domingo, 5 de julho de 2009

AMESTERDÃO, TERRA DE ESPINOSA


Do meu livro "Curiosidade Apaixonada" (Gradiva, 2005) recupero este texto sobre Amesterdão e os judeus portugueses (o quadro de 1675, de Witte, mostra o interior da Sinagoga Portuguesa de Amesterdão):

De Lisboa a Amesterdão é um pulo de pouco mais de duas horas. Sai-se do largo Tejo e entra-se nos estreitos canais nórdicos à volta do Amstel. Foi de Lisboa, no século XVI (quando, escusado será dizê-lo, não havia aviões que encurtassem as distâncias), que partiram os primeiros judeus a obter a nacionalidade holandesa. Pertenciam à comunidade sefardita, perseguida à beira do Tejo mas recebida nas margens do Amstel.

Hoje a Sinagoga Portuguesa é um dos principais monumentos da cidade: situa-se no Mr. Visserplein (“plein” significa praça) perto do centro. Foi mandada construir precisamente pela comunidade sefardita portuguesa copiando o templo de Salomão. Perto dessa sinagoga, na Sint Antoniesbreesstraat (“straat” significa rua) fica a “Pintohuis”, literalmente “Casa do Pinto”, que deve o seu nome a Isaac de Pinto, um rico judeu português que pagou o projecto de renovação ao mesmo arquitecto que construiu a sinagoga, Elias Bouman. Hoje em dia é uma biblioteca pública, depois de um levantamento popular ter impedido a demolição do prédio.

Mais perto da sinagoga portuguesa que a Pintohuis fica o Joods Historisch Museum, o Museum Histórico Judaico, que ocupa quatro sinagogas erguidas nos séculos XVII e XVIII pelos judeus askenazi, que, em contraste com os sefarditas, chegaram do leste da Europa e um pouco mais tarde. O mesmo arquitecto Bouman desenhou um dos recantos mais importantes do Museu Judaico: a Grote Synagoge. Aqui, tal como nas outras sinagogas, a galeria superior está reservada às mulheres enquanto os homens, com a cabeça devidamente coberta, ocupam o interior mais baixo do templo. Não há dúvida: Amesterdão foi e é um dos pólos do mundo judaico, um mundo espalhado por todo o mundo.

Por falar em mulheres judaicas, o visitante de Amesterdão não pode deixar de ver a Anne Frankhuis, a Casa de Anne Frank, a rapariguinha judaica que permaneceu escondida dos nazis durante cerca de dois anos (dos treze aos quinze anos), ao mesmo tempo que escrevia um diário. Presa pela Gestapo em 1944, acabou por morrer no campo de concentração de Bergen Belsen no ano seguinte. O pai, sobrevivente do holocausto, encontrou o seu diário escondido e revelou-o ao mundo. Hoje a casa da jovem Ana é um lugar de constante peregrinação diária. O clima social de Amesterdão é, como sempre foi (tirando a interrupção da Segunda Guerra Mundial), de enorme tolerância e a Casa de Anne Frank é quanto chega para nos lembrar dos horrores da intolerância.

Não se pode falar dos judeus de Amesterdão sem referir o grande filósofo Espinosa, de seu nome completo Bento (em hebreu Baruch) Espinosa (1632-1677), que era filho de um mercador judeu estabelecido em Amesterdão depois da sua família ter fugido de Portugal. Foi, portanto, uma vítima da intolerância religiosa em Portugal. Espinosa, de quem se fala no terceiro livro de António Damásio (“Ao Encontro de Espinosa”, Publicações Europa-América, 2003), viveu grande parte da sua vida em Amesterdão, mas, excomungado pela igreja judaica em 1656, teve de se refugiar primeiro em Rijnsburg e depois em Leiden e em Haia. Foi, de facto, perseguido na Holanda, mas não teve necessidade de fugir de lá. Numa das sinagogas de Amesterdão, Espinosa aprendeu os cânones do hebraísmo, preparando-se até para ser rabi. Contactou ainda adolescente com o judeu português de Amesterdão Uriel da Costa, cujas ideias o terão influenciado. Conheceu também o Padre António Vieira, que por essa altura (tinha Espinosa doze anos) visitou a comunidade portuguesa de Amesterdão. Foi, mais tarde, o Padre António Vieira que haveria de escrever o famoso “Sermão contra as Armas da Holanda”, quando os holandeses atacaram o Brasil.

Espinosa abandonou cedo a tradição religiosa da sua família, seduzido pelas ideias racionalistas de Descartes (quando Espinosa nasceu, Descartes, que então tinha 32 anos, vivia em Amesterdão) e outros. No seu livro “Ética” (Relógio d’Água, 1992) publicado postumamente em Amesterdão, a ética é tratada à moda da geometria de Descartes. Tal como os princípios físico-matemáticos regulam as leis da Natureza, também alguns axiomas governariam a lei moral. As paixões humanas poderiam ser tratadas com o mesmo sereno rigor que as figuras geométricas que se encontravam no mundo natural.

Além de pensador, Espinosa foi polidor de lentes para microscópios e telescópios (um ofício técnico-científico que terá aprendido quando estudava para rabi). Acabou mesmo por ser uma vítima da sua própria profissão ao morrer de uma doença pulmonar associada à poeira do vidro.

Vale a pena referir a relação entre Espinosa e Einstein, esse outro judeu famoso e prosélito do sionismo. Têm em comum o facto de serem judeus de origem, mas de se terem mais tarde distanciado da religião dos seus antepassados. E têm também em comum o facto de defenderem uma visão racional do mundo. Um dia, um rabi enviou, por telegrama, uma questão a Einstein. Continha, em português, apenas três palavras:

- “Acredita em Deus?”

(No original são cinco palavras: “Do you believe in God?”, o que contraria a ideia que a língua inglesa é mais telegráfica do que a nossa). Respondeu o físico nascido na Alemanha, mas mais tarde naturalizado primeiro suíço e depois norte-americano:

- “Acredito no Deus de Espinosa que se revela Ele próprio na harmonia bem estabelecida de todo o mundo, e não num Deus que se preocupa pessoalmente com os destinos e as acções dos seres humanos”.

Einstein foi, no plano teológico, um discípulo confesso de Espinosa... Várias vezes ao longo da sua vida mostrou a sua simpatia pela visão panteísta de Espinosa.

Espinosa, o filósofo que poderia ter sido português se os seus pais não tivessem fugido de cá, foi contemporâneo de um grande físico holandês Christiaan Huyghens (1629-1695). Huyghens nasceu em Haia, a capital política dos Países Baixos, embora Amesterdão seja a maior cidade e a capital de facto. Para além de ter prestado valiosos contributos para a a mecânica física (na esteira de Galileu, aproveitou, por exemplo, o princípio do pêndulo para construir um relógio mecânico) foi um reputado especialista em óptica, tendo sido um adversário do inglês Isaac Newton precisamente na teoria da óptica. Se para Newton a luz era constituída por partículas, para Huyghens a luz era constituída por ondas (hoje sabe-se que tinham os dois razão: a luz umas vezes comporta-se como partícula e outras vezes como onda). Curioso é um conjunto de cartas trocadas entre Espinosa e Huyghens que se encontram na Internet. Não foi decerto por acaso que os dois grandes espíritos se encontraram. E não foi por acaso que a teoria da óptica floresceu em Amesterdão quando muitos artífices aperfeiçoavam os primeiros instrumentos ópticos que permitiam ampliar enormemente o poder da vista humana. Amesterdão foi, assim, um dos locais do nascimento das ciências físicas. E também, acrescente-se, das ciências biológicas: o primeiro microscopista foi Antonie van Leeuwenhoek (1672-1723), um mercador nascido em Delft, não muito longe de Haia (e portanto de Amesterdão, na Holanda tudo fica perto de Amesterdão), que havia de se interessar pela ciência e ser o primeiro a observar os estranhos seres microscópicos, nomeadamente as bactérias.

Mais modernamente, no século XX, a Holanda orgulha-se dos seus 15 prémios Nobel, bastantes dos quais na área da Física (em 1902 Lorentz e Zeeman, em 1910 van der Waals, em 1913 Kamerlingh Onnes, em 1953 Zernike, em 1984 van der Meer e em 1999 ‘t Hooft e Veltman). Alguns dos seus laboratórios científicos, como o FOM (em Utrecht), são conhecidos e reconhecidos internacionalmente.

A Holanda, em particular Amesterdão, foi no século XVII um centro de judaísmo e também um pólo de filosofia e ciência. A tradição da ciência chegou até aos nossos dias. De visita a Amesterdão. não podemos deixar de pensar o que nos teria acontecido se não tivéssemos, no tempo de D. Manuel I, expulso os judeus...

7 comentários:

Anónimo disse...

Para além do FOM laboratório de Rijnhuizen (perto de Utreque) existe também o FOM laboratório de Amesterdão, igualmente e merecidamente famoso.
Helena Cabral

Rita disse...

Na verdade, os refugiados Judeus que chegaram em massa à Holanda, em particular a Amesterdão, no século XVII, eram provenientes não só de Portugal mas também de Espanha. No entanto, e devido ao conflito existente na altura entre Espanha e a recém-formada República Holandesa, os judeus espanhóis adoptaram o "nome" de judeus portugueses, para que não os associassem à potência inimiga. Penso que a sinagoga portuguesa foi, da mesma forma, denominada "portuguesa" apesar de ter sido fundada pela comunidade de judeus "ibéricos".

Anónimo Ranhoso disse...

«O clima social de Amesterdão é, como sempre foi (tirando a interrupção da Segunda Guerra Mundial), de enorme tolerância e a Casa de Anne Frank é quanto chega para nos lembrar dos horrores da intolerância.»

Claro que foi a única interrupção.
Também sugiro a visita à Igreja clandestina, quando ser católico era ilegal, mas tolerantemente claro.

Alias a Holanda é tão tolerante que nem tem extrema-direita. É tudo paz, amor e drogas.

Achei curioso a posta não ter a palavra marrano. Muito curioso mesmo.

«o visitante de Amesterdão não pode deixar de ver a Anne Frankhuis»

Claro que pode. Eu visitei Amesterdão e não vi a casa de Anne Frank. Se calhar o visitante não deve deixar de ver, mas poder pode certamente.

Anónimo disse...

Não posso deixar de pensar o que nos teria acontecido se não tivéssemos, no tempo do marquês de Pombal, expulso os jesuítas...
Se os Espinosas não tivessem sido expulsos, Bento Espinosa seria um respeitável comerciante da baixa. Ninguém hoje se lembraria dele...
Xico

João Sousa André disse...

Bom, quanto à tolerância religiosa, convém esclarecer que o judaísmo foi também ilegal na Holanda durante muito tempo. O que sucedia era que, conquanto os judeus não demonstrassem abertamente sê-lo, eram tolerados, especialmente porque tinham posses que representavam muito dinheiro em impostos. Muitas sinagogas clandestinas foram construídas nas águas furtadas de casas de Amesterdão, onde os rabinos celebravam as suas cerimónias. A tolerância, mais do que tal, era uma forma de pragmatismo. Esse pragmatismo extende-se até aos dias de hoje. As drogas leves. ao contrário do que se diz, não são legais. São é TOLERADAS, ou seja, podem ser vendidas e possuídas e consumidas, mas dentro de critérios muito bem definidos. Dão dinheiro em impostos, por isso são aceites. O mesmo com a prostituição (embora neste caso seja legal mesmo).

Quanto à Annefrankhuis, é verdade que é quase imprescindível, mas vale sempre a pena fazer a pergunta: quem denunciou os Frank? Esta pergunta seria inútil se fosse só relativa a eles, mas a verdade é que não é. Os holandeses foram dos povos mais colaboradores com a ocupação nazi (a par dos franceses) e a Holanda foi dos países que mais vazios ficaram de judeus. Tolerância?

Van Leeuwenhoek não foi «o primeiro microscopista», creio. Hooke publicou o seu livro sobre as suas observações microscópicas quase 10 anos antes (recorde-se que Hooke foi o primeiro a descrever uma célula). Van Leeuwenhoek foi, sem dúvida, o melhor fabricante de lentes e microscópios desse tempo, tanto que só cerca de meio século mais tarde, crio, se conseguiu reproduzir as magnificações que ele atingiu.

Rita disse...

E sobre as políticas "liberais" da Holanda relativamente às drogas, veja-se: http://www.time.com/time/health/article/0,8599,1893946,00.html

O artigo começa com: "Pop quiz: Which European country has the most liberal drug laws? (Hint: It's not the Netherlands.)"

Alexandre Wragg Freitas disse...

Acho sempre interessante a forma como a mente humana tem dificuldade em conviver com a complexa realidade. E em vez de aceitar a sua (da realidade) complexidade e a sua (dele mesmo) ignorância, está sempre pronto a simplificar tudo estabelecendo 'leis' a torto e a direito. E isto, nas ciências sociais, tem muito que se lhe diga. Do meu ponto de vista, se no passado não tivesse sido assim e tivesse sido assado, hoje não estaríamos assim, estaríamos assado. Não faço ideia como, e também não interessa nada, porque na realidade não estamos assado, estamos assim.

Mas há uma crítica mais forte que tenho de fazer porque se relaciona com algo que me perturba neste tipo de discursos, que é a sistemática idolatria de personagens históricos e elites. Vejamos: se numa determinada época existissem numa região dois povos, um mais avançado que o outro seja em que aspecto for, e se o povo mais atrasado, ou outro qualquer, expulsa o povo mais avançado dessa região, todos elaboram longas teorias sobre como teria sido se... Mas aparentemente poucos se preocupam com o facto de nessa época, nessa região, existirem dois povos, um mais atrasado do que o outro. Mas será que temos sempre de ter povos (ou personagens) mais atrasados ou mais avançados? Mas será que o desenvolvimento de uns tem de ser feito a reboque dos outros?

Dito de outra forma: os Espinosas já lá vão. Mas será que por isso agora somos todos lerdinhos nesta nossa terra?

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