domingo, 2 de janeiro de 2011

Cirurgiões e atletas

A leitura do texto do escritor Cristovão de Aguiar, aqui publicado, sobre um problema de (sua) saúde que se arrasta e os correlativos contornos do atendimento profissional que finamente descreve, coincidiu com a segunda leitura que faço, mais atenta do que a primeira, do livro Ser bom não chega, da autoria de Atul Gawande, professor catedrático de cirurgia em Harvard (Lua de Papel, 2009). Conduzida pelo texto do escritor, destaco as seguintes passagens do livro do médico cirurgião (páginas 16-22), que condensam o essencial do que nele se trata (sublinhados meus):

“O que é preciso para se ser bom numa coisa onde o erro pode acontecer com tanta facilidade? Quando era estudante e depois interno, a minha preocupação mais profunda era ser competente. Mas o que aquele interno sénior revelara naquele dia era mais do que competência – compreendera não só a forma como uma pneumonia normalmente evolui e deve ser tratada, mas também a maneira de a detectar e combater naquela paciente específica, naquele momento específico, com os recursos e os auxiliares específicos que tinha ao seu dispor.

Muitas vezes as pessoas procuram nos grandes atletas lições de desempenho. E, para um cirurgião como eu, os atletas têm realmente lições a dar – acerca do valor de perseverança, do trabalho árduo e da prática, acerca da precisão. Mas o êxito em medicina tem dimensões que não podem ser encontradas num campo de jogos. Para começar, há vidas em risco. As nossas decisões e omissões, consequentemente, são de natureza moral. Também enfrentamos expectativas assustadoras. Em medicina, a nossa tarefa é lidar com a doença e possibilitar que cada ser humano tenha uma vida tanto mais longa e liberta de fragilidades quanto a ciência permitir. Os passos são muitas vezes incertos. Os conhecimentos que é necessário dominar são simultaneamente vastos e incompletos. No entanto, espera-se que sejamos céleres e firmes (…). Também se espera que façamos o nosso trabalho de forma humana, com carinho e preocupação. Não é só aquilo que está em jogo numa situação concreta, mas também a complexidade do exercício da medicina que torna as coisas tão interessantes e, ao mesmo tempo, tão perturbadoras (…).

Como médicos, assumimos este trabalho pensando que é tudo uma questão de diagnósticos cuidados, competência técnica e alguma capacidade para criar empatia com as pessoas. Mas não é, como rapidamente descobrimos. Em medicina, como em qualquer profissão, temos de lutar contra sistemas, recursos, circunstâncias, pessoas – e também contra as nossas limitações. Enfrentamos obstáculos de uma variedade aparentemente interminável. E, contudo, temos de andar para a frente, melhorar, aperfeiçoar (…).

Os capítulos deste livro analisam três condições essenciais para o êxito em medicina – ou de qualquer esforço que envolva riscos e responsabilidade.

O primeiro é a diligência, a necessidade de prestar atenção suficiente ao pormenor, para evitar erros e ultrapassar os obstáculos. A diligência parece uma virtude fácil e de menor importância (basta prestar atenção, não é?). Mas não é nenhuma das duas coisas. A diligência é ao mesmo tempo fundamental e cruelmente difícil para o exercício da medicina (…)

O segundo desafio é fazer bem. A medicina é uma profissão profundamente humana. Como consequência, está sempre a ser perturbada por falhas humanas, falhas como a avareza, a arrogância, a insegurança, o equívoco (…)

A terceira condição para o sucesso é o engenho – pensar de novo. O engenho é muitas vezes incompreendido. Não é uma questão de inteligência superior, mas de carácter. Exige, acima de tudo, a vontade de reconhecer o fracasso, de não tapar o sol com a peneira – e de mudar. Resulta de uma reflexão deliberada, quase obsessiva sobre fracasso e de uma procura constante de novas soluções. Estes são comportamentos difíceis de cultivar – mas estão longe de ser impossíveis (…)

Melhorar é um trabalho constante. O mundo é caótico, desorganizado e incómodo e a medicina não escapa, de modo nenhum, a essa realidade. Para complicar as coisas, nós, na medicina, também somos humanos. Somos distraídos, fracos e estamos imersos nas nossas próprias preocupações. Mesmo assim, a vida de médico está ligada à vida de outras pessoas, à ciência, e nós vivemos no ponto de união desordenado e complicado entre as duas. Temos uma visão de responsabilidade. A questão, então, não é saber se aceitamos a responsabilidade. Pelo simples facto de fazermos este trabalho, já aceitámos. A questão é, uma vez aceite essa responsabilidade, como fazer bem este trabalho.”

Nota: Da obra referida e de outra o De Rerum Natura deu notícia aqui e aqui.

3 comentários:

joão boaventura disse...

De tudo, ficaram três coisas:

A certeza de que estamos sempre começando...
A certeza de que precisamos continuar...
A certeza de que seremos interrompidos antes de terminar...
Portanto devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo...
Da queda um passo de dança...
Do medo, uma escada...
Do sonho, uma ponte...
Da procura, um encontro...

Fernando Pessoa

joão boaventura disse...

Desta arte se esclarece o entendimento,
Que experiências fazem repousado.

Luís de Camões
(Lusíadas, Canto VI, Est. 99).

Rui Baptista disse...

O exemplo do notável cirurgião Gentil Martins bem documenta a destreza óculo-manual e de motricidade fina a que não é, por certo, estranha a sua prática e participação em provas olímpicas de tiro.

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