Por que se tornou José Afonso num mito? Porque tinha todas as condições para isso.
O talento, a inspiração, a originalidade, o modo de ser, o desprendimento pessoal, a bondade, a perseguição política que lhe fizeram, o pensamento utópico, o pensamento crítico, a curva da história em que viveu; por tudo, tudo, mas sobretudo pelo talento musical, que era, todavia, muito mais que musical, porque era a cultura na sua forma mais viva e pura.
José Afonso é uma conjugação humana e artística raríssima, que, por razões políticas, começou por simbolizar uma época e uma geração, mas que já é, e continuará a ser, muito mais.
Lembro-me bem o que significou, em Coimbra, o aparecimento das baladas, nos idos de sessenta. O frémito geral que na época se sentiu porque era uma música nova, mas que entroncava numa tradição antiga e ia, pelo espírito, pela sonoridade, pelos ambientes evocados, pelas sugestões provocadas, enraizar-se no arcaico da cultura portuguesa, numa medievalidade sentida como originária e essencial, numa estética que vinha ao encontro de um modelo melódico e de uma imagética que repousavam em memórias nebulosas e imaginadas, e que pareciam estar ali há muitos séculos, à espera de alguém.
José Afonso tomara essa força profunda e antiquíssima, com uma musicalidade a nascer das palavras, e palavras que emergiam da música e só nela faziam sentido, evocando idades em que os reis nasciam em Coimbra e pelos seus verdes campos andavam ainda pastoras, se ouviam canções e se dançavam bailias e bailadas.
A tudo isso ele deu voz, de uma maneira só aparentemente simples, e de muitos modos, numa contínua descoberta em que intuição e inspiração lutavam entre si; antes, não se sabendo para quê, nem se, mas sempre se conseguindo, depois, porque sempre, no fim, nascia o que há muito se esperava e a intuição inicial de beleza se reencontrava.
Como em toda a criação, sentíamos a força desse apelo, essa evocação, que era coimbrã, por certo, mas que vinha detrás e que ia muito para além, que envolvia tanto esses anos, nos princípios de sessenta, como o provir, numa premonição a que o futuro se sentiu obrigado a dar toda a razão, porque a beleza que trazia tinha uma força que o implicava.
Ouça-se de novo “No vale de Fuenteovejuna”, “Deus te salve Rosa”, “Verdes são os campos”, “Vai, Maria, vai”, “Cantares do andarilho” e percebe-se o que digo. José Afonso vai ao encontro da alma e da cultura portuguesa de um modo imediato, através de séculos de sensibilidade acumulada e decantada, criando, como sem querer, uma densidade poética, rítmica, melódica, afectiva em que nos sentimos mergulhados porque somos nós, é a nossa cultura no seu melhor.
Ele transformou-se em mito porque é a própria cultura portuguesa que se reconhece nele. Os que, à direita, o identificaram com a esquerda, e assim o rotularam, perseguiram e tentaram (tentam) esquecer, perdem o tempo e a raiva. Os que, à esquerda, se ficaram pelas canções de combate, embora elas tenham sido, como se sabe, uma terrível arma, também o não perceberam nem estão à sua altura.
A sua força mítica vem de muito mais fundo que a política, embora não se possa desprender dela, nem ele o pretendia, empenhado, corajoso e solidário como era.
João Boavida
Fotografia: José Afonso em Coimbra in http://www.triplov.com/helena/Zeca-Afonso/20Anos/Zeca-em-imagens/Zeca-Afonso-em-Coimbra.jpg
2 comentários:
Perguntas estúpidas, respostas cretinas:
"Por que se tornou José Afonso num mito? Porque tinha todas as condições para isso."
O argumento apresentado no texto é completamente circular. Ou seja, fala mas nada diz.
É um texto do João Boavida, esperavas o quê, demonstrações rigorosas?
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