domingo, 23 de janeiro de 2011

Os maus hábitos de trabalho dos alunos portugueses



“A maior paixão da humanidade é iludir a realidade” (Sigmund Freud, 1856-1939).


Da oportuna entrevista de Steiger Garção, professor da Universidade Nova de Lisboa, intitulada “Alunos trabalham pouco”, publicada no Expresso (22/01/2000), e transcrita em recente post de Helena Damião intitulado “As (boas) armadilhas pedagógicas”, na tentativa de obstar a uma das principais características de um tempo em que as pessoas se fecham nas suas divergências sem as discutir verdadeiramente para que a opinião pública as possa avaliar sem qualquer e indesejável parti pris, destaco duas questões:

1.ª - A introdução de aulas sujeitando algumas turmas a aulas teórico-práticas “com qualquer coisa parecida com as antigas chamadas do secundário”.

2.ª - O reconhecimento de os alunos “não serem maus nem pouco espertos, mas possuírem maus hábitos de trabalho provenientes do secundário”.

Saúdo a adopção de práticas colhidas no ensino secundário, mas, por outro lado, tenho, de certo modo, inquietante a exclusiva referência aos maus hábitos dos alunos do ensino secundário. Ao assacar-se este desastroso estado de preguiça exclusivamente aos alunos vindos do secundário, sem ter em conta a mochila anterior de uma crassa ignorância, corre-se o risco de tomar a nuvem por Juno atirando para as largas costas deste grau de ensino essa responsabilidade (único baluarte de um ensino sério e esforçado com exames nacionais de avaliação) quando o mal maior reside no contingente de alunos que entraram na Universidade com classificações negativas do secundário, sem o travão do extinto exame de aptidão que evitava que verdadeiros “analfabetos” transpusessem os umbrais da Universidade. Esta invasão de verdadeiros bárbaros nos claustros seculares e respeitáveis da Universidade Portuguesa mereceu a crítica pública do falecido professor catedrático de Letras da Universidade de Coimbra e homem prestigiado da Cultura, Aníbal Pinto de Castro. Em corajoso alerta, pediu ele com veemência: “Não destruam. Não cedam. Não tenham medo porque a Universidade não pode ser uma instituição de caridade. Para isso há os Asilos e a Mitra. Não pode ser um hospital de alienados” (Diário de Coimbra, 27/11/2005).

Razão de justo louvor para com os professores do ensino liceal (actual ensino secundário), encontrei-a eu numa belíssima crónica, intitulada “O render dos heróis” , da professora universitária e festejada bióloga Clara Pinto Correia. Talvez porque, como escreveu Lacan, “o mundo das palavras cria o mundo das coisas”, começa ela por esclarecer “mesmo que liceu seja uma palavra que já se não usa, dá jeito, no caso vertente, para simplificar o discurso e toda a gente perceber a que é que ela se refere”. E continua ela: “A barbárie não anda longe. Nunca andou. É contra o seu fundo de trevas que se desenha o brilho da civilização. É nesse mesmo fundo que, de tempos a tempos, o brilho se dissolve e a escuridão total desce sobre a floresta. É cíclico. Já aconteceu antes. Mais que uma vez. . Não temos nenhuma razão, pelo contrário, para pensar que não volte a acontecer. Para evitar que assim seja temos nos professores do liceu a mais importante das nossas armas. Devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto”.

Encontravam-se os então chamados professores do liceu (grau de ensino que ia do 5.º ao 12.º anos de escolaridade, numa terminologia dos nossos dias) habilitados com uma licenciatura universitária. Anos após o 25 de Abril, na fúria devastadora de romper com o passado, a docências dos actuais 2.º e 3.º ciclos do básico passou a ser desempenhada, simultaneamente, por licenciados universitários e das escolas superiores de educação tendo como forma de ingresso na docência apenas a nota de curso, estabelecendo-se, assim, um critério que não teve na devida conta a dificuldade e a exigência de cada um destas formas de habilitação como que em vassalagem ao princípio de quanto pior a formação docente melhor os resultados dos discentes. Ou seja, questionar a necessidade de uma exclusiva formação universitária para a docência sequente ao ensino do 1.º ciclo do básico (antigo ensino primário) foi facilitar o caminho às modernas (?) teorias pedagógicas assentes numa deficiente preparação científica desses agentes de ensino.

O mau uso das novas tecnologias da informação vieram secundarizar a consulta a bibliotecas escolares ou pessoais, informando, de imediato,e sem qualquer esforço de memorização, por exemplo, e descontado o exagero, os ignorantes da História de Portugal sobre o nome do primeiro rei da 1.ª dinastia, pano para mangas de intermináveis discussões. Razões do coração (como é sabido, o coração esconde os melhores e piores sentimentos ) em defesa do coitadinho que não estudou por carências económicas, excluindo, ab initio, situações de pura cabulice ou de querer entrar no mercado de trabalho, muitas vezes, ao serviço de simples extravagâncias de adolescentes, enquanto outros queimavam as pestanas em noites insones com dispêndio das bolsas dos progenitores, vieram agravar a situação. Interesses partidários ou sindicais que igualaram desiguais, mais não foram que punhais que rasgaram as fímbrias do manto do professor do actual ensino secundário em luta constante e denodada para que a escuridão total não desça sobre uma terra queimada, até, pela própria aberrante e nunca justificada crisma do ensino liceal para ensino secundário.

Se a esta enxurrada de alunos deficientemente preparados, que a universidade se viu coagida a aceitar, juntarmos o actual contingente de gente oriunda das ridículas "Provas de Acesso ao Ensino Superior para maiores de 23 anos", deixadas ao livre critério das instituições de acolhimento que lutam por cêntimos para manterem à tona de água saldos deficitários ( em termos de contas de merceeiro e não do real valor da educação), como qualquer indivíduo que prestes a afogar-se luta por uma bóia de salvação, temos uma perspectiva do que se passa no ensino superior português escravizado a um novo rei Midas.

Julgo ter ficado bem claro que não defendo, de forma alguma, a impossibilidade de verdadeiros e excepcionais autodidactas (não aqueles, definidos pelo poeta brasileiro Mário Quintana, como “ignorantes por conta própria”) terem acesso honroso à Universidade. Bem pelo contrário! Apenas reprovo a extinção dos antigos e exigentes "Exames Nacionais de Acesso à Universidade", os também chamados “Exames Ad Hoc”. Embora tarde e a más horas (mas como diz o ditado “mais vale tarde do que nunca”), o ministro Mariano Gago, em medida de aplaudir, acaba de fechar esse portal de descarado acesso a indivíduos oriundos das "Novas Oportunidades".

Mas a verdadeira génese de maus hábitos de trabalho vem de anos de escolaridade anteriores, isto é, de um ensino do 1.º ciclo do básico que permite a passagem de alunos para o 2.º ciclo sem saberem ler, escrever ou contar, e deste ciclo para o 3.º continuando a passar e a terminar os estudos sem exigentes exames nacionais que avaliem e consubstanciem os diversos patamares de aquisição de conhecimentos, em desrespeito pelo princípio defendido por Saint-Exupéry: “Se cada tijolo não estiver no seu lugar não haverá construção”.

E desta insólita forma, chega-se à triste situação do ensino universitário tentar recuperar as deficiências do actual ensino secundário ( repito, ainda o único baluarte de um ensino sério a cargo de gente séria que luta desesperadamente contra medidas legislativas em que são piores as sucessivas emendas do que o respectivo soneto) tornando a Universidade num escoador de detritos de ignorância originários das primeiras letras. Desta forma, são feitas orelhas moucas às palavras “loucas” de Maria Filomena Mónica: “Pela sua natureza, a universidade é uma instituição que deve ser frequentada pela aristocracia intelectual, que tem como vocação a universalidade e que deve adoptar como critério a exigência”.

Como nos avisa a gente simples mas sábia do povo, "quem torto nasce tarde ou nunca se endireita”. “Ora, o ensino em Portugal tarda em endireitar-se e mais tardará se continuarmos a percorrer o caminho do facilitismo que enche o ego dos nossos governantes que se preocupam com a percentagem da população escolar ou escolarizada, descurando a respectiva qualidade.

Ao serviço desta finalidade as estatísticas estão sempre à mão de semear porque, como disse o ministro da Educação do antigo regime Leite Pinto, “há duas maneiras de mentir: uma é não dizer a verdade; outra fazer estatística”. Ou seja, o prestígio da pátria passou a depender de estatísticas para consumo externo da Comunidade Europeia. E a pátria comovida aplaude e agradece aos seus aparentes benfeitores!

11 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Ora, aqui está, prezado Rui Baptista.

Quem quiser (e souber) ler, que leia.
Além de tudo, achei "deliciosa" a sua referência à "aberrante e nunca justificada crisma do ensino liceal para ensino secundário". Secundário porquê? Por lhe quererem destruir a importância?
Sobre a desadequação do termo ouvi um dia falar o Professor Aguiar e Silva, numa feira do livro em Braga, e senti-me esclarecido...
Estamos, porém, condenados à constante "inovação", ainda que seja só do palavreado... Mas, mesmo aí, mal, como "subjugada" mas não convencidamente constatamos.
Resta que ainda vamos podendo desabafar. Por enquanto.

António Daniel disse...

José Batista, o que disse Aguiar e Silva? Seria interessante saber.

José Batista da Ascenção disse...

O que disse, basicamente, é que coisa secundária significa etimologicamente coisa que está em segundo lugar, de menor importância, enfim, secundária...
E falava precisamente da "inadequação" ou "má escolha", ou da sua "fraca simpatia" relativamente ao termo aplicado aos anos de ensino dos jovens a partir dos quinze anos, antes de entrarem nas universidades.
Na altura tomei apontamentos, que devo ter guardados, mas que agora não tenho à mão (estou ainda a seguir os resultados das presidenciais).
Enfim, o sentido geral foi este.

Anónimo disse...

Longe de ser grosseria
ou primar pela insolência,
o humor, mais que a ironia,
é o sal da inteligência!

JCN

Fartinho da Silva disse...

Caro Rui Baptista,

Está muito reaccionário :)

Rui Baptista disse...

Caro Fartinho da Silva: Mas não tão reaccionário quanto seria desejável perante as burrices (ou mesmo malfeitorias) que se têm cometido, e continuam a cometer, contra um ensino que deixou de ter dignidade, pese embora o esforço de pessoas que tudo fazem para combater este estado de coisas.

Mas o que mais me impressiona no meio de tudo isto é ler testemunhos escritos em luta constante contra questões meramente laborais não se importando nada ou pouco com questões que dizem respeito a um melhor ensino paras os nossos filhos ou netos.

Não que eu não tenha como importante as questões laborais dos professores. Nada disso!Só não posso ou quero deixar de lamentar que estas últimas questões subalternizem as primeiras pondo em jogo um Portugal mais culto e melhor preparado para enfrentar os desafios do futuro que passa por um melhor conhecimento científico ao serviço de tecnologias cada vez mais sofisticadas.

Idiosssincrasia minha? É possível! Ou será, antes, o rememorar de um período conturbado da nossa história recente, de três décadas e tal, em que se exigia que o sapateiro fosse capaz de pôr meia-solas e a quem se quisesse inscrever nos sindicatos docentes bastava que pagasse as respectivas quotas mesmo que fosse um remendão da ensinança. O que importava mesmo, era pôr gente dos partidos políticos que lançasse o caos no ensino. Um caos em que a ordem tarda em chegar.

Felizmente, comentários, por exemplo, como os seus, e do Colega José Batista da Ascenção, ajudam-me a prosseguir nesta luta. Luta em que não espero o aplauso de massas acéfalas que se acoitam no silêncio cúmplice, ou simplesmente cómodo, de não discutirem frontalmente assuntos com a gravidade destes. Este um simples desabafo de umas linhas escritas ao correr da pena...

Rui Baptista disse...

Meia-solas, não; meias-solas, sim.

Anónimo disse...

Por causa das meias-solas
eu já tinha engatilhada
uma das minhas pistolas,
acabando o caso em nada!

Rui Baptista disse...

Caro Anónimo (18:54): Livrei-o a tempo de gastar pólvora com uma simples gralha! E livrei-me eu de um puxão de orelhas...

Anónimo disse...

Longe de ser grosseria
e tão-pouco de insolência,
o humor, mais que a ironia,
é o sal da inteligência!

JCN

Anónimo disse...

Altero o 2º verso da quadra anterior para:

ou porventura insolência,

JCN

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