quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010

É possível sobreviver sem avaliação do desempenho?

No Jornal Público de 30 de Janeiro de 2010 foi publicada uma entrevista de Ana Gerschenfeld a Christophe Dejours, professor no Conservatoire National dês Arts et Métiers, em Paris.

Nessa entrevista, o especialista com obra reconhecida na área da Psicologia do Trabalho e da Acção apresenta o essencial das análises que tem feito sobre a avaliação individual do desempenho profissional que está a ser implementada em inúmeros países, nos mais diversos sectores, em instituições e empresas públicas e privadas, sob o pretexto de aumentar a qualidade do trabalho e a igualdade e justiça social.

Trata-se de análises que não deviam ser ignoradas porque há nelas factores de sobra para nos preocuparmos directamente e a curto prazo com a saúde física e psicológica dos profissionais, a qual se reflectirá no funcionamento social e técnico das instituições onde estão integrados, que, por sua vez, se reflectirá no atendimento às pessoas que a elas se dirigem. Menos directamente e a mais longo prazo, mas de modo mais sério e profundo, reflectir-se-á no modo como nos vemos e vemos os outros, como encaramos a nossa existência e que sentido lhe atribuímos, como estruturamos os valores que fundam a cultura em que nos estruturámos como pessoas.

Da referida entrevista destaco uma passagem, pela alternativa que aponta, pela possibilidade que abre de repensarmos a relação que temos ou devíamos ter com aquilo que fazemos na vida e com a vida.
"Uma empresa que defendesse os princípios da liberdade, da igualdade e da fraternidade conseguiria sobreviver no actual contexto de mercado?
Hoje, estou em condições de responder pela afirmativa, porque tenho trabalhado com algumas empresas assim. Ao contrário do que se pensa, certas empresas e alguns patrões não participam do cinismo geral e pensam que a empresa não é só uma máquina de produzir e de ganhar dinheiro, mas também que há qualquer coisa de nobre na produção, que não pode ser posta de lado. Um exemplo fácil de perceber são os serviços públicos, cuja ética é permitir que os pobres sejam tão bem servidos como os ricos – que tenham aquecimento, telefone, electricidade. É possível, portanto, trabalhar no sentido da igualdade. Há também muita gente que acha que produz coisas boas – os aviões, por exemplo, são coisas belas, são um sucesso tecnológico, podem progredir no sentido da protecção do ambiente. O lucro não é a única preocupação destas pessoas. E, entre os empresários, há pessoas assim – não muitas, mas há pessoas muito instruídas que respeitam esse aspecto nobre.

E, na sequência das histórias de suicídios, alguns desses empresários vieram ter comigo porque queriam repensar a avaliação do desempenho.
Comecei a trabalhar com eles e está a dar resultados positivos.

O que fizeram?
Abandonaram a avaliação individual – aliás, esses patrões estavam totalmente fartos dela. Durante um encontro que tive com o presidente de uma das empresas, ele confessou-me, após um longo momento de reflexão, que o que mais odiava no seu trabalho era ter de fazer a avaliação dos seus subordinados e que essa era a altura mais infernal do ano. Surpreendente, não? E a razão que me deu foi que a avaliação individual não ajuda a resolver os problemas da empresa. Pelo contrário, agrava as coisas. Neste caso, trata-se de uma pequena empresa privada que se preocupa com a qualidade da sua produção e não apenas por razões monetárias, mas por questões de bem-estar e convivialidade do consumidor final. O resultado é que pensar em termos de convivialidade faz melhorar a qualidade da produção e fará com que a empresa seja escolhida pelos clientes face a outras do mesmo ramo. Para o conseguir, foi preciso que existisse cooperação dentro da empresa, sinergias entre as pessoas e que os pontos de vista contraditórios pudessem ser discutidos. E isso só é possível num ambiente de confiança mútua, de lealdade, onde ninguém tem medo de arriscar falar alto. Se conseguirmos mostrar cientificamente, numa ou duas empresas com grande visibilidade, que este tipo de organização do trabalho funciona, teremos dado um grande passo em frente."

5 comentários:

José Batista da Ascenção disse...

Quem tem uma posição que me parece muito inteligente e sensata sobre este assunto, no que respeita a professores, é a escritora Lídia Jorge, de acordo com depoimento concedido ao jornal "Público", há não muitos dias. Vasco Pulido Valente escreveu um dia, no mesmo jornal, que os professores não devem pura e simplesmente ser avaliados.Por mim não digo tanto. Mas penso que é absolutamente fundamental averiguar e proceder com rigor em matéria de selecção no acesso à profissão. Não aceito que possam ser admitidas como professores pessoas que lêem, escrevem e se expressam mal. E desconhecem aspectos básicos de cultura geral, bem como ignoram conteúdos essenciais das suas áreas disciplinares. E, com as deficiências de muitas das instituições formadoras de professores no nosso país, não são poucos os casos em que tais maleitas se tornam manifestas... Ora, para casos destes, não são os actuais esquemas de avaliação que vão resolver o que quer que seja. E aqui chegados não vejo outra possibilidade que não fosse sujeitar todos os professores a provas de língua portuguesa e conteúdos específicos das suas disciplinas. O que eles não iriam, quanto a mim mal, aceitar. Também me parece necessário que os professores se sujeitem periodicamente a exames médicos para que seja atestado se mantêm as suas faculdades físicas e mentais, digamos que de dez em dez anos, do mesmo modo que se faz, suponho, para se manter a carta de condução.
Agora, sistemas de avaliação em que os professores competem directamente uns com os outros, em ambientes restritos, onde há amizades e incompatibilidades, influências e interesses, é caminho certo para as maiores injustiças. Ainda por cima num país e numa sociedade medularmente sujeita à cunha, ao compadrio e à corrupção como é a nossa. Só não o vê quem se faz de cego. E por outro lado, os pressupostos da paranóia avaliativa que tomou conta de todos os serviços, nem sequer tem por base o melhoramento deles,antes a justificação para cortar despesas em determinados sectores e propiciar relações de poder aos mais afoitos e menos escrupulosos.
Mas esta febre vai passar-nos, mais ano menos ano. Por um lado todos ou quase todos vão batotá-la o mais que puderem e por outro lado o que não se gasta/desperdiça com certas actividades menos justificáveis vai esbanjar-se na montagem dos próprios sistemas de avaliação.
E quando o dinheiro escassear, lá se extinguem os excessos avaliativos.
Entretanto, eu e tantos outros professores que optámos por esta vida vamo-nos confrontar com dores imensas, ver e sofrer o que desejávamos não acontecesse e resistir enquanto a nossa (mais ou menos frágil) saúde o permitir. Bem fizeram aqueles que, mesmo com algum prejuízo, fugiram a tempo. E alguns bem mereciam o que lhes pagavam.
Pobre país.

António disse...

Muito interessante este artigo, Helena. E sábias as suas palavras sobre o impacto que este "fascismo empresarial" poderá ter no modo como nos olhamos enquanto homens.

Em breve, espero eu, se perceberá que esta insensata avaliocracia traz mais prejuízos do que benefícios. Um dia os empresários e administradores perceberão que precisam é de trabalhadores motivados. E apontarão a porta da rua a estes gestores de recursos humanos que lhes andam a vender banha da cobra.

Anónimo disse...

"Ainda por cima num país e numa sociedade medularmente sujeita à cunha, ao compadrio e à corrupção como é a nossa. Só não o vê quem se faz de cego."
Cá está a velha história do isto só em Portugal. Como disseram os belgas (a respeito da Bélgica) sobre o recente desastre de comboio. Só não vê quem se faz de cego. Eu não me faço e vejo por cá e também nos outros países, em muitos em maior escala do que em Portugal. É tempo de acabar com a mania de que isto só por cá.

Outro Anónimo disse...

Eu chamo ao que o anterior anónimo caracteriza como "isto só por cá" de portuguesite saloia.

Este blog esta cheio dela.

joão boaventura disse...

O problema da classificação dos professores foi um caso paradigmático de como não deve operar o sociólogo da engenharia social, especialidade da ex-Ministra Maria de Lurdes Rodrigues, e responsável pela maior crispação nas escolas e, de forma mais acentuada no professorado, onde acabou por criar o pior ambiente ao ensino, que se pretendia eficiente, acabando por escaloná-lo, um grau abaixo, ao eficaz.

O ponto de partida centrou-se na decisão política do governo que, apertado pela crise, viu-se na contingência de recorrer a meios que permitissem alguma economia, seguindo a ideia de D. Maria I que chamava a atenção para os excessivos gastos na educação. O argumento agora aduzido foi a classificação dos professores.

O Ministério tinha, a seu favor, a proliferação de cursos universitários, politécnicos, e de escolas superiores, com a conivência simplista do Processo de Bolonha, também apostado na redução das despesas educativas, o que permitiu a 46 países europeus, e de outros que o vão subscrevendo, seduzidos pelo embaratecimento do ensino, reduzido a três ciclos: 1.º licenciado em três anos, ; 2.º mestrado em ano e meio; 3.º doutorado. Para que o Processo não morra, os países reúnem de dois em dois anos, desde 2001, para análise e acompanhamento da sua aplicação.

Chegados a este ponto, e resolvido o problema “universitário, politécnico, escola superior”, faltava renovar o tecido do ensino secundário para adequá-lo ou configurá-lo com as competências suficientes e necessárias para enfrentar o currículo mercantilizado dos estudos superiores já que, Bolonha, pretende “promover a empregabilidade dos cidadãos europeus e a competitividade do Sistema Europeu do Ensino Superior”. Mas, desde a Declaração de Bolonha, em 19.06.1999, a empregabilidade desceu a patamares nunca vistos, apesar de André Gorz, em 1988, ter sentenciado que “atravessamos a época de ouro do desemprego” (Métamorphoses du travail. Critique de la raison économique” (Paris, Gallimard).

Para o efeito o governo escolheu a socióloga Maria de Lurdes Rodrigues, dada a sua especialização em engenharia social, destinada a corrigir a sociedade educativa, constituída por professores oriundos de patamares formativos díspares, o que iria facilitar a aplicação científica da docimologia. Para o efeito criou uma chave de quesitos, irredutível e inquestionável, que, supostamente, permitiria auferir o grau de formação de cada professor. A este passo cientificado juntou outros documentos regulamentares para alunos e professores, impôs horas extraordinárias que a crise não permitia pagar, semeando a confusão, o espanto, e quebrando o andamento lectivo tradicional. Finalmente criou o artifício do professor titular (os olhos e ouvidos do rei?), instituído como o difusor e animador, ou motivador, de todo este processo, aumentando a clivagem já estabelecida.

A crise educativa desencadeada residiu na crise dos conteúdos irracionais fundados na racionalização selectiva das classificações. O processo, por cientificamente musculado, redundou em fracasso, apesar de os governos serem normalmente refractários às ideias científicas. Mas a visão economicista superou a aversão, e até, apoiou o processo desencadeado pela Ministra que não conseguiu compatibilizar o trabalho científico com o trabalho político, optando pela musculação do processo que não é aconselhável em política.

O efeito perverso do processo foi o de muscular o professorado contra o Ministério, a que acresceu a participação do Sindicato que, à falta de espírito científico para contrapor as regulações da Ministra, dispõe da única arma de arremesso, as manifestações que, por frequentes, acabam por perder força.

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