciência não passa do linguajar dos cientistas, sendo essa forma de comunicação tão útil ou inútil como outra qualquer forma de comunicação numa qualquer outra comunidade. A ciência resultaria de um consenso num grupo, e seria tão legítima como outros consensos noutros grupos. Por outras palavras, a realidade não existiria, assim como não existiria um método privilegiado para a representar e comunicar. Esta é evidentemente uma visão totalitária, que, como a História ensina, pode conduzir às maiores desgraças. Não é a primeira vez que a ciência é negada desde que existe, mas bastariam os exemplos extremos dos regimes de Hitler e de Estaline, respectivamente na Alemanha e na União Soviética, para nos lembrar dos perigos das posições anti‑científicas. Se as provas não interessam, ficamos reféns da autoridade da hierarquia, justificada por alegadas necessidades conjunturais, auto‑investidas de noções enviesadas de um qualquer «bem maior» e que se sobrepõe à realidade. Se descartarmos o pensamento racional, ficamos no pantanoso domínio dos mitos e das ideologias, onde podemos soçobrar.

É preciso falar hoje dos inimigos da ciência, os quais, como procuraremos mostrar, são dos mais variados tipos, não se encontrando adstritos a correntes políticas. Começaremos por falar dos ditadores como inimigos da ciência — uma vez que ciência e liberdade estão intimamente associados — para depois falarmos dos ignorantes (Trump é um ignorante e não um ditador, dado o país onde vive; noutro ambiente sabe‑se lá o que seria), dos fundamentalistas (discutiremos a questão das relações por vezes tensas entre ciência e religião), dos vendilhões (aqueles que não hesitam em falsificar a ciência se vêem uma oportunidade de negócio), dos exploradores do medo (que agitam papões que servem para alimentar os seus interesses), dos obscurantistas (que semeiam a confusão, por a preferirem à claridade que os ofuscaria) e, finalmente, dos cientistas tresmalhados (sim, a comunidade científica tem dentro dela, quais cavalos de Tróia, alguns dos seus inimigos). Claro que alguns inimigos da ciência podem incluir‑se em várias categorias, pois estas não são exclusivas: pode‑se ser ignorante e fundamentalista, pode‑se ser vendilhão e explorador do medo, só para dar exemplos de duas combinações possíveis. Há outras.

 Buscámos inspiração para o nosso título na obra maior do filósofo britânico nascido na Áustria, Karl Popper, A Sociedade Aberta e os Seus Inimigos, por encontrarmos a ligação, que o próprio Popper descortina, entre ciência e sociedade aberta, ou democracia liberal, ou simplesmente democracia. A ciência, como bem assinalou Popper, é um meio muito eficaz de encontrarmos e ultrapassarmos erros, tal como a democracia é um meio de ultrapassarmos impasses sociais. O referido livro de Popper foi escrito durante os horrores da Segunda Guerra Mundial nesse refúgio do mundo  que foi a Nova Zelândia. Publicado em Londres, pela Routledge, em 1945, com o título The Open Society and Its Enemies, é uma obra de filosofia social na qual o autor faz um combate cerrado a três autores — Platão, Hegel e Marx — e à ideia comum de historicismo, isto é, de História com rumo, que estes perseguem. Para Popper, a sociedade aberta ou democracia é antagónica ao historicismo: o futuro está em aberto como uma nossa construção colectiva. No prefácio à tradução francesa, Popper foi claro e directo, como era de resto seu timbre: «O objecto deste livro é ajudar à defesa da liberdade e da democracia. Não ignoro nenhuma das dificuldades e dos perigos inerentes à democracia, mas isso não me impede de pensar que ela é a nossa única esperança. Muitos exemplos nos mostram que essa esperança não é vã.» Poderíamos parafrasear Popper dizendo que, apesar das dificuldades e dos perigos da ciência (que os tem, não duvidamos!), de modo nenhum desprezáveis, a ciência continua a ser a nossa esperança, como mostram muitos bons exemplos.

Depois de recusar a ideia da República de Platão, segundo a qual uma elite domina a colectividade, Popper é particularmente duro para com Hegel, cujo desígnio idealista de desenvolvimento do espírito pode impedir o progresso real. Acusa‑o de obscuridade e mistificação. Em relação a Marx, Popper é simpático para com as suas preocupações sociais e com os seus ideais de justiça, reconhecendo que o capitalismo atacado por Marx era uma criatura deplorável. Mas acusa Marx de advogar um historicismo insustentável: a sua visão teleológica da sociedade comunista, baseada em pretensas leis da história, é anti‑racional e autoritária (esta forte crítica explica que o livro só tenha sido traduzido para russo em 1992).

 O livro de Popper, logo aplaudido pelo filósofo e matemático britânico Bertrand Russell, teve uma influência enorme no Ocidente, tendo sido incluído na prestigiada colecção «Modern Library» formada por uma centena de livros. Em Portugal saiu, numa primeira edição, só em 1990, o que revela desde logo o atraso do nosso debate filosófico e democrático. Mas não foi por acaso que o editor da Gradiva, Guilherme Valente, intitulou o n.o 100 da colecção «Ciência Aberta» (fundada por si) A Cultura Científica e os Seus Inimigos. É seu autor o historiador e filósofo da ciência americano Gerald Holton, e tem como título original Einstein, History and Other Passions. Saiu na tradução portuguesa em 1998, escassos dois anos depois do original. Já nesse período de fin de siècle eram dissecados os perigos que a ciência enfrentava, apesar ou talvez mesmo por causa dos seus indubitáveis triunfos. A questão da confiança na ciência era amplamente discutida, assim como as críticas à ciência feitas por românticos e pós‑modernos, que são os românticos dos tempos modernos.

Também não foi por acaso que, passada uma década, o jornalista e escritor americano Timothy Ferris escreveu Ciência e Liberdade. Democracia, Razão e Leis da Natureza (no original, The Science of Liberty — Democracy, Reason, and the Laws of Nature), que a Gradiva publicou, na mesma colecção «Ciência Aberta», passados três anos, assinalando o n.o 200. Pode‑se dizer que o editor fechava cada ciclo de uma centena de livros, apresentações populares sobre os mais variados temas científicos, com duas súmulas filosófico‑políticas sobre o significado da ciência e da cultura científica.

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