sábado, 15 de janeiro de 2011

Hadopi: mas afinal quem são os piratas?


Entrou finalmente em vigor a polémica lei anti-pirataria francesa, cuja aplicação está a cargo da recém-criada Alta Autoridade para a difusão de obras e protecção de direitos na Internet (HADOPI, na sigla). Esta lei, conhecida informalmente por “lei hadopi”, visa acabar com os populares sistemas de partilha de ficheiros Peer-to-Peer. As empresas provedoras de serviços de Internet (ISPs) vêem-se na obrigação de revelar a identidade dos proprietários dos IPs detectados em actividades ilegais de partilha. Um primeiro aviso segue por email, um segundo por carta registada e a detecção de uma terceira infracção implica a desconexão do cliente, que fica proibido de subscrever um novo contrato por um período de três meses a um ano. De notar que esta medida não impede a possibilidade de se instaurar paralelamente um processo judicial (cuja pena pode ir até 3 anos de prisão e 300.000 euros de multa) e de um outro, civil, que pode culminar no pagamento de uma indemnização à entidade lesada.

Embora os primeiros emails de aviso tenham começado a ser enviados em Setembro passado (à razão de cerca de 10.000 por dia) muitos observadores consideram estas medidas megalomaníacas e totalmente inaplicáveis na prática. A desconexão tem de ser ordenada por um juiz (uma primeira versão da lei que não o previa foi vetada pelo Conselho Constitucional) o que coloca vários problemas legais. Para além da muito questionável vigilância informática a que qualquer consumidor fica submetido, não há garantia do download ter sido feito pelo titular do contrato, sendo certo que não existe nenhum sistema totalmente à prova de intrusos nem nenhum IP que não possa ser “raptado”. Por outro lado, milhares de ficheiros legais são transferidos diariamente por Peer-to-Peer, e não há também garantia de se conseguir inventariar sistematicamente o que cada utilizador descarregava exactamente num dado momento. Para além disso, teme-se que o número de infractores (estimado em vários milhões) venha a entupir completamente o sistema, impedindo uma análise séria e objectiva da situação de cada um. Finalmente, há ainda o problema da factura. O custo de implementação desta lei foi estimada em cerca de 50 milhões de euros por ano, mas percebe-se agora que o valor real será francamente superior. O Governo e os ISPs não concordam quanto a quem deve suportar este custo. Aliás, estava previsto o envio de cerca de 50.000 emails de aviso por dia, número esse que desceu para 10.000 por razões financeiras.

Por outro lado, “a tecnologia caiu à rua”: não existe nenhum sistema de monitorização oficial que não possa ser contornado. O The Pirate Bay anunciou que vai propor aos internautas franceses a anonimização dos seus downloads por cinco euros por mês, através do sistema Ipredator, que utiliza uma ligação privada (vpn) impossível de vigiar. Sistemas como o Tor, totalmente gratuitos, poderão também vir a tornar-se numa solução anti-hadopi. Muitos defendem que a verdadeira solução para a pirataria passa pelo pagamento de uma taxa global de direitos de autor (curiosamente, o valor proposto é também de cinco euros por mês) e pela melhoria da oferta, em termos de preço e de qualidade, dos descarregamentos legais.

Em breve saberemos se esta legislação faraónica terá algum efeito ou se a França se tornará alvo da chacota internáutica mundial. O que aliás já começou a acontecer: o lançamento oficial desta campanha ficou marcado por uma deliciosa ironia, que mostra bem a dificuldade que há em implementar este tipo de legislação. No dia 8 de Janeiro de 2010, o Ministério da Cultura fez a apresentação pública do logotipo da Hadopi. Certamente que o leitor não terá notado nada de estranho na imagem acima, mas o tipo de letra utilizado é bem conhecido no meio profissional: trata-se da fonte Bienvenue, criada em 2000 pelo designer Jean-François Porchez para uso exclusivo da France Telecom.
Este tipo de letra é relativamente fácil de “adquirir” na Internet...em sites duvidosos! Ou seja, o logo da Hadopi é pirateado: a fonte usada foi descarregada ilegalmente - violando direitos de autor - e a sua utilização oficial por parte de um orgão de estado torna o caso ainda mais grave!

Quanto à tentativa de salvar esta situação, foi pior a emenda do que o soneto: passados três dias, às 14h22 do 11 de Janeiro, é publicado um novo logotipo, esclarecendo-se que a apresentação pública do primeiro se ficou a dever a um “erro de manipulação informático”. Tratar-se-ia apenas de um estudo e não do logotipo definitivo. Desta feita a fonte usada foi a Bliss, comercializada pela Jeremy Tankard Typography. Até aqui nada a apontar, não tivessem sido os direitos de utilização desta fonte adquiridos junto da sociedade britânica na própria manhã do dia 11, o que deita por terra a explicação avançada de “erro de manipulação”.

Entretanto, Jean-François Porchez deu instruções ao seu advogado para avançar com uma acção contra a Alta Autoridade para a difusão de obras e protecção de direitos na Internet por...violação de direitos na Internet na difusão de uma obra!

1 comentário:

Carlos Paulo Freitas disse...

Já que se fala em piratas com telhados de vidro, partilho uma notícia que li há dias:
http://aeiou.exameinformatica.pt/maiores-editoras-vao-pagar-45-milhoes-de-dolares-por-pirataria=f1008329

A internet e a partilha de ficheiros vieram para ficar. Em vez de falsos moralismos, de chatear os "piratas" que não lucram directamente nada com isso, comecem é a repensar a distribuição de lucro de quem serve a internet, e não nas caças à partilha. Não sejamos hipócritas. Quem é que nunca fez um download alegadamente ilegal, mesmo inconscientemente?

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