sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

O ESPAÇO E A ALMA


Meu Prefácio ao livro de poesia “O Espaço e a Alma. Poemas escolhidos”, do cientista, especialista em biotecnologia, e professor do Instituto Superior da Maia F. Xavier Malcata, que acaba de sair na editora Corpos:

O que é fazer poesia? E o que é fazer ciência? Em que divergem e convergem estas duas actividades humanas? Que se trata de duas actividades diferentes do ser humano será óbvio para toda a gente. Mas que possam ter algo de comum, embora menos evidente, é revelado pelo facto de haver poetas que se inspiram nos objectos e metodologias da ciência para escreverem os seus poemas, e pelo facto de haver cientistas que não desprezam a inspiração que lhes pode surgir de conteúdos e vias poéticas na prossecução dos seus trabalhos de pesquisa. E, ainda, pelo facto de haver pessoas que são simultaneamente poetas e cientistas, não encontrando contradição insanável na dupla actividade que professam.

Eu conhecia – e admirava – o cientista F. Xavier Malcata, professor catedrático na Escola Superior de Biotecnologia da Universidade Católica no Porto, doutorado em Engenharia Química pela Universidade de Wisconsin, nos Estados Unidos, e autor de uma vasta e reconhecida obra de investigação. Mas já não conhecia – e só agora passei a admirar – o poeta com o mesmo nome, que, neste livro, logo na Parte I (estando a lógica da divisão em partes exposta pelo autor), sob a égide do título “Cantos de Emoção”, explicita em dois simples versos de um soneto o que é “fazer poesia”:

“É fugir em transe, olhando sem ver –
É escrever o Mundo em grito e ilusão!”


Fica subentendido que fazer ciência será, parafraseando-o, “Fugir em transe, olhando a ver – / E escrever o Mundo com calma e razão!” Xavier Malcata não é o primeiro cientista que também faz poesia – lembro-me do norte-americano Roald Hoffmann (Prémio Nobel da Química de 1981); mas em Portugal, será um dos muito poucos que o fazem – lembro-me do físico Orfeu Bertolami.

Sobre esta magna questão das relações entre poesia e ciência, sobre as dissemelhanças e semelhanças entre elas, já se pronunciaram numerosos poetas e cientistas, assim como outros tantos críticos de uma e de outra actividade. O poeta Guerra Junqueiro (1850-1923) – que o autor refere no poema “Ínclito Porto”, na Parte III (“Ênfases de Ilusão”) – escreveu, no prefácio à “Morte de D. João” (Livraria Moré, 1874):

“A poesia é a verdade transformada em sentimento. A lei descoberta por Newton tanto pode ser explicada num livro de física, como cantada num livro de versos. O sábio analisa-a, demonstra-a, e o poeta, partindo dessa demonstração, tira dos factos todas as consequências morais, sociais e religiosas, traduzindo-as numa forma sentimental. A ciência, neste caso, dá o convencimento, a certeza; a poesia dá a emoção, o entusiasmo”.

Se a poesia aparece aqui como uma linguagem que expressa o real, com um registo próprio – e, portanto, de certo modo como uma consequência da ciência –, ela pode, por outro lado, também ser vista como a origem da ciência. Antero de Quental (1842-1891), contemporâneo de Junqueiro na “Geração de 70”, escreveu, numa carta a um seu amigo:

“O chão sobre que assenta a certeza de hoje formou-se pelos aluviões sucessivos da intuição antiga. O que é ciência foi já poesia: o sábio foi já cantor, o legislador poeta: e a evidência uma adivinhação, um admirável palpite, cujas profundas conclusões são ainda o espanto e porventura o desespero das mais rigorosas filosofias. E, se nadamos hoje em plena luz da razão, foi entretanto a poesia, foi essa doce mão que nos guiou por entre o pálido crepúsculo dos velhos sonhos. Velhos? Nós somos eternos.”

Fernando Pessoa (1888-1935), além de, sob o nome de Álvaro de Campos, ter equiparado a Vénus de Milo ao binómio de Newton, escreveu sob o seu próprio nome, mas colocando as palavras na voz do poeta Johann Wolfgang von Goethe, no poema dramático “Primeiro Fausto”, os seguintes versos:

“Do fundo da inconsciência
Da alma sobriamente louca
Tirei poesia e ciência,
E não pouca”.


Haveria mais. Mas devem chegar estes exemplos, que encontrei no interessante livrinho “Ciência e Poesia” (Portugália, 1955) do matemático António Lôbo Vilela para ilustrar as dissemelhanças e semelhanças entre fazer poesia e fazer ciência. Há uma certa cumplicidade, quando poesia e ciência se interpenetram – por vezes, não se sabe mesmo qual delas está primeiro e qual está depois. Estão, em muitas situações, as duas ao mesmo tempo. A própria associação da imaginação à poesia – que é feita (e bem), na linha aliás do que é vox populi, por Xavier Malcata –, não deve fazer olvidar que a imaginação é uma componente essencial do processo de descoberta científica. Como disse o físico Albert Einstein: “A imaginação é mais importante do que o conhecimento. O conhecimento é limitado. A imaginação envolve o mundo.” Imaginação e razão não se podem dissociar facilmente; se é que podem, de todo.

Para chegar a esta mesma conclusão bastará atentar em alguns dos poemas de Xavier Malcata, que partem de uma visão científica do mundo – decerto construída com a aliança da imaginação e da razão – para soltar a visão poética, isto é, deixar voar livremente a imaginação, a propósito de um evento, de um tempo ou de um espaço. Há outros poemas, onde a ciência está ou parece arredada e a poesia omnipresente, mas escolho alguns poemas onde a ciência e a poesia dividem fraternalmente o palco. Vejamos como o autor invoca a teoria da relatividade de Einstein no seu poema “Paradoxo de Natal” (da Parte III):

“Tempo e até espaço, em singularidade
Fundem-se – instantâneo e omnipresente são,
Desafiando as leis sábias da realidade
Numa história longa de imaginação.
Relatividade em campo, justifica
Como um volumoso e risonho astronauta
Todo o mundo corre, em diminuto instante.”


A física moderna, desta vez a teoria quântica em vez da teoria da relatividade, reaparece noutros passos, como no poema “Sublime elementar” (da mesma Parte III):

“Em filosófica, atroz dureza,
Heisenberg não permite que, incólume,
Fique então o núcleo: só na incerteza
Se confia. E o aumento do volume –
Bolhas são geradas tão breves,
Revela o que é mais elementar:
Tal energia, debaixo das neves,
Fugidio elo vai acrescentar.”


Num domínio mais próximo daquele em que exerce actividade o cientista Xavier Malcata, surgem umas notáveis Sextinas a um carbono quiral (da Parte IV, “Gritos de Realismo”) – que nos fazem lembrar alguns dos poemas do escritor e professor Vitorino Nemésio (1901-1978), contidos no livro “Limite de Idade" (Estúdios Cor, 1972) que dedicou ao biólogo Aurélio Quintanilha):

“Os electrões carregados –
Fuindo num mar de incerteza
E obrigatórios no acaso,
Em orbitais bem casados
(Híbridas são, de certeza)
Dão ligações, mas a prazo.”


Em “Arqueologia molecular” (da mesma Parte IV), o autor glosa a moderna e polémica questão dos organismos geneticamente modificados, associada de perto à investigação em biotecnologia que o cientista empreende no seu laboratório:

“Criam-se tais regras sem ter fronteiras
(Qual Craig Venter universal),
Que na agroquímica – a que é industrial,
Sem metabólicas, vis barreiras,
O microcosmos se vai alterar.”


Neste trecho, como aliás noutros, revela-se, sem qualquer dúvida, a dimensão humanista e ética do autor – uma dimensão que ajuda sobremaneira a fazer a ponte entre poesia e ciência.

Falando de tecnologia, encontra-se neste livro referência às questões bastante actuais da produção e consumo de energia, nomeadamente ao aproveitamento da energia eólica, no poema “Eólo renascido” (Parte III):

“Enchem a paisagem, cortam o horizonte –
Como sentinelas de metal aladas,
Como monstros em contínuo rodopio.
Com seus triplos braços, erguem-se imponentes,
Como se entre o céu e a terra fossem ponte.
Como cavaleiro andante disfarçadas,
Provocando D. Quixote em desafio –
Torres actuais, máquinas tão descontentes.


Somos levados imediatamente, neste e em vários outros poemas, a estabelecer uma analogia – e também, necessariamente, um contraste – com a poesia de António Gedeão, o pseudónimo do professor de Ciências Físico-Químicas Rómulo de Carvalho (1906-1997), que, em “Impressão digital”, escreveu: “São moinhos? São moinhos. / Vê gigantes? São gigantes.”

O autor também trata a questão das viagens espaciais, resultado tecnológico do conhecimento das leis de Newton – uma questão bem actual, agora que passam os 40 anos da primeira ida humana à Lua. Em “Balada de infinito” (Parte IV), lê-se:

“Eis compasso de espera – fica em órbita;
Cadeia a dois no módulo que parte,
A equipa longe, no vácuo perdido,
Desce, lenta, para a Tranquilidade.
Saltitando tão esbelto (não gravita),
O herói marca o chão como peça de arte.
Satélite cinzento, em que o homem ávido
Pula como gigante: é a Humanidade.”


Associamos de novo Xavier Malcata a Gedeão, o autor de “Poema do homem novo”, saído um ano depois de Armstrong pisar o solo lunar: “Lá vai ele. / Lá vai o Homem Novo / Medindo e calculando cada passo, / Puxando pelo corpo como bloco emperrado.” A associação é particularmente evidente – decerto uma grande e justa homenagem do autor a Gedeão, pois, na poesia como na ciência, só se pode ver mais longe se se estiver “aos ombros de gigantes” –, na “Ameaça maior em redondilha menor”, que lembra a famosa “Lágrima de preta”. Escreve Xavier Malcata:

“Encontrei uma gota,
Que estava a escorrer:
Transparente e fria,
Prestes a morrer.
Amostrei-a logo:
Usei a pipeta,
Olhei-a bem fundo –
Vi a coisa tão preta.”


Por outro lado, uma nítida diferença entre os dois poetas transparece se se cotejar, por exemplo, “Correrias de advento” (Parte II, “Suspiros de Bucolismo”), de Xavier Malcata, com “Dia de Natal”, de Gedeão – embora nos dois haja comunhão no tema, a crítica ao excessivo consumismo a que continuamos a assistir nos finais do ano. Outros, com mais sapiência e capacidade do que eu, poderão analisar os paralelismos e as obliquidades entre o consagrado autor de “Pedra Filosofal” e o presente autor, que decerto encontrou inspiração em quem tão bem soube urdir ciência e poesia.

Um prefácio deve ser breve – como um acepipe que abre caminho para o saboroso prato principal, que é a obra propriamente dita. Assim, e uma vez que a última palavra será, como deve ser, a do poeta Xavier Malcata, dou (por ser incapaz de dizer melhor) a minha última palavra ao poeta Gedeão – que, no último poema, intitulado “Suspensão coloidal”, do seu livro “Máquina do Fogo” (Atlântida, 1961), tão bem resumiu a complexidade e a dificuldade das relações, decerto persistentes mas continuamente ambíguas, entre ciência e poesia:

“Postulados e leis e lemas e teoremas,
tudo o que afirma e fura e diz sim,
teorias, doutrinas e sistemas,
tudo se escapa ao autor dos meus poemas.
A ele e a mim.”

5 comentários:

Anónimo disse...

Magnífico texto, talvez o melhor que alguma vez li sobre essa transcendente relação entre a ciência e a poesia - ou a ténue fronteira entre a descrição do real e a sua reinvenção. Afinal o génio criativo que constrói a natureza humana, na sua limitação temporal.
Parabéns!
Daniel de Sousa

Anónimo disse...

Poesia não se inventa,
não se faz propriamente;
o que se faz é somente
o poema que a sustenra,
não passando a locução
de uma força de expressão.

JCN

Anónimo disse...

Entre poesia e ciência
não vale a pena buscar
a mais leve dissidência,
pois elas andam a par!

JCN

Anónimo disse...

SENSIBILIDADES

As mais das vezes, quanto à poesia,
eu tenho a sensação de estar a ler
uma coisa qualquer sem perceber
o que pretende aquela algaravia.

Nada me diz ao sentimento, nada;
não me deleita, não me faz sonhar,
não me consegue o espírito elrvar
e francamente até me desagrada.

Em primeiro lugar tem de ser bela
nem que se trate de uma bagatela
em forma musical de qualidade.

Se não me fala à sensibilidade,
prefiro ler um bom naco de prosa
ou mesmo uma novela cor-de-rosa!

JOÃO DE CASTRO NUNES

Anónimo disse...

Não basta ser cientista
para se ser um poeta,
pois nem todo o cornetista
sabe tocar a trombeta!

JCN

NOVA ATLÂNTIDA

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