Terceira e última parte da entrevista a Paulo Rato (ver as anteriores aqui e aqui). Sabendo que a sua formação académica não incluiu nem a poesia nem a música, que durante tantos anos divulgou na Antena 2 da Rádio, perguntei-lhe que percurso teve de fazer para se envolver com estas duas Artes.
“(…) é importante aprender o poema de cor, pois o poema decorado fica connosco e vai-nos revelando melhor, sempre que o repetimos, o seu sentido, e a beleza da sua linguagem e da sua construção.”
Sophia de M. B. Andresen (1993). Primeiro Livro de Poesia. Lisboa: Editorial Caminho, pág.185.
P: O Paulo Rato estudou engenharia. Há aquele estereótipo de que quem envereda por um caminho científico ou técnico não tem sensibilidade para as artes. Muitos exemplos como o de Jorge de Sena, o desmentem. Ainda assim, pergunto-lhe: como é que a poesia e a música aconteceram na sua vida?
R: A verdade é que enveredei pela engenharia… por engano. Em linguagem liceal da época: sendo bom aluno — com bons resultados a letras e a ciências — aos 15 anos, quando fui obrigado a escolher, estabeleci uma distinção errónea entre as duas áreas, comparando o esforço dispendido com as "notas" obtidas; ora, com a sua exactidão, as ciências recompensavam-me com médias mais elevadas do que as letras, de maior subjectividade, pelo que aquelas pareciam "mais fáceis". Também a influência dos professores foi marcante, pois, se tive uma notável professora de Português durante todo o 2.º ciclo, o mesmo não aconteceu nas restantes disciplinas de letras. Na outra disciplina onde poderia, bem acompanhado, desenvolver qualidades apreciáveis — o Desenho — calhou-me um distraidíssimo professor que, por uma vez que levei de casa um guache mais arrojado, logo concluiu que não tinha sido feito por mim; pelo que passei a apresentar-lhe trabalhos mais "infantilizados"... Com o bem-intencionado conselho paterno, optei por ciências... e nem sequer tive a sorte de um amigo meu que, chumbado no 6.º ano, logo se transferiu para letras, encetando um percurso que o levou a professor. De qualquer modo, quanto ao estereótipo, não passa disso mesmo.
Para chegar à poesia, creio que devo ir mais atrás. Comecei a ler com 4 anos, provavelmente por influência das lições que uma tia minha, professora primária, dava às duas filhas, uns anos mais velhas que eu... As recordações não são muito nítidas, só sei que os meus pais contavam que descobriram a habilidade quando deram comigo a ler um jornal.
Lá em casa havia duas estantes com livros mais antigos, herança de bisavô agricultor que, adquirida alguma largueza de dinheiros, comprou mobília de escritório e encomendou a um livreiro o enchimento da estante maior — com confusos resultados, da excelência à inanidade impressa!... — e avô, falecido precocemente, mas com interesses literários bem mais informados. Por outras estantes, espalhavam-se os volumes mais recentes, já adquiridos pelo meu pai, então modesto funcionário que, anualmente, na Feira do Livro, se desforrava da parcimónia das compras mensais, limitadas às colecções Miniatura (preciosa!), Vampiro e, mais tarde, Argonauta.
Com uma tal mina ao alcance, sem que alguém me proibisse de a ela aceder, depressa deixei as histórias infantis. Passei aos policiais da Vampiro, depois à Miniatura, acumulando com os habituais Cinco, as aventuras da Biblioteca dos Rapazes, mais o Salgari e a ansiedade semanal do Cavaleiro Andante, que acompanhei desde o primeiro número, publicado um dia antes de eu fazer 5 anos. Depois, um acontecimento decisivo: aos 8 anos, adoeci gravemente, com tuberculose (chamavam-lhe "primo-infecção"), que não me largou até aos 12.
Obrigado a repouso severo, só me restava brincar com uns bonecos que eu próprio desenhava e recortava e… sobretudo, ler (e engordar, com doses cavalares de cálcio!)? Parti ao assalto das tais estantes. Além de continuar a acompanhar as colecções já referidas, devorei Os Três Mosqueteiros (todinhos, até ao Visconde de Bragelonne), mais A Tulipa Preta (assim se chamava a "versão", de 1851), O Conde de Monte-Cristo e as suas duas sequelas — A Mão do Finado (que só muito mais tarde soube ter sido escrita por um português e corrido mundo como obra do Alexandre Dumas!) e o Filho do Conde..., de autoria honestamente assumida por outro escritor francês; o Vítor Hugo (Nossa Senhora de Paris, Os Miseráveis, O Homem que Ri,…); o D. Quixote (o verdadeiro, em quatro volumes!); etc. O Júlio Dinis, os romances e contos históricos do Herculano, algum Camilo, marcharam antes dos 10 anos... O único crivo era a minha capacidade de compreensão: do Eça, li A Relíquia (devem ter começado aí as minhas dúvidas religiosas...) e A Cidade e as Serras; os outros só uns anos mais tarde me interessariam.
Valha a verdade que, do muito que lia, bastos pormenores escapavam à tal compreensão — o episódio do encontro erótico do D'Artagnan com a Milady, aliás ilustrado numa gravura em que o mosqueteiro, de camisa de dormir e bigodes eriçados, perseguia, à volta de um leito com dossel, uma Milady de vestimenta semelhante e ombro descoberto, desvelando a infamante flor-de-lis, encerrava para mim um profundo mistério... De resto, os grandes enigmas de "interpretação" relacionavam-se quase todos com a sexualidade, o que de mais escondido subsistia na sociedade de então.
Penso que este percurso me deu, além de um primeiro e incipiente conhecimento de muitas obras e do treino na consulta de dicionários, um vocabulário mais vasto que o comum na minha idade, um estranho gosto pela diversidade ortográfica, que me tornava confortável o convívio com edições de idades muito diversas, um sólido alicerce para abordar outros géneros literários e… uma paixão pelas palavras e suas combinações.
No 1.º ano do liceu, a professora de Português, tendo encomendado uma redacção sobre o livro de que cada infante mais tinha gostado, pasmou com a minha preferência: A Loja de Antiguidades, do Dickens (o que eu tinha chorado!). Felizmente, não achou que eu estava a aldrabar, como o do Desenho. Mas os meus primeiros anos de liceu reflectiram a discrepância entre o saber livresco anarquicamente acumulado e uma realidade quotidiana que, em parte, me escapava, por falta de experiência dela. Um pouco (salvo seja!) como o Selvagem do Aldous Huxley.
Também havia poesia, nas estantes: além de várias edições d´Os Lusíadas — que ainda sobrevoei, com muitos saltos, à laia de romance de aventuras, mas de certeza um pouco mais tarde —, havia Herculano (o tal livreiro tinha depositado na estante maior tudo o que o senhor escreveu, incluindo os Opúsculos), Junqueiro — A Morte de D. João e A Velhice do Padre Eterno — entre outros que, na altura, não me seduziam.
Devo ter lido poemas nos livros da primária e nas colecções de revistas antigas. Mas o que recordo, como primeiro contacto compensador com um livro só de poesia, é uma selecção das Fábulas de La Fontaine, numa edição que reunia versões já existentes, de Bocage, Filinto Elísio e outros.
Não tenho, no entanto, certezas quanto ao avanço da poesia no meu interesse. Sei que li também muito cedo os poemas singelos (alguns nem tanto....) do Júlio Dinis e, embalado pelo génio "descritivo" do António Nobre, a maravilhosa 3.ª edição do Só, ilustrada, num couché que dava gosto. Mas não consigo datar essas leituras.
Entretanto, alguns colegas foram, naturalmente, recuperando terreno (eu era, de certo modo, uma aberração!); começámos a juntar-nos de acordo com interesses comuns, a falar de autores contemporâneos, a acompanhar a saída de alguns livros — o Vergílio Ferreira e o Mário Dionísio eram professores no nosso Liceu (o Camões), o Bernard da Costa também (e presenteou-nos — em actividade extra-curricular — com um pequeno curso sobre cinema).
Não sou capaz de organizar cronologicamente as leituras da adolescência (a não ser pelas datas de edição, quando o consumo era imediato). Devo ter-me interessado por alguns autores a partir do que estudávamos no liceu. A verdade é que continuei a ler muito (já havia televisão, mas era um objecto caro) e tinha ao alcance outros autores — russos, americanos e ingleses, franceses, italianos, brasileiros... A muitos regressei mais tarde, para aprofundar, com o paladar mais apurado, o que tinha sido tragado sem o vagar de degustação que exigia.
Mas retenho um outro marco importante, aos 15 anos, quando uma amiga da mesma idade, aluna da Aliete Galhós, me revelou o Mário de Sá-Carneiro, o Pessoa e a Florbela Espanca. E depois, Rimbaud e Baudelaire. Não duvido de que foi aí que a poesia começou mesmo a acontecer-me.
Quanto à música, a história é mais simples. Numa época em que havia apenas quatro estações de rádio e muitos programas usavam música clássica como indicativos e separadores (o Curado Ribeiro tinha um, no Rádio Clube Português, cujo indicativo era o início do 1.º Concerto para Piano de Tchaikovsky), essas músicas começaram a agradar-me; também gostava quando se sintonizava o Programa 2 da Emissora Nacional. Comecei a dar-lhe preferência, durante os anos de repouso forçado.
Por volta dos 15 ou 16 anos, frequentei um curso livre sobre História da Música, organizado pelo João de Freitas Branco na Gulbenkian, o que me ligou ainda mais ao prazer da música erudita.
É curioso que, na música chamada "ligeira", o meu interesse se fechou muito, fixando-se nos franceses — que então se ouviam tanto —, nos brasileiros e nalgum fado, que comecei a ouvir "ao vivo"; e depois, claro, na música de intervenção. O "nacional-cançonetismo" — como os internacionais-idem — nunca me seduziu, e suspeito que terá sido, precisamente, pela falta de qualidade e conteúdo das letras, que sempre me impacientaram.
P: George Steiner, que se define como um constante leitor, acha que a grande poesia que decoramos, ainda que a esqueçamos, no sentido de não a conseguirmos reproduzir por palavras, passa a fazer parte de nós, torna-se em nós. Tendo o Paulo decorado tanto, tenho curiosidade em saber a sua opinião sobre esta conjectura de Steiner…
R: Considero que tudo o que lemos, mesmo o que rejeitamos, acaba por integrar o que somos. Porque, nesse processo, aconteceu um diálogo, um encontro, um confronto. Mas o mesmo acontece com tudo o que vivemos. São afirmações que se tornaram lugares-comuns, mas não deixam de ser verdadeiras.
À excepção, talvez, de umas tantas frioleiras a que não se dá conversa, quem lê dialoga inevitavelmente com o que lê, questiona e questiona-se, interpreta, constrói novas ideias e abandona outras. Parece-me evidente que o que mais nos emociona, nos interpela, nos extasia, penetra mais profundamente no que vamos sendo: e isso acontecerá, em maior grau, com o que atinge uma maior qualidade artística.
Mas uma simples frase, ainda que magistralmente elaborada, dificilmente conseguirá expressar ou — talvez melhor — sintetizar toda uma percepção de um fenómeno ou conjectura sobre ele. Sínteses geniais, em círculo perfeito, como a Autopsicografia do Pessoa, são raríssimas.
No que, aparentemente, discordo de Steiner, é na restrição à "grande poesia" (ou ao que quer que seja de grandioso).
Por um lado, o que é grande para mim, não o é necessariamente para todos. Estou convencido, por exemplo, de que alguns autores, que hoje são remetidos para uma imerecida obscuridade, serão valorizados, por leitores e académicos de um futuro mais ou menos próximo, de modo bem diferente: ocorrem-me, entre outros, os nomes de António Salvado e Jorge Guimarães. Por outro lado, há pequenas coisas que nos marcam intensamente e, por vezes, um verso de um autor menor pode ser um clarão fulgurante que ilumina uma superfície baça.
Jamais me esquecerei de como um alentejano de poucas letras descreveu uma inundação, com esta simplicidade: «a terra gemia água». Ou de um internado no Júlio de Matos que, ao aproximar-se para me pedir um cigarro, concluiu as elucubrações que vinha murmurando com um «… Sim, porque o impossível acontece na Primavera».
Tenho para mim que na arte há lugar para os grandes, os pequenos, os bons, os assim-assim, os excelentes, os imensos. No meu programa incluí muitos poetas que nunca atingirão o patamar da "grande poesia", mas que fazem parte da poesia da língua em que criaram as suas obras e desempenharam um papel, mais ou menos relevante, nos caminhos das literaturas em que se integram, mas também nos das sociedades, povos, nações.
Uma coisa aprendi nas engenharias: a complexidade de tudo o que existe só permite aprofundar a o seu conhecimento isolando parte(s) de um todo; sendo conveniente nunca esquecer que esse todo continua a existir.
Muito obrigada, Paulo Rato.
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