sábado, 20 de fevereiro de 2010

Um ano em Pietralata

Em finais dos anos de 1960, um professor era colocado numa escola primária "miserável como uma prisão municipal" dum "povoado da periferia romana, não diferente dos que Pasolini apresentou nos seus romances e nos seus filmes" (Gianni Rodari). Consciente da missão de ensinar e formado que havia sido nas "novas pedagogias", percebeu, com assombro, que a sua função não era a que tinha em mente antes de ali chegar; era, antes de mais, tentar por todos os meios que os alunos se sentassem por alguns momentos e que ouvissem uma ou duas das suas palavras.

É dessa luta constante que Albino Bernardini fala num livro de carácter autobiográfico pouco habitual, na medida as dúvidas que o assaltam são muitas, assim como as falhas que identifica na sua accção. O final não foi feliz. E não foi feliz porque é da realidade se trata: um meio periférico em todos os sentidos, uma escola triste, famílias desorganizadas e, como resultado, alunos que não querem aprender.

Por outro lado, um ano "foi pouco tempo para "transformar um bando desordenado numa turma silenciosa e disciplinarmente dirigida (...) para obter resultados escolares" (Gianni Rodari).

Mais de quarenta anos passados, o impressionante relato que se segue continua a fazer parte de muitas aulas em Itália, França, Estados Unidos da América, Portugal, Espanha... com as consequências que facilmente se adivinham em termos de aprendizagem e de tudo o que delas depende:
“A situação tornava-se cada vez mais crítica, mas eu não sabia se dependia de mim ou dos alunos: certamente de ambos. Talvez também da situação que eu procurava modificar (...) As faltas, o «estar-se nas tintas» dos alunos em relação àquilo que eu me esforçava por fazer, a atitude dos colegas face ao meu empenhamento, tudo evidentemente contribuia para criar uma atmosfera negativa na minha aula. Enquanto procurava organizar o meu ensino e estudava que método seria mais adequado à mentalidade dos alunos (...) dava-me conta, na realidade, de que não era acompanhado (...) A minha tentativa de suscitar neles o interesse pelo estudo com os métodos comuns não encontravam qualquer acolhimento. À medida que passavam os dias, apercebia-me de que mesmo aqueles vestígios de respeito que em certas alturas tinham demonstrado em relação a mim estavam a esmorecer. Isto preocupava-me bastante (...). Em todo o conjunto só havia uma coisa clara: assim não se podia andar para a frente. Quando tocava a campaínha estava tão cansado, pela cólera, que não podia aguentar mais. Dava-me vontade, especialmente em relação a alguns, de pegar neles e atirá-los contra a parede (...)
A minha tolerância e a minha confiança iam-se, portanto, esgotando. Tinha mesmo medo de que, a continuar assim, a chaga dos velhos hábitos se transformasse rapidamente em gangrena. Foi exactamente esse medo que me fez mudar de direcção para seguir, pelo menos de momento, o caminho da intransigência. Um dia(...) chamei a contínua para que me trouxesse giz; não me ouviu e tive que ir ao átrio (...). Mal tinha chegado lá quando ouvi bater a porta da minha aula e uma grande vozearia.
«Vê-se que abriram a janela — pensei — e a corrente de ar fez fechar a janela violentamente.»
Voltei à sala a correr e encontrei-me perante um espectáculo impressionante. As minhas recomendações haviam sido esquecidas no espaço de alguns segundos. Alguns tinham-se posto às cavalitas na janela, servindo-se das cadeiras: olhavam divertidos para o sítio aonde foram parar os vasos de flores que tinham feito cair. Outros, dançavam em cima dos bancos movendo-se como bailarinas. Os menos corajosos aplaudiam, fazendo coro (...). Não me deixei todavia tomar de pânico e consegui vencer o instinto de gritar. Consegui perceber que a minha voz teria podido assustá-los e, assim, na pressa de voltar para o lugar, algum poderia ter caído lá em baixo. Com efeito mal abri a porta, todos correram num instante para os seus lugares (...) além de travar a voz, conseguira disfarçar também a expressão do rosto (...).
— Mas que modos são estes? — consegui dizer, indo lentamente para o meio da sala, uma vez passado o perigo. Compreendi, porém, que as minhas palavras não produziram grandes efeitos.
— Saiam das carteiras aqueles que dançavam em cima dos bancos e os que se encavalitaram na janela. Ninguém se mexeu. Olharam uns para os outros (...) [e começaram a rir a altas gargalhadas]. Para eles deveria ter sido uma coisa normal. Silêncio! — gritei. Nenhum deles conseguia dominar o riso, que lentamente se ia transformando em gritaria, como se eu não estivesse ali.
— Saiam cá para fora os que dançavam e os que subiram para a janela, entendido? — acrescentei em tom indignado. Nem por sonhos. Ninguém se mexeu e eu fiquei absolutamente furioso. Precipitei-me sobre Luciano com as mão levantadas:
— Cá para fora — gritei; era um dos que eu tinha identificado.
— Mas eu só não! Também os outros que dançavam devem sair!
— Para já, sai tu!
— Quando os outros sairem!
Agarrei-o com todas as forças para atirá-lo cá para fora. Foi nesta altura que sucedeu o que eu não nunca esperaria. Deixei Luciano perto da secretária para pôr os outros cá fora, mas ele tentou sair da sala. Com um salto, cheguei à porta e não o deixei sair. Com dificuldade o trouxe de novo para junto da secretária e ele começou aos berros e a dar pontapés como se eu lhe estivesse a bater.
— Mas o que é que tu tens, enlouqueceste? — gritei procurando meter-lhe medo.
— Vou a casa e trago o meu pai, que te espeta na parede como um cartaz — disse (...) ameaçando-me com os braços no ar.
— Com quem estás a falar, comigo? — gritei, com toda a força da minha voz.
— Sim, exactamente contigo!, não sabes que tenho uma faca deste tamanho — e fazia um sinal com as mãos — e ta enfio na barriga? Este filho duma… este desgraçado que dou cabo dele…
Já não via mais nada. A minha cara estava desfigurada: não o deixei continuar. Para mim teria sido o fim. Dentro de pouco dias estaria transformado no escárnio da classe e o menos que me teriam feito seria assobiar-me na cara. Embora estivesse um pouco fora de mim, compreendi que não podia perder um só segundo. Cheguei-me ao pé dele antes que terminasse o rosário de palavrões e, agarrando-o pela gola do casaco, levantei-o em peso e levei-o para junto da janela:
— Ouve lá — gritei pondo-lhe as mãos na cara —, se dás mais um passo, atiro-te pela janela fora.
A minha reacção foi tão fulminante e inesperada que o assustou; não se mexeu mas continuou a resmungar palavras que eu não percebia. Talvez ninguém antes de mim lhe tivesse mostrado os dentes com tanta decisão.
— Os outros, cá fora! — exclamei, decidido a ir até ao fim. Beppe, Roberto e Sandro que, tal como os outros, tinham acompanhado a cena em silêncio, levantaram-se e, em vez de virem para fora, procuraram ganhar terreno ameaçando:
— Não sabes que não nos podes bater? — disse, pálido, Roberto.
— Fora! — gritei ainda.
— Se te denunciamos, ainda vais parar à cadeia — continuou, com arrogância, Beppe.
— Saiam!
— Se me bates vou ao director! — gritou Sandro.
— Faço-te voltar para a Sardenha a correr, quem julgas ser? A quem estás tu a dar ordens? A mim ninguém me dá ordens! — completou Roberto.
Estas palavras arrogantes e provocatórias fizeram-me ficar fora de mim. Num momento fui até ao meio deles e, com o braço e o dedo esticados, mostrando a secretária, disse:
— Fora já dos bancos, de outra maneira haveis de passá-las boas! Ide ter com quem quiserdes, mas, ficai descansados: se não vos comportardes bem, dou-vos tantas que metade bastarão. Saíram lentamente. Olhavam para mim maldosamente e, mal chegaram ao pé de Luciano, como que por tácito acordo, saltaram-lhe em cima como aves de rapina e começaram a bater-lhe como a um burro.
— Ah!, desgraçado, que damos cabo de ti — gritaram —, a culpa foi toda tua! Se tivesses saído logo, não ia à nossa procura. Ah!, meu reles! Filho da…, seu asno!»
Luciano foi apanhado desprevenido (...). Não teve tempo para reagir e caiu por terra. Procurou defender-se dando pontapés, mas foi dominado: Com um salto cheguei ao pé deles e separei-os.
— Mas que raça de cães são vocês!? — disse eu, mas não me ouviram, empenhados como estavam em compor a roupa e os cabelos. Luciano mal se achou de pé ajudado por mim, lançou-se ao primeiro que estava à frente dele e gritando, distribuiu pontapés como um jumento. O primeiro apanhou-o Sandro na barriga e caiu por terra como um saco vazio. Os outros dois procuraram saltar-lhe em cima mas segurei-os. Sandro contorceu-se como uma cobra, tornou-se pálido como um morto. Apliquei-lhe imediatamente algumas massagens e um pouco depois, lentamente, foi recuperando. Parecia-me exactamente estar em cima de um ringue de pugilismo; com a diferença de que neste caso não havia autorização. Os que tinham ficado nos bancos, assustados pelo conjunto da situação, riam e aplaudiam (...).
A barafunda tinha chegado ao auge e eu encontrava-me numa situação extremamente embaraçosa. Quem alguma vez teria pensado que a minha decisão de mandar sair alunos do banco, para discutir sobre o que tinha acontecido, haveria de dar lugar a tais consequências? Naquela altura entrou a contínua para me dar a assinar uma das muitas circulares que todos os dias nos atormentavam e, todos nós acalmámos um pouco, procurando esconder o sucedido, mesmo assim apercebeu-se disso; é evidente que todos nós tinhamos uma atitude anormal. Perguntou:
— Mas que raio aconteceu?”
Referência completa: Bernardini, A. (1977). Diário de um professor: Um ano em Pitralata. Lisboa: Editorial Notícias, Prefáco e páginas 29 e seguintes. (Tradução de António Pinto Ribeiro).

9 comentários:

Musicologo disse...

Parece ser um livro muito interessante que muita gente deveria ler. Mas encontro-o esgotado e fiquei com vontade de o arranjar. Se calhar só nas bibliotecas.

José Batista da Ascenção disse...

Cenas deste jaez ou parecidas temo-las tido abundante e crescentemente nas três últimas décadas do século findo, em todas as zonas do país, e continuamos a tê-las nesta primeira década do século XXI. Evidentemente só alguns casos fugiram à "escuridão" e isolamento do que se vive nas escolas e, mesmo nesses casos, devido à progressiva impunidade dos alunos e às facilidades dos meios de registo, particularmente telemóveis.
O que nunca consegui compreender foi por onde andaram as ciências da educação, que nunca penetraram em campo tão escaldante.
Alguns de nós, professores, ainda procurámos ajuda nos livros de Daniel Sampaio, mas o proveito foi parco e pouco consistente...
Entretanto, a escola pública "acelera num vórtice de irrelevância que parece sugá-la inexoravelmente".
O que fizémos dela?
O que faremos com os ignorantes que estamos a diplomar?
Qual é o futuro desta gente, que somos nós?

Carlos Pires disse...

Como se pode ler todos os domingos nas crónicas de Daniel Sampaio e em muitos livros e artigos de Ciências da Educação, para conseguir que a história tenha um final feliz basta que os professores em vez de explicar as matérias ponham os alunos a fazer trabalhos de projecto em grupo com liberdade total para escolher os temas e a organização e o ritmo de trabalho.
É fácil, desde que os professores frequentem umas acções de formação que os ensinem a lidar com a diversidade e lhes tire da cabeça a ideia fascista de que sabem mais do que os alunos.

Nan disse...

Carlos Pires, esclareça-me, por favor. Está a ser irónico, verdade?

Carlos Pires disse...

Nan: Obviamente.

joão boaventura disse...

Os governos continuam a pensar como a D. Maria I para quem não achava muito útil gastar excessivamente na Educação. Já o referi aqui várias vezes, mas isto é da idade.

Por exemplo, o Governo instituiu uma instituição, passe o reforço, para aparelhar, construir e remendar escolas, chamado Parque Escolar, para o que publicou a Lei n.º 41/2007, de 21.02.2010.

A primeira questão que se põe é a de desconhecer a inutilidade do Ministério das Obras Públicas, ao qual faltará um dinâmico Pacheco Pereira que tudo resolvia ainda que, a maior parte das vezes, nem sempre de forma límpida.

Mais do que pretender a "modernização e manutenção da rede pública de escolas secundárias e outras afectas ao Ministério da Educação", a lei parece mais vocacionada para resolver o problema do desemprego de alguns afectos à linha do governo, ou forma de premiar a adesão à militância.

Esta solução traz à memória as leis da 1.ª República, agora que se festeja o 1.º centenário da sua implantação, ou sejam, a lei de 12.06.1912, a n.º 164, de 18.05.1914; e a n.º 164, de 8.05.1914, que recomendavam ao Governo:
a 1.ª, a colocação de dezoito revolucionários civis para serem colocados em empregos públicos, segundo as suas aptidões e à medida que o Estado deles fossem necessitando;
a 2.ª, a aplicação da mesma a mais dois revolucionários, também reconhecidos como tal;
a 3.ª, a mais três, também identificados como revolucionários.

Hoje, não havendo revolucionários, foram os mesmos substituídos pelos militantes do partido, e desde que reconhecidos como tal.

Hoje, basta a Lei do Parque Escolar para resolver o problema: 1 presidente, 4 vogais, 1 fiscal, 1 director de projecto, 1 gestor de departamento de serviços administrativos, 1 técnico de electromecânica, e candidaturas espontâneas que devem enviar curricula e, se forem adequados a alguma função, serão chamados.

É uma fórmula mais simples de dar mais emprego, de aumentar sumptuariamente os gastos, cujos fundos o governo rebuscará nas classificações dos professores, porque, dos que passarem a ganhar menos, o governo os recuperará.

Se a D.ª Maria I assistisse a este desbarato, chamaria à sua presença o Ministro das Obras Públicas, para o demitir, pela sua incapacidade para resolver os problemas do Parque Escolar.

Hoje não se pode fazer isso porque estamos numa República, e a res publica, é o que é.

Para apaziguar as coisas sérias só me lembro, a este propósito de propor um exedrcício de desembrulha-língua:

Esta instituição
Quem a instituaria?
O instituidor
Que a instituiu
Bom instituidor seria.

joão boaventura disse...

Favor corrigir para o caso de consulta.

No 6.º parágrafo

Onde está ...e a n.º 164, de 08.05.1914...

Deverá ler-se ... e a n.º 165, de 18.05.1914...

Mea culpa

joão boaventura disse...

Relativamente ao meu último comentário versando as fontes de receitas necessárias para a ultrapassagem da crise, esqueci referir outras com sede no funcionalismo público.

Quem compulsar as classificações dos funcionários públicas verificará que, na sua maioria, não houve classificações, isto é, os vencimentos estacionaram, mesmo que tenham trabalhado o suficiente para que o serviço se mantenha vivo.

No Público de hoje, verificamos que este sistema oportuno de classificação se difundiu e instalou na Câmara Municipal de Lisboa, também ela procurando fontes de recurso:

"Avaliação leva funcionários da CML para a rua".

Do encontro do sindicato com os responsáveis camarários a resposta obtida foi a de que não havia dinheiro.

Como a história comparada, como o adjectivo diz, serve para comparar, alguma similitude se ajusta ao decorrer recente.

Quando se instalou a 1.ª República, que os revolucionários denominaram de democrática, a primeira medida foi a de publicar estas medidas:

Lei n.º 319, de 16.06.1915 - Autoriza o Governo a separar do serviço efectivo os funcionários que não dêem uma completa garantia da sua adesão à República e à Constituição. (DG n.º 114, I Série, 16.06.1915). (Presidência do Ministério)

Lei n.º 320, de 16.06.1915 - Incorpora vários artigos na supracitada lei n.º 319. (DG n.º 114, I Série, 16.06.1915) (Presidência do Ministério).

Lei n.º 321, de 16.06.1915 - Torna extensivas aos empregados que só percebam salários ou emolumentos as disposições do art.º 1.º da supracitada lei n.º 319. (DG n.º 114, I Série, 16.06.1915).(Presidência do Ministério).

No vintismo, de onde a 1.ª República irou a originalidade, já tinham feito o mesmo mas por outra
via, as pessoas tinham que jurar a Constituição e quem não o fizesse era expulso do país. Mas aconteceu que a Rainha se negou e criou um problema que foi resolvido pelo seu enclaustramento no Palácio por motivo de doença.

Salazar seguiu a mesma linha, na 2.ª República, obrigando todo o funcionalismo a declarar que não era comunista nem filiado em associações secretas.

Mas hoje, tal ou tais medidas afiguravam-se um tanto ou quanto desenquadradas do designado Estado de Direito, pelo que o sistema foi torneado com a classificação do pessoal docente e dos funcionários públicos, como antigamente se identificavam os escravos.

No "Dicionário da escravidão negra no Brasil", de Clóvis Moura, diz o autor que "a classificação dos escravos em primeira, segunda e terceira classes era feita de acordo com a força de trabalho", pelo que a "Companhia de Mineração do Morro Velho" os alugava ao ano de acordo com esta tabela:

Os escravos de 1.ª Classe......240$000
Os escravos de 2.ª Classe......175$000
As escravas de 1.ª classe......120$000
As escravas de 2.ª classe.......90$000

Como alguns filmes anunciavam logo no início... qualquer semelhança com a vida real é mera coincidência.

joão boaventura disse...

Por esquecimento não identifiquei a obra que referi, o que ora exponho, por poder interessar a consulta da mesma:

“Dicionário da escravidão negra no Brasil
Clóvis Moura
São Paulo (Brasil): Edusp, 2004
424 p.; 24 cm
ISBN: 9788531408120
8531408121

No Google há uma visualização limitada deste Dicionário.

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