quinta-feira, 27 de agosto de 2009

CAGLIOSTRO, O CONDENADO DE SAN LEO


Ontem à noite não estava lua cheia, mas sim quarto crescente, no fantástico céu italiano por cima da altaneira povoação de San Leo, muito perto da República de San Marino e da estância balnear de Rimini, a terra desse grande mágico do cinema que foi Frederico Fellini. Mas se estivesse lua cheia, teria sido possível, segundo a lenda, encontrar à beira da estrada o fantasma do Conde Cagliostro, aliás Giuseppe Balsamo (1743-1795), o renomado mágico, medium, curandeiro, maçon, aventureiro e viajante. Que se saiba, não apareceu a ninguém, apesar de terem sido muitas as pessoas que passaram por aquela estrada a caminho ou vindas do festival “Alchimia” (há quem chame a Cagliostro o último dos alquimistas), um dos maiores eventos de esoterismo em Itália e por isso mesmo uma boa atracção para os muitos turistas de Verão. Todos ficaram deslumbrados com o espectáculo pirotécnico de luz e som!

Com efeito, foi a 26 de Agosto de 1795 que Cagliostro (continuemos a usar o nome mais popular, embora o título de conde seja falso como aliás quase toda a história de vida que o próprio inventou, incluindo uma longevidade que lhe teria permitido conviver com Jesus Cristo) morreu, de apoplexia, numa diminuta cela do inexpugnável castelo renascentista de San Leo, com entrada só por uma abertura no tecto e com uma acanhada vista entrecortada de grades que nem dava para ver a Lua. Estava ali porque fora condenado em 1790 pela Inquisição romana à morte, por defender a maçonaria, e, não se sabe bem porquê, viu a sua pena comutada em prisão perpétua (Camilo Castelo Branco traduziu e publicou o processo sob o título de "Compêndio da Vida e Feitos de José Bálsamo Chamado Conde de Cagliostro ou O Judeu Errante", e há uma edição recente da Hugin com um título mais curto) . A prisão durou quatro anos, quatro meses e cinco dias, até que o presidiário acabou por sucumbir, na sinistra cela. A sepultura não foi cristã, não estando hoje assinalada. Apesar de o suposto conde não ter vivido uma longa vida, nalgumas lojas de San Leo os turistas podem comprar um licor de Cagliostro, muito alcoólico como convém, que é anunciado como o elixir da longa vida. Mas essa bebida, já tradicional na terra, teve agora de competir numa feira esotérica com beberagens sortidas mais baratas, vindas de todo lado, que prometem o mesmo ou ainda mais.

Vale a pena ir a San Leo, mesmo fora do dia do “herói” da terra. Até porque há outros heróis, mais valorosos e justamente mais conhecidos, que por lá passaram, como S. Francisco de Assis, que aí fez um sermão e que fundou perto o Convento de Sant’ Igne (onde há um fresco representando Santo António), Dante Alighieri, que refere San Leo no Purgatório da “Divina Comédia” (“A Noli e a San-Leo por árdua via / Com pés se vai, Bismântua assim se alcança/ Ter asas de ave aqui mister seria”), e Lorenzo de Medici, que ali construiu um palácio depois de ter cercado e conquistado o castelo. Para além da visita ao castelo, o turista pode e deve desfrutar da visita à catedral românica do século XII com um elegante campanário ao lado e uma igreja vizinha, também românica, que remonta ao século IX, no preciso sítio onde San Leo construiu o primeiro templo na localidade. Conta-se que a povoação de San Leo foi fundada pelo santo com esse nome, que veio no século V da costa dálmata, do outro lado do Adriático, evangelizar a península itálica, então ainda largamente pagã. Mas o que turista não pode, de modo nenhum, perder é a impressionante vista do cimo da falésia onde o burgo está alcandorado, que proporciona uma paisagem que chega, por um lado, ao castelo de San Marino e, por outro, ao mar. Para comer, e obviamente beber, recomendo o restaurante “Belvedere”, junto ao miradouro principal, onde se pode “al fresco” degustar uma Pasticciata alla Cagliostro (o nome é inescapável) acompanhado de um “vino rosso regionale”...

A história de Cagliostro é a muitos títulos curiosa e de tão grande e fantástica não cabe aqui. Mas posso fazer um resumo. Nascido em Palermo, na Sicília, tornou-se rapidamente um bandido, fugitivo e aldrabão... de grande sucesso. Chegou a altas posições em Roma, onde foi secretário de um cardeal, em Londres, onde terá participado em cerimónias com ritos maçónicos egípcios, e em Paris, onde esteve preso na Bastilha por suposto envolvimento no caso do colar da rainha Maria Antonieta, que antecedeu a Revolução Francesa. Em Paris os seus serviços de médico foram recomendados a Benjamin Franklin, tendo o cientista e diplomata americana feito referência ao estranho personagem. Cagliostro e a sua jovem mulher, Seraphina, encontraram-se numa ocasião com um outro aventureiro e fugitivo, o veneziano Giacomo Casanova (Casanova não a terá seduzido, mas há uma história picante sobre a oferta que Cagliostro fez de favores da sua mulher a um marquês em troca de lições de falsificação). Travou conhecimento com outros nomes famosos como os escritores alemães Goethe e Schiller, que logo o honraram com a entrada directa na literatura mundial. Se a sua carreira em vida terminou com a morte na solitária do castelo de San Leo, bem pode dizer-se que continuou depois e prossegue ainda hoje, a avaliar não apenas pela “romaria” de ontem a San Leo, mas também pelo número de referências ao seu nome a às suas histórias que encontramos na literatura, no teatro e no cinema.

O espectacular sítio de San Leo tem uma magia natural, mesmo sem o festival mágico de Verão, e está à espera de ser descoberto por quem ainda o não conhece. Escusado será dizer que, garantidamente, não há o perigo de encontrar, no caminho, o fantasma desse "aristocrata do embuste" que foi Cagliostro...

3 comentários:

claudioantunesboucinha disse...

não concordo.

Freire de Andrade disse...

Encontrei há anos num alfarrabista em Espanha o romance de "Mr. A. Dumas" Memorias de um Médico, em 2 grossos volumes com uma velha encadernação já bastante em mau estado, mas lombada em pele com letras douradas. O médico a que Alexandre Dumas se refere é exactamente José Balsamo, conde de Cagliostro, mas a vida deste está muito romanceada. Apesar da extensão devorei o romance, que é mais romance que biografia, de um fôlego.

Anónimo disse...

procure conhecer mais quem foi esse SER antes de maldizer Dele...

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