quinta-feira, 8 de maio de 2008

Resposta ao João

Penso que os argumentos do João não funcionam. Eis as minhas respostas:

1. Do facto de o legislador legislar apenas sobre o que os burocratas escrevem é irrelevante, pois não aceitaríamos uma lei do estado que excluísse à partida as mulheres ou os negros de poderem ser contratados pelo estado com o argumento de que se tratava apenas de legislar sobre as empresas públicas, sendo as privadas livres de contratar mulheres e negros.

2. É descabido que os políticos decidam sem quaisquer estudos científicos que as pessoas passarão a escrever melhor de uma maneira ou de outra ou que aprenderão melhor a língua de uma maneira ou de outra. E mesmo que houvesse tais estudos científicos, continuaria a ser indefensável legislar sobre a língua por causa disso porque seria como querer impor que toda a gente passasse a usar correntemente palavras como “caralho”, “merda”, “cona” e outras que tais só porque ocorrem em praticamente todas as frases que se ouvem em certos contextos sociais. É muito mais prático que quem quiser usar essas palavras, que as use; e quem quiser escrever “ótimo", que escreva, e quem quiser escrever “Ontem vamos junto ao cinema”, que escreva. Não precisamos de legislação para sancionar ou proibir isso.

3. Esta parte deixou-me estarrecido. Se você não vê diferença relevante entre normas impostas pelo estado e normas que são organicamente adoptadas pelas pessoas, não sei o que lhe dizer. O crucial é que num estado livre todas as normas que possam subsistir organicamente sem a intervenção legisladora, devem ser poupadas à sanha legisladora. Quem não aceita isto é porque tem saudades dos regimes totalitaristas. Eu não tenho.

4. É absurdo pensar que as normas gramaticais deixam de lado alguns cidadãos. Quais? As pessoas que querem seguir a gramática dos gramáticos, usam as gramáticas publicadas; as outras, baldam-se para isso e falam como lhes dá na gana. Em que medida uma lei que obrigasse toda a gente a usar a gramática do legislador ajudava as pessoas? Parece-me o cúmulo do Newspeak orwelliano argumentar que uma medida obviamente injustificada, totalitarista e repressora é, na verdade, bem vistas as coisas, uma maneira de evitar que as pessoas fiquem excluídas. Isto é puro sofisma. O estado preocupa-se com a língua? Óptimo. Pague aos professores de português para o ensinar, estimule a publicação de dicionários, gramáticas e estudos linguísticos. À parte isso, a língua não precisa do estado para nada, tal como a minha vida sexual não precisa do estado para nada, obrigado.

5. O que está em causa, João, é mesmo a falta de discernimento. Para se legislar sobre qualquer coisa, num país livre, é preciso que a situação sem a legislação seja previsivelmente pior do que com a legislação. Ora, isto não acontece neste caso. Logo, não se deve legislar.

Obrigado pelo seu comentário bem articulado, e não se ofenda com a acusação de totalitarismo. É que me parece que muitas pessoas têm infelizmente ideias totalitaristas sem se darem conta disso. As ideias totalitaristas vêm sempre disfarçadas de bonomia paternalista.

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