sábado, 11 de julho de 2009

"Poesia temperada com música" - 1

Em 31 de Dezembro de 2008, deixei a nota no De Rerum Natura que o único programa da Antena 2 da rádio dedicado à poesia e à música se extinguia com o ano. Na altura, percebi que o Os Sons Férteis, assim se chamava esse programa, ia fazer falta. E faz.

Ainda a propósito dele, falei com Paulo Rato que, despretensiosa e calmamente, deu voz a centenas de poetas e compositores durante quase quinze anos.

Como a conversa se alongou, reparto-a por dois ou três posts, consoante a temática que abordámos.


P: Como escolhia o Paulo a poesia que se dizia no seu programa e como é que a “temperava a com a música”?

R: Comecei por escolher "temas", numa interpretação bastante lata, sendo os primeiros: a própria poesia, a música e as artes plásticas. Depois, passei a utilizar um critério de "referências": os quatro elementos, as estações e outros. A ideia era utilizar uma fórmula que orientasse a selecção, para evitar repetir demasiado os mesmos autores, o que inevitavelmente aconteceria sem essa orientação. Pensei, desde o início, em aproveitar as efemérides para aprofundar um pouco mais alguns autores.

Após a aposentação, sabendo que não seria possível manter o programa por muito mais tempo, devido a disposições legais, empenhei-me em divulgar muitos poetas, sobretudo estrangeiros que, por falta de edições em português, seriam do conhecimento de um reduzido número de ouvintes interessados: foi essa razão de as efemérides passarem a ser quase uma constante.
Parte da programação de Dezembro de 2008 pretendeu ser uma homenagem a poetas que, além da sua qualidade literária, são também meus amigos. Foi, naturalmente, a única ocasião em que este critério foi utilizado.

Quanto à música, não pretendia que surgisse sistematicamente como simples "ilustração" do texto, embora algumas vezes isso acontecesse. Ocasionalmente, utilizei-a até como comentário irónico ou contraposição ao conteúdo do poema. Procurei partir da junção das duas componentes para chegar a um objecto diferente da sua soma, deixando aos ouvintes a possibilidade de fazerem as suas "leituras". Nunca tive nenhum critério imutável: como me contou o João Pereira Bastos, que era meu ouvinte assíduo ainda antes de ser Director da Antena 2, — "quando parecia que estavas muito "certinho", lá vinha uma maluqueira"...

Em relação a poemas (sobretudo em línguas estrangeiras) aproveitados por compositores para canções ou outras obras, pareceu-me sempre interessante utilizar trechos dessas peças musicais, por conterem uma "interpretação musical" do poema, a que se somava, quase sempre, a possibilidade de ouvir, pelo menos, parte do texto na sua versão original.

Também recorri a peças instrumentais inspiradas pelo poema ou pelo seu autor: foi o que aconteceu com não poucos programas com textos de Fernando Pessoa, que é referência de numerosas obras musicais de compositores das mais diversas partes do mundo. Usei, com alguma frequência, música popular e /ou étnica. Também utilizei, deliberadamente, música de menor qualidade ou em más interpretações, com intenções que, espero, não terão passado despercebidas à maioria dos ouvintes.

Sem carácter obrigatório, procurei acompanhar os poemas com obras da mesma época, por se inserirem no mesmo movimento artístico. O que também justifica o recurso muito frequente à música contemporânea. Mas também usei obras contemporâneas com textos antigos e vice-versa. Quando dedicava uma semana inteira a um poeta cuja obra fora alvo da atenção de compositores de diferentes épocas, procurava abranger essas abordagens tão diversas.
Tentei também divulgar a música, erudita ou genuinamente popular, dos países dos autores que escolhia: um dos casos mais inacreditáveis é o do Brasil, de que, em Portugal, praticamente só se conhece o Villa-Lobos.

P: Além da poesia e da música que ficou em si, o que lhe ficou mais d’ Os Sons Férteis?

R: O próprio programa me levou a alargar muito significativamente os meus conhecimentos musicais. Foi-me muitíssimo grato o retorno do programa: o apreço manifestado por pessoas que muito considero, intelectualmente e/ou pelas suas posições e intervenções cívicas; o apoio de muitos outros ouvintes e a atenção que prestavam ao programa, não raras vezes alertando para qualquer anomalia na sua emissão; os inúmeros pedidos de envio dos poemas, de identificação das edições de que constavam, ou dos trechos musicais e das gravações que os incluíam, o que me obrigou a muito trabalho "suplementar", mas gratificante — ainda que, por vezes, com meses de atraso, em particular quando dirigi os arquivos sonoros, creio que nunca deixei ninguém sem resposta.

Também foi francamente enriquecedora a colaboração de vários colegas que passaram pelo programa, na leitura de poemas, e que se foram afastando, por razões profissionais ou de reforma, e a dedicação e virtuosidade da Eugénia Bettencourt, que me acompanhou até final — e não se trata aqui de uma lista de vénias cerimoniais, a que sou completamente avesso, mas de evocar uma efectiva partilha cultural e estética e uma edificação de afectos.

Finalmente, o programa proporcionou-me o contacto, em absoluto não esperado, com muitos poetas, com quem estabeleci laços que vão de um cordial mútuo apreço a amizades fortes, o que constitui um património inapreciável e que me aquece o coração.

P: Terminou a sua nota de despedida de Os Sons Férteis dizendo “A poesia, essa, continua". Na altura em que a ouvi surgiu-me a pergunta que agora lhe faço: é um desejo ou uma certeza, quando termina um dos poucos programas que lhes era dedicado?

R: A poesia continua, sem cuidar dos desejos de cada um, ou da existência de programas de rádio ou televisão que lhe sejam dedicados. A sua divulgação é que pode ser descurada. Foi o que pretendi transmitir a quem me ouvisse: a poesia continua, com quem a cria, quem a lê, quem a desvenda a outros. E cada um pode recorrer àquilo que tem ao seu alcance, para não perder a poesia. Também desejo que a poesia volte às emissões da Antena 2.

Sabemos que continua a haver quem goste de coisas de que não pode usufruir, por falta de meios ou de oportunidade. Raras serão as pessoas que podem adquirir todas as obras musicais que gostam de ouvir (ou gostariam, se as conhecessem). A rádio (o serviço público) tem o dever de lhes dar isso: o prazer de voltar a escutar o que conhecem, a informação e a experiência do que não conhecem. O mesmo se dirá em relação à poesia.

É por isso que é tão importante a existência de um serviço público que possa proporcionar essa fruição a todos os amantes de coisas infelizmente excluídas pela cultura de massas e pouco atraentes para o negócio. Como são a música erudita ou a literatura. É por isso, também, que é tão importante ter em conta qual é, na realidade, o público que precisa do que uma programação lhe pode dar, e não apenas o "alvo" (target, em ignorantês), isto é, o público que se pretende atingir, de acordo com os ditames de uma das coisas mais imbecis que a "economia de mercado" criou — o marketing, em geral interpretado por umas criaturas embalsamadas em estado de virginal e convicta ignorância. Pode não parecer, mas há uma diferença de perspectiva… essencial.

O desejo que tenho é de que o serviço público de rádio e televisão consiga vencer os seus inimigos jurados e a irresponsabilidade de quem os serve. Ainda muito recentemente, a União Europeia excretou nova legislação, para apertar ainda mais o cerco ao serviço público, em geral, mas com consequências para o de rádio e televisão. Tudo em nome da sagrada "livre-concorrência", o bezerro de ouro dos dias de hoje, a que tudo se sacrifica — a democracia, a cultura, a liberdade (a sério).

Outra coisa muito importante que me ficou foram os convites para dizer poesia em sessões públicas, de que devo destacar uma especial colaboração com a Associação Promotora do Museu do Neo-Realismo e com a Livraria Círculo das Letras.

Imagem: Bibliothèque de Vieira da Silva

1 comentário:

Anónimo disse...

Que estranho... afinal bastava também ouvir o "Estação de Inverno", na Rádio Zero, para perceber que há outros pássaros que continuam "no ar".

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