terça-feira, 21 de julho de 2009

A CONSTRUÇÃO DE IGREJAS E CATEDRAIS GÓTICAS


Texto já aqui referido de Jorge Lourenço, professor de Engenharia Civil no ISEC de Coimbra, a quem agradecemos a sua cedência:

Há cerca de quarenta anos, um ministro da educação de Marcelo Caetano iniciou uma reforma dos cursos de engenharia, que, não atingindo o objectivo de formar técnicos competentes, diminuiu ainda mais as possibilidades de os jovens terem uma preparação intelectual de sentido humanista. Actualmente, há muitos engenheiros vítimas desta “formação coxa”, reflectindo-se nos quadros técnicos da sociedade portuguesa: neste mundo que os absorve, os jovens estão algumas vezes desadaptados, noutras conseguem ser competitivos, mas quase sempre deficitários nos saberes técnicos, científicos e culturais. Em 1969, J. L. Rodrigues Martins, prefaciando a tradução portuguesa de uma obra de Niels Bohr (1), reflectia a necessidade de as escolas de ensino superior fornecerem uma formação integral para o aluno, ao invés de se tornarem em “fecundas Fábricas de Técnicos marcadas por imperativos de eficiência e de produtividade, mas amputados de todas as dimensões humanas, que não apontem para uma orientação profissional. Um engenheiro, no seu afã profissional, deve estribar-se culturalmente, conhecendo a evolução do pensamento humano, da ciência em geral e das técnicas; só encontrando justificações no desenvolvimento da sua actividade, vai mitigando as angústias da sua existência.

Por isso são muito importantes as Histórias das Ciências, as Histórias das Técnicas e as Histórias das Engenharias. Mas estas deverão ser documentos seguros de um pensamento alicerçado em conhecimentos científicos e técnicos. Eles existem como se pode constatar em muitos bons livros, tal como nas obras referidas das notas: (3)a (8) .

Através de duas leituras, vamos exemplificar o cuidado que devemos ter na análise dos textos escolhidos, para a nossa boa formação cultural. Nestes exemplos, trata-se do modo como dois autores descrevem a segurança estrutural garantida pelos construtores de igrejas e catedrais, na Idade Média: James Edward Gordon (9 e 10) e Adriano Vasco Rodrigues (11).

Vejamos como Gordon (9 e 10) distingue a técnica empírica, da técnica racional que começa com o desenvolvimento da Resistência de Materiais. Assim, ele descreve este processo a partir da construção das grandes estruturas dessas igrejas e catedrais, sem qualquer apoio científico, até ao aparecimento de Galileu, que inicia uma ferramenta científica, entretanto só aplicável no século XIX:

“Estes edifícios não só eram muito grandes e muito altos; alguns pareciam transcender a tosca e pesada natureza dos seus materiais de construção e elevá-la à categoria de arte e de poesia. Perante isto parece óbvio que os mestres medievais sabiam muito sobre como construir igrejas e catedrais e por isso muitas vezes o fizeram de forma excelente e altamente satisfatória. Contudo, se tivessem a oportunidade de perguntar a um mestre como o fez realmente e porque resiste, a resposta seria algo como esta: - O edifício resiste graças às mãos de Deus. Sempre que construímos, seguimos fielmente as regras e segredos tradicionais do nosso ofício.”


E Gordon (10) continua mais adiante:

“ O professor Jacques Heyman demonstrou concludentemente que os mestres das Catedrais, em nenhum caso, pensavam e projectavam de forma moderna. Apesar de muitas das realizações dos artesãos medievais serem impressionantes, as bases intelectuais das suas regras e segredos não eram muito diferentes das de um livro de receitas de cozinha. O que esta gente fazia era construir algo muito parecido com o que se havia feito imediatamente antes.”


E mais adiante (10):

“Assim, geração após geração, os homens voltaram as costas a um estudo racional dos problemas da resistência.”

E é muito interessante o cáustico humor de Gordon, quando associa a condenação de Galileu pela Inquisição, em 1633, com o início do estudo da Resistência de Materiais (10):

“Vivendo, virtualmente em prisão domiciliária, ocupou-se do estudo da resistência de materiais, pensando, suponho, que era uma actividade mais segura e menos subversiva.”

Depois desta descrição do engenheiro Gordon, leia-se o que Adriano Vasco Rodrigues escreveu, em obra encomendada pelo Colégio de Engenharia Civil da Região Norte da Ordem dos Engenheiros, a propósito da construção do Mosteiro da Batalha (11):

“A edificação da igreja do Claustro, Casa do Capítulo, Capela do Fundador e começo do panteão de D. Duarte realizados ao longo de 50 anos, corresponde ao gótico joanino, devendo-se a orientação e planificação a Mestre Afonso Domingues (1388/1402), verdadeiro engenheiro pelo conhecimento matemático e físico com que resolveu o problema das estruturas da abóbada da igreja, obra-prima da Engenharia medieval.”

Estes dois exemplos, pela contradição, dão-nos o motivo para que a nossa formação deva ter sempre um grande sentido crítico, de modo a sabermos distinguir
- o fundamental, do acessório;
- a descrição sumária tipo “reader’s digest”, do saber alicerçado;
- o erro da superficialidade, em relação à cuidadosa divulgação que muitos cientistas e técnicos desenvolvem.

Dirijo-me ao Prof. Carlos Fiolhais, para lhe dizer que o senhor fez bem em afirmar que a não tradução em português do “Gordon” (9) é um sintoma do nosso atraso tecnológico (12). E concluo apelando: apesar das edições em inglês (9), ou em espanhol (10), estudantes de engenharia civil ou de outras engenharias, leiam o "Gordon"!

NOTAS:

(1) NIELS BOHR, “Sobre a constituição de átomos e moléculas”, Colecção Textos Fundamentais da Física Moderna, Fundação Calouste Gulbenkian, 4ª edição, 2001. A Gulbenkian afirma que “as raízes da cultura estão naquelas obras cuja mensagem se não esgotou e que permanecem fontes vivas do progresso humano”. José Luís Rodrigues Martins, foi o primeiro português doutorado em física teórica pela Universidade de Coimbra (1945). Tal como a muitos outros cientistas portugueses dessa época, foi-lhe dificultada a sua capacidade de investigar e ensinar (2).

(2) AUGUSTO FITAS e ANTÓNIO VIDEIRA, “Cartas entre Guido Beck e Cientistas Portugueses”, Instituto Piaget, 1ª edição, Lisboa, 2004. Este livro descreve a forma como o cientista austro-húngaro de origem judaica, Guido Beck, foi tão mal tratado e pouco considerado no nosso país. Simultaneamente mostra as vidas estragadas por Salazar, de cientistas que seriam tão úteis ao país, nas décadas de 40 e 50 do século XX: Bento de Jesus Caraça, Mário Silva, Egas Moniz, Ruy Luís Gomes e outros.

(3) LAGINHA SERAFIM, “Engenharia Civil em Portugal”, Laboratório Nacional de Engenharia Civil, 2ª edição, 1992. Este grande catedrático de Coimbra explica porque temos uma Engenharia Civil em Portugal, depois de enunciar o que é a Engenharia Civil.

(4) FRANKLIN GUERRA, “História da Engenharia em Portugal”, Livraria Lopes da Silva, Porto 1995. Obra com belíssimas descrições, bem justificadas por conhecimentos técnicos adequados aos seus potenciais leitores: estudantes e profissionais de engenharia.

(5) FRANKLIN GUERRA, “Pequena História da Engenharia”, edição do autor, Porto, 1975.
Um pequeno documento, útil para qualquer estudante de engenharia culturalmente interessado e com referências bibliográficas muito interessantes.

(6) The Civil Engineer : his origins, Committee on history and heritage of Americain Civil Engineering, Ameticain Society of Civil Engineers, 1970.Documento aconselhado pelo Professor Laginha Serafim.

(7) J.P. PANNELL, “Man The BuilderAn illustrated history of engineering”, Thames and Hudson, London, 1977. Documento aconselhado pelo Professor Laginha Serafim.

(8) JEAN PIERRE ADAM, “La Construction romainematériaux et techniques”, 2ième edition, Grand Manuel Picard, Paris, 1989. As técnicas de construção utilizadas ao longo da história deverão ser perfeitamente entendidas, sobretudo para a reabilitação de obras antigas.

(9) J.E. GORDON, “Structures or Why Things Don’t Fall Down”, Penguin, Wardsworth, 1978. O exercício da Engenharia Civil integra um universo que deve ser profundamente entendido, por quem o pratica, ou quer vir a praticar. Nesse sentido esta obra do Professor Gordon “is a godsend” para os futuros engenheiros.

(10) J.E. GORDON, “Estructuras o por qué las cosas no se caen, Celeste Ediciones, Madrid, 1999. Localização das transcrições: linhas 18 a 29 da página 23; linhas 9 a 16 da página 24; linhas 1 e 2 da página 25; última linha da página 25, até à segunda linha da página 26. Nas transcrições, os sublinhados são nossos.

(11) ADRIANO VASCO RODRIGUES, “História breve da Engenharia Civil – Pilar da Civilização Ocidental”, Ordem dos Engenheiros - Região Norte, 2006. Localização da transcrição: linhas 20 a 26 da página 135. Na transcrição, os sublinhados são nossos. Esta obra é desconexa, superficial e tem erros que nos “saltam à vista”, como vírus de um computador infectado; apresentamos alguns exemplos:
- Entre as linhas 28 e 30 da página 261, numa descrição da integração de armaduras de aço no betão, encontramos um deplorável exemplo de ignorância destas matérias, associada a uma má tradução: “A teoria destes trabalhos parte do princípio que o ferro, colocado no sistema de construção, prende os esforços de tracção e algumas vezes os esforços de compressão e os do cinzelamento”.
- Nas linhas 15 e 16 da página 291 lê-se, a propósito da barragem do Alqueva: “O duplo arco da barragem foi construído em concreto”. Até parece que estamos num país da América Latina ...
- Na nota de rodapé nº 173, da página 263 escreve-se: “O cimento obtém-se a partir da cal viva, resultante da cozedura.”. Isto assim, sem mais nada, não é nada! E depois: “O betão é composto por um ligante, o cimento, por inertes, areia e fragmentos de pedra e água.”. Se uma nota se faz para melhor explicar as matérias abordadas, então esta deve ser uma anti-nota...
Não se deve tocar rabecão por simples vontade, ou encomenda. Qualquer actividade específica exige muito estudo e uma prática continuada, que permitirão desenvolver um saber e uma sensibilidade, que então se poderá apresentar posteriormente.

(12) CARLOS FIOLHAIS, “A coisa mais preciosa que temos”, Gradiva, Lisboa, 2002. Este físico, Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, é um divulgador bem humorado da ciência, que há muitos anos oferece belos momentos de prazer, a quem se interessa pelos fundamentos da física.

(13) DAVID MACAULAY, “A Catedral – História da sua Construção”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1979. Este autor, através de um texto simples, mas correcto e de desenhos transmitindo com rigor os processos construtivos, legou-nos obra extraordinária de divulgação. Na contracapa deste livro lê-se: “ Este livro ricamente ilustrado mostra passo a passo o processo intricado de crescimento de uma catedral, desde que o plano é combinado e o projecto traçado, até à escolha do sítio e ao contributo de cada artífice, à descrição de ferramentas e materiais. Os pormenores da construção são graficamente explanados, tanto para se fazerem os caboucos para os alicerces ou levantarem grossas paredes de pedra, como para os seus pilares, a flecha, a abóbada, o telhado, até à conclusão das torres e colocação dos seus sinos de bronze – o que torna o livro único no seu género.” Este autor tem outros textos também muito interessantes: (14) e (15)

(14)DAVID MACAULAY, “A Cidade – Planificação e Construção de uma Cidade Romana”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1978. Baseado na obra escrita do arquitecto, da antiguidade clássica, Vitrúvio (16), com este livro escrito e desenhado por David Macaulay, conseguimos acompanhar toda a construção de uma cidade romana.

(15) DAVID MACAULAY, “A Pirâmide”, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1979. Lamentamos que a Dom Quixote não tenha reeditado estas três magníficas obras de David Macaulay.

(16) MARCO LUCIO VITRUVIO, “Los diez libros de Arquitectura”, Editorial IBERIA, S.A., Barcelona, 1997. É uma leitura que deve deliciar qualquer profissional da construção intelectualmente empenhado.

Jorge F. Lourenço

8 comentários:

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ya, apreciei a abordgem deste tema, embora pudesse ter ido mais longe em termos de reintroduzir o pensamento nos cursos portugueses: deficiência mental e cognitiva é uma praga nacional que habita as universidades portuguesas. Burrecos diplomados! :(

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

E sem mudar (eliminar tal como faz a selecção natural) as "moscas" que usurpam e devoram esses espaços do conhecimento não podemos reintroduzir o pensamento nas universidades e salvar os jovens da burrice: as moscas não foram construídas pela selecção natural para pensar!

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

Ah, os burrecos pseudo-diplomdos que baniram das universidades o pensamento para reinar enquanto burrecos têm nomes, tal como os bois e as vacas dos Nuer (povo nilota). Nomear os opressores já é dar início ao trabalho de reintrodução do pensamento e da cultura nas universidades. É preciso coragem para mudar qualitativamente o estado de coisas estabelecido: a mediocridade visceral destes pseudo-universitários que reproduzem continuamente burrice à sua triste dimensão cerebral.

J Francisco Saraiva de Sousa disse...

*diplomados, claro...

Deixei uma adivinha ideológica para o físico divulgador da ciência: Qual é o físico presente na ausência na última frase que escrevi no comentário anterior? :)

guna disse...

Qual é o ramo da engenharia que não usa técnicas empíricas?

JOSÉ LUIZ FERREIRA disse...

Diz-se por piada que em qualquer parte do mundo uma paragem de autocarro é um pau espetado no chão, mas na Suíça é uma obra de engenharia. Quem conheça a Suíça sente que há nisto alguma verdade: em qualquer obra parece que gastam o dobro do betão que se gastaria noutro país.

O que nos leva a outra boutade, desta vez do grande Robert A. Heinlein: a arte do engenheiro civil está em fazer os seus cálculos com a máxima exactidão e depois reforçar tudo.

Não acredito que não haja uma componente empírica no trabalho do engenheiro moderno, assim como não acredito que não haja uma componente abstracta no trabalho do construtor medieval. O que pode variar é a proporção.

É a existência desta componente empírica, e a indefinição dos limites entre os saberes, que dão razão a Jorge Lourenço: se o engenheiro moderno fosse um puro técnico, o círculo fechar-se-ia e a sua actividade reduzir-se-ia, tal como no puro empirismo que se atribui aos construtores medievais, à mera aplicação de fórmulas.

Anónimo disse...

petição on line - Não à destruição de livros,

http://www.gopetition.com/online/28707.html

Madalena Madeira

Luís Silva disse...

Este blog morreu ou, pelo menos, anda moribundo. O Desidério ficou murcho com o facto de tantos terem levado à prática o seu direito ao insulto como arma argumentativa. A Palmira anda a pregar a sua fé por outras partidas. O Buescu nunca quis saber disto e os biólogos nunca lhe deram grande vida. Sobrevive o pobre Blog às custas da agenda do intelectualmente pobre Carlitos de Coimbra e das eternas querelas pedagógicas. Salva-se a Helena, que, neste blog, é Goa, Damão e Diu, ou seja, é quem dá algum sabor.

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