segunda-feira, 20 de julho de 2009

Para Marte!


Há dez anos, por ocasião da passagem das três décadas após a missão Apollo 11, publiquei no suplemento "Das Artes e Letras" do jornal "O Primeiro de Janeiro" este texto sobre o futuro da descoberta do espaço. Devido a várias hesitações e atrasos no programa espacial, uma viagem tripulada a Marte por volta de 2020, como escrevi na altura, é hoje uma possibilidade remota, embora ela seja possível a partir de 2030. Mas pode ser que o texto ainda tenha alguma actualidade (na imagem, paisagem marciana):

Fez agora 30 anos que o homem foi à Lua pela primeira vez. Numa noite quente de Julho, parecidíssima com uma das noites de Julho último, chegaram aos nossos televisores imagens a preto e branco da Lua em directo. Houve logo quem se apercebesse da importância do momento (foi, talvez, o acontecimento do século XX). Houve também quem duvidasse, pensando que na televisão tudo pode ser montado. Como disse um comerciante português de carnes, numa linguagem bem terra-a-terra e que ilustra o nosso atraso da época: "A Lua? Que me interessa a mim a Lua se eu não posso vender carne fora do meu concelho?"

Mas há uma geração - a dos jovens actuais, entendendo-se por jovens as pessoas com menos de 35 anos - que perdeu a ida à Lua. Estavam a dormir ou nem sequer tinham nascido. Apanharam a história da Lua, já algo requentada e sem a emoção do directo, servida nos "enlatados" da NASA na televisão ou, numa hipótese algo optimista, em textos nos livros, escolares ou de divulgação, que convidavam à aventura da ciência. Esta é a geração do intervalo na exploração espacial. Mas não houve a bem dizer "buraco". Os jovens e os menos jovens viram a estação espacial russa "Mir", agora a cair. Viram recentemente a estação espacial "Freedom" começar a erguer-se nos céus. Viram o telescópio espacial "Hubble" ser reparado e tirar fotografias espantosas de tudo quanto é sítio. Viram os vaivéns espaciais a ir e a vir do Centro Espacial Kennedy. Viram as sondas enviadas a planetas longínquos, como as "Voyager" e a "Galileo", ou a planetas próximos, como a recente "Mars Pathfinder", que pousou em Marte com o pequeno carro-robô. Viram tudo isso e não foi pouco, mas perderam a Lua... Alegrem-se, porém: a geração mais nova perdeu a Lua mas vai ganhar Marte. Marte é, será das crianças e dos jovens de hoje.

Marte é a próxima fronteira. Como disse o pioneiro russo da exploração espacial Tsiokolvsky: "A Terra é o berço da humanidade, mas ninguém fica eternamente no berço”. Havemos de ir a Marte no próximo século, provavelmente lá para o ano 2020, passados 50 anos depois da primeira viagem humana à Lua. Não é tecnologicamente impossível, sendo só questão de concretizar para isso um grande projecto internacional. A humanidade, para sair do berço, só tem de querer, organizar um plano e, claro, pagar a grande viagem. A paisagem de Marte está lá, virgem como estava o Everest antes de Edmund Hillary, e alguém quererá ser o primeiro. Faz parte da natureza humana, quase se pode dizer está no património genético, não se contentar com o conhecido e não se saciar do desconhecido. Porque é que se foi à Lua? Porque John Kennedy, decerto impulsionado pela guerra-fria mas levado também pela ideia de ultrapassagem das fronteiras, lançou o desafio e disse que para lá se tinha de ir rapidamente e em força. Por que é que não se vai a Marte amanhã? Porque ainda ninguém, com o mesmo discernimento, vontade e poder, disse que lá se devia ir. Por que é que se irá depois de amanhã a Marte? Porque o que é possível e desejável se faz, ou, melhor, acaba inexoravelmente por se fazer.

Conhece-se, porém, quem não só não queira ir (está no seu direito) como também não queira que se vá (aqui, vale a pena contra-argumentar). O nosso comerciante, certamente, não quererá saber. Esperamos, pelo menos, que tenha obtido entretanto autorização para vender carnes na União Europeia. Mas, por estranho que pareça, o nosso prémio Nobel da literatura, José Saramago, achou por bem, desprezar a viagem marciana, afirmando - a citação é de cor - que era infelizmente mais fácil enviar um engenho a Marte do que chegar ao homem na Terra. A pergunta até parece, à primeira vista, boa: Se há tantos problemas na Terra, porque há-de o homem meter-se em sarilhos em Marte? A visão de Saramago, embora descontando a metáfora a que têm direito todos os artistas, é tão sustentável ou insustentável como a do comerciante. Competem as duas em tacanhez. Primeiro: não é garantido que os problemas na Terra se resolvam mais facilmente ignorando o espaço, afinal aqui tão perto de nós. Segundo: É precisamente por haver problemas na Terra que a ciência e a sua filha legítima, a tecnologia, devem prosseguir, ultrapassando sucessivas fronteiras. A falta de ciência nunca resolveu problema nenhum. Pelo contrário, a ciência pode - e os exemplos abundam - ajudar a resolver muitos problemas da humanidade, incluindo questões como a fome, a doença e a miséria. Não é obrigatório que os resolva, pois a actividade humana não se esgota na ciência. Há a política, a economia, as artes e as letras, a religião, etc., mas nenhuma destas se podem dar ao luxo de querer passar sem a ciência, sem o saber construído pela curiosidade humana.

Lembremo-nos que a ida à Lua foi um enorme empreendimento humano: Para que Armstrong e Aldrin alunassem, trabalharam directamente no projecto mais de 200 000 pessoas; mostrou-se que se podia concretizar um grande sonho. De resto, resolveu-se uma miríade de problemas específicos: foi um feito com consequências fantásticas na engenharia e na medicina. Mas resolveu-se, sobretudo, um problema central: ir "lá", sair pela primeira vez do nosso berço planetário. Também se avançou na economia e na política, na arte e na religião. A humanidade não é a mesma desde que dois dos seus representantes foram à Lua. A humanidade não voltará a ser a mesma quando os seus representantes pisarem as areias de Marte (a ida a Marte será, talvez, o maior acontecimento do século XXI).

Claro que na ida a Marte há questões ideológicas. Por exemplo, provavelmente o primeiro explorador será norte-americano. Curioso é que não conste que Saramago se tenha pronunciado sobre o empreendimento espacial quando os russos disputavam com os norte-americanos a primazia no espaço e até a ganhavam. Nem sequer quando o primeiro engenho, um artefacto soviético, feio e forte (com a foice e o martelo), caiu em 1971 desamparado no solo marciano, jazendo hoje debaixo de um monte de areia, onde poderá um dia vir a ser desenterrado por arqueólogos. Sim, foram os soviéticos os primeiros a chegar, ainda que com um objecto, ao planeta vermelho.

Daqui até ao ano 2020 vários voos dos EUA, da Rússia, da Europa e do Japão terão Marte por meta. Todos os dois anos, há uma “janela de oportunidade", onde se pode fazer o “tiro" astronómico correcto. Logo que o programa principal da estação espacial internacional se esgote, missões robotizadas explorarão Marte, antes do homem, trazendo até à Terra a terra de Marte (as imagens das sondas “Viking” mostraram-nos que a superfície de Marte não é assim tão diferente de um deserto terrestre). Depois de resolvidos problemas de reciclagem de recursos, de produção de combustível e de resistência do organismo (a viagem, para Marte, com a tecnologia actual, durará mais de um ano, para lá, e outro tanto para cá, mas a tecnologia está sempre a evoluir), será finalmente a vez de uma expedição tripulada.

Portugal entrará para a ESA, a agência espacial europeia, em 2000 e poderá participar na aventura. Não se percebe por que é que o Ministério da Ciência e Tecnologia esperou quatro longos anos para concretizar o óbvio: que devíamos também ser europeus no espaço. Assim, não será o filho, mas tão só o neto do magarefe que poderá ser astronauta.

Marte é um planeta mítico. Não sendo o mais próximo de nós, é o mais parecido com o nosso. É o sítio onde pode ter existido vida no passado (as notícias recentes sobre organismos vivos num meteorito oriundo de Marte e caído na Antárctica eram um pouco exageradas), é o sítio onde astrónomos pouco sofisticados julgaram ver um sistema de canais fruto de uma civilização planetária, é o sítio que Orson Welles imaginou como origem dos invasores. Mas é também o planeta do futuro: aquele onde haverá vida, quanto mais não seja levada da Terra, aquele cuja paisagem pode ser “terraformada”, isto é, tomada semelhante à nossa, possibilitando as primeiras colónias humanas no espaço. Marte é o único planeta do sistema solar, além do nosso, que poderá ser habitado.

É bom que os jovens saibam que é possível ir a Marte, que os muito jovens poderão mesmo um dia lá ir. Os manuais escolares de ciência podem não ser suficientemente apelativos. Os programas televisivos sobre ciência podem não ser frequentes. Mas podem-se organizar mini-projectos para acompanhar as idas de sondas a Marte, usando nomeadamente os “media” e as hodiernas redes de comunicações. Se a chamada Secretaria de Estado da Educação e Inovação se lembrasse algum dia de inovar alguma coisa, acarinharia projectos sobre Marte, os planetas, as estrelas, etc., alimentando a imaginação ávida dos jovens. Bastante pior que não ter meios para fazer é não ter ideias sobre o que fazer nas escolas. Falar do espaço, seguir e projectar viagens espaciais é pôr em agitação os jovens neurónios. Não compreender isso é ter os neurónios envelhecidos.

A longo, muito longo prazo, a presença humana em Marte terá uma utilidade evidente. Poderá resolver, pelo menos em parte, o problema da sobrepopulação do nosso planeta-berço, o problema da escassez de recursos naturais e o problema da degradação do meio ambiente. Talvez até, se houver (lagarto, lagarto!) uma catástrofe na Terra, Marte seja o sítio onde o património da vida vai continuar a sua prodigiosa história evolucionária. Os descendentes remotos do nosso comerciante de carnes irão um dia vender costeletas, ou o equivalente sintético delas, em solo marciano.

E, quanto a Saramago, esperamos que continue a diatribar contra a exploração do espaço pois são precisos "velhos do Restelo" para que haja epopeia. Mas esperemos também que reconheça uma utilidade bem prosaica de Marte: Marte, ao fim e ao cabo, tem sido uma fonte inspiradora de agradáveis páginas de literatura, de Edgar Rice Burroughs a Arthur C. Clarke. Por exemplo, Ray Bradbury é o autor de "Crónicas Marcianas". A prosa de Bradbury termina, eloquentemente: "Os marcianos somos nós". Quando lá chegarmos, claro.

5 comentários:

João Sousa André disse...

A duração da viagem varia com a distância da Terra a Marte, a qual não é fixa (estamos numa fase de afastamento).

Não sou um entusiasta desta viagem. Uma nave que levasse um astronauta que fosse precisaria de ser muitas vezes maior que aquela que levou os astronautas à Lua (e actualmente não há naves capazes de viajar sequer à Lua, quanto mais a Marte). Isso custaria caro mas, pior, não traria grandes vantagens científicas à excepção do desenvlvimento da tecnologia. Para mais seria extremamente perigoso e qualquer pequeno fracasso acabaria com qualquer iniciativa futura.

É preferível avançar em pequenos passos. Começar por estabelecer uma base permanente na Lua (se possível), por exemplo. Depois fazer partir missões daí, uma vez que a gravidade é menor e como tal as naves espaciais necessitariam de menos potência para fugir à gravidade da Lua.

Outra nota. O planeta mais parecido com a Terra é Vénus, sendo que poderá um dia ter tido vida, coisa que será impossível vir a confirmar-se no futuro. Em termos de atmosfera será Marte, ams apenas nesse aspecto. Marte é muito pequeno e se um dia os seres humanos para lá fossem teriam de se habituar a uma gravidade muito menor, coisa que não é fácil. Por outro lado, Marte não tem campo magnético, com todos os riscos que isso acarreta. Note-se ainda que se é verdade que Marte é o único planeta com possibilidade de alojar vida, não é o único local no sistema solar. Europa poderá ter vida e o mesmo se poderá passar (de forma muito exótica) com Titã, que são luas (de Júpiter e Saturno respectivamente).

José Batista da Ascenção disse...

Porém, já bastante depois de este estimulante texto ter sido escrito, entraram em vigor os últimos programas da disciplina de biologia e geologia, ano I e ano II, do ensino secundário, e neles se impõe a ideia estúpida de que a Terra deve ser considerada um sistema fechado, para acentuar a necessidade de ecologicamente nos preocuparmos com o consumo/esgotamento dos recursos e com a produção de resíduos. Aos alunos tenho sempre dito para pensarem no que acontece nas nossas casas (a Terra é a nossa casa), que são sistemas abertíssimos, o que em nada obsta ao cuidado que devemos ter com o consumismo e com a produção de lixo. E perguntas relacionadas com isto já saíram em exames ou testes intermédios do ME, pelo que, preventivamente, eu e outros vamos pedindo aos alunos que pensem certo, mas respondam errado para obterem as devidas cotações... Mas, quando tem que se "ensinar" assim, a coisa vai mal... E houve, em tempo próprio, quem alertasse, em vão, para a anacronia do programa, relativamente a esse e a outros aspectos, alguns dos quais são erros inadmissíveis.

Anónimo disse...

"que pensem certo, mas respondam errado para obterem as devidas cotações"

A história da minha vida nos mais diversos sistemas educativos...

H. Carmona da Mota disse...

Lei de Fiolhais: "o que é possível e desejável se faz, ou, melhor, acaba inexoravelmente por se fazer."
H. Carmona da Mota

Alexandre Wragg Freitas disse...

Tudo bem, tudo bem. Vamos lá a Marte. Tal como dizia o outro no filme, vamos lá fazer como os vírus: utilizar até à exaustão o meio que nos sustenta e depois passar para outro.

Não sejamos hipócritas. Podem existir muitos motivos, mas idas a Marte não se fazem com o objectivo directo de minorar problemas cá na Terra. Isso virá depois, talvez.

Não preciso que me digam como essas viagens são importantes. E o quanto a ciência e a técnica evoluem com isso. E como isso é importante. Eu bem sei, eu bem sei... Sei também que o homem, no seu âmago, evolui bem menos do que as suas ferramentas. Pergunto eu: com todo o nosso conhecimento, toda a nossa ciência e toda a nossa técnica, com todos os aumentos na produtividade durante os últimos séculos, com a segurança alimentar e os computadores, como somos capazes de permitir que as catástrofes em pequena, média e grande escala continuem a acontecer?

Sou um amante da ciência e da astronomia. Quem me dera viajar a um milhão de vezes a velocidade da luz, sentado num asteróide, ir jantar a Andrómeda e voltar para a ceia. Mas sou também muito céptico relativamente à capacidade destas coisas mudarem alguns problemas. E isto não faz de mim um reaccionário ou um velho do Restelo. É preciso ter a noção das coisas e colocar os dedos certos nas feridas certas da forma certa e no momento certo. De outro modo estas coisas correm o risco de parecer nada mais que brincadeiras esbanjadoras de meninos mimados com uma visão muito parcial do mundo.

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