No texto Amesterdão, terra de Espinosa, Carlos Fiolhais relembrou as raízes portuguesas da família judia do filósofo, fugida do país por razões político-religiosas. Relembra, de seguida, a sua relação tumultuosa com a igreja de origem (mais do que com a religião), que o excomungou e acusou de anti-semitismo.
É esta dupla perseguição, e o modo como as encarou contestando-as, que, além de lhe traçar, em grande medida, o carácter, lhe dá actualidade.
E dá-lhe actualidade porque em vários quadros de discussão, onde predominam leituras etnográficas e sociológicas conotadas com o relativismo pós-moderno, entende-se que as pessoas, mais do que terem o direito de permanecer integrados nas suas culturas de origem, onde se encontram as sua raízes, devem respeitá-las, adoptar os seus valores e modos de pensar, identificar-se sem qualquer sobressalto com elas.
Guiados por este olhar percebemos facilmente que Espinosa se tenha rebelado contra a perseguição portuguesa à sua família, mas teremos mais dificuldade em perceber a sua renitência em relação a algumas das leis “do seu povo”.
Tais leis remetiam para o acolhimento conformista da autoridade porque alguém a detinha, para a aceitação submissa do que se apresentava como certo e errado, para o afastamento do mundo europeu que fervilhava de ideias e o fechamento na comunidade sefardita de Amesterdão…
Acontece que, sem pretender recusar a sua religião, a Espinosa interessava, segundo André Tosel, “eliminar os obstáculos que a superstição ergue normalmente à verdadeira realização do homem”, “transformar o «terror teológico» numa «política científica, eliminando a superstição, vista, ao mesmo tempo, como causa e origem da ausência do verdadeiro conhecimento»”
Esta citação consta no livro de Espinosa - História, salvação e comunidade, de Francisco Vieira Jordão, professor de Ontologia e Filosofia da Religião da Universidade de Coimbra, que estudou em detalhe a vida e a obra do autor a que nos referimos.
Para se perceber melhor o pensamento de Espinosa, no que diz respeito a este aspecto, em particular, recorro, ainda, a outras passagens constantes desse livro:
“Como descendente de portugueses, nascido e criado em convivência estreita com outros judeus da mesma ascendência (…) muito mais do que a História propriamente dita, interessava-lhe a explicação, pelas suas verdadeiras causas, a sua auto-marginalização. Considerado, pelos seus, indigno de fazer parte dos eleitos, não terá deixado de reflectir sobre tudo o que se passou com ele e com muitos outros, concluindo que tudo aquilo não passou duma triste confusão entre o que é «verdadeiramente útil» e o que melhor condiz com os interesses dos detentores da autoridade no interior do grupo. Só por isso eles poderiam continuar ainda renitentes à plena integração na sociedade que os acolheu.
Na realidade, os «Pontífices dos Hebreus» sempre gozaram, entre os seus, duma situação de privilégio e se fizeram rodear de honras não concedidas a mais ninguém. Só porque, frente à pressão de que foram objecto em terras de Portugal, se tornou, de facto, impossível a continuidade das velhas situações de privilégio, é que, para o nosso filósofo, eles se decidiram a demandar novos espaços a fim de poderem continuar a dar satisfação às suas ambições" (página 88).
“… não revela o mínimo de simpatia pela situação de isolamento ou de separação dos judeus em relação aos povos com quem têm tido necessidade de conviver. Não conta o facto de ser herdeiro destes ou daqueles hábitos, de ser desta ou daquela raça, nem mesmo o facto de se poder orgulhar da sua história: o que importa é «simplesmente compreender», pois as separações e os particularismos relevam apenas da imaginação, sendo, por isso ilusórios” (página 82).
"... se existe ruptura com o Judaísmo, não é no sentido de um abandono total de tudo o que é especificamente judeu, mas no sentido de combate a tudo o que é apresentado, no contexto da doutrina judaica, como certo e mesmo absolutamente incontestável, mesmo quando contradiz a ordem natural das coisas, tal como ela se manifesta na reflexão filosófica" (página 82).
Referência bibliográgfica completa:
Jordão, F. V. (1990). Espinosa - História, salvação e comunidade. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian.
Sobre o assunto poderá o leitor consultar também:
Jordão, F. V. (1986). Iluminismo e tradição do texto religioso em Espinosa. Tradição e crise, 1, p. 186-243.
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