Na sequência do texto do De Rerum Natura, deste 7 de Dezembro, a propósito do livro Passeio aleatório pela ciência do dia-a-dia, de Nuno Crato, lembrei-me que, além da física, também a ergonomia pode dar algumas achegas para a discussão sobre a tão célebre quanto satírica Lei de Murphy.
A ergonomia é uma disciplina científica que, já há algumas décadas, se dedica a investigar a adaptação dos profissionais às condições físicas, psicológicas e sociais dos contextos laborais, de forma a melhorar essa adaptação.
Entre os muitos e diversos temas interessantes que investiga, contam-se os erros humanos. Neste particular, podemos dizer que chegou, entre outras, a duas conclusões interessantes: uma (mais) pessimista e outra (mais) optimista. A (mais) pessimista é que “não é possível não errar” e a outra (mais) optimista é que “os erros tem uma reduzida intervenção na acção profissional”.
Aparentemente estas duas conclusões são contraditórias, mas, na verdade, são complementares. Vejamos, então:
Não é possível não errar
Os autores que se interessam pelo erro concordam em que não existe garantia prévia de a acção profissional ser isenta desse fenómeno: o risco da sua interferência pode ser ínfimo, mas não é nulo (Pereira, 1983). É preciso, portanto, ter lucidez para pensar que, por melhor que se conheçam os factores potenciadores dos erros e por mais sofisticados que sejam os modos de controlo disponibilizados, eles podem surgir em qualquer momento, em qualquer tarefa, com qualquer pessoa. Nesta medida, devemos reconhecer os erros como parte integrante do desempenho, afinal, “são o preço inevitável e, até, aceitável, que temos de pagar pela nossa notável capacidade para enfrentar rápida e eficazmente tarefas que envolvem informação complexa” (Reason, 1994, 148).
Este reconhecimento de que “toda a gente comete um erro de tempos a tempos” (Senders & Moray, 1991, 79), não deve, no entanto, conduzir ao descuido da sua vigilância. Efectivamente, os erros podem ter consequências graves ou muito graves, constituindo, por isso, um dever ético-prático dos profissionais fazer tudo o que estiver ao seu alcance para os evitar (Popper, 1992). Mas só isso não basta: é também seu dever estarem em permanente alerta para detectarem, repararem e recuperarem o maior número possível de erros que, inadvertidamente, tenham cometido.
Os erros têm uma reduzida intervenção na acção profissional
Na sequência desta reflexão e sem entrar em contradição, James Reason (1994), nome incontornável neste assunto, defende que os erros têm uma reduzida intervenção no desempenho profissional, uma vez que habitualmente se situam numa sequência ou num pequeno número de sequências das muitas que constituem o plano de acção pelo qual se optou. Na realidade, e hipoteticamente falando, para concretizar uma determinada tarefa não existe um só plano possível, mas vários, sendo que cada um deles é composto por diversas sequências, cada uma das quais proporciona múltiplas possibilidades de acção inapropriada, as quais, por sua vez, poderão assumir uma infinita variedade de formas. Felizmente, na maior parte das circunstâncias, a maioria dessas possibilidades não se concretiza.
Nesta linha de raciocínio, e ainda segundo o referido autor, é possível afirmar que as sequências dos desempenhos profissionais onde surgem erros, quando comparadas com as sequências adequadas, são pouco numerosas e, além disso, os erros assumem um número limitado de formas.
Em suma
Em vez de lei – uma lei cumpre-se sempre –, a Lei de Murphy é excepção, ainda que tenhamos tendência a invocá-la quando detectamos um erro. Caso a Lei de Murphy fosse mesmo lei, os Egípcios não teriam construído as magníficas pirâmides, Fernão de Magalhães não teria feito a viagem de circum-navegação, Miguel Ângelo não nos teria deixado o tecto da Capela Sistina, Marie e Pierre Curie não teriam isolado o radium e o polonium, a NASA não teria conseguido alunar a sua primeira nave…
Pensando bem, o conhecimento, como construção humana que é, constitui uma prova substancial da luta constante e, em grande medida, conseguida da falível humanidade contra o erro. Se tudo aquilo que pudesse correr mal, corresse mal, viveríamos (ainda) em plena barbárie e não em civilização.
Referências bibliográficas:
- Pereira, O. G. (1983). Erro humano: uma conferência internacional. Análise Psicológica, vol. III, n.º 3, 309-326.
- Popper, K. (1992). Em busca de um mundo melhor. Lisboa: Fragmentos.
- Reason, J. T. (1994). Human error. Cambridge: Cambridge University.
- Senders, J. W. & Moray, N. P. (1991). Human Error: cause, prediction and reduction. New Jersey: Lawrence Erlbaum Associates.
Imagem retirada de:
http://www.diariodetrasosmontes.com/images/noticias/ciskei205.jpg
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4 comentários:
A própria categorização do que é e do que não é erro encerra em sim um elevado grau de subjectividade.
Por vezes a realização de determinadas tarefas é feita de forma diferenciada da que tinha sido idealizada por quem as desenhou. Em sentido estrito isso poderá ser visto como um erro; mas se pensarmos pragmaticamente poderá também ser entendido como uma diferente via para um mesmo objectivo.
A minha actividade profissional implica a realização de testes de usabilidade aos sistemas que eu ou outros desenharam. Para além da detecção de "erros" nesses sistemas, esses testes tem uma outra característica fascinante: a identificação de "culturas de interacção" radicalmente diferentes entre si.
Não são raras as vezes em que esses sistemas (ou pelo menos parte deles) são redesenhados à luz do que supostamente poderiam ser considerados erros. É exactamente essa dialéctica entre criador e utilizador que permite encontrar o "equilíbrio funcional" entre conhecimento especializado e conhecimento empírico.
Ando faz anos a tentar passar esta mensagem sobre o papel da ergonomia no desempenho profissional e consequentemente no bem estar pessoal (porque ambos se influem mutuamente).
Em tempos idos ensinava isto na escola numa disciplina que leccionei... mas agora que já nem se ensina estas coisas no EB, que ao menos se vá sensibilizando para este problema ou talvez solução... de se criarem espaços acolhedores, aprazíveis nas nossas escolas (digo escolas, porque é o meu local de trabalho... o mesmo serve para qualquer profissão)já que se provou há muito a influencia que isso pode trazer na rentabilização das tarefas de todos os intervenientes... logo, do proprio sucesso escolar dos alunos.
Aos meus alunos costumo dizer-lhes que a Escola é a nossa segunda casa... e, por isso, devemos também cuidar dela com o maior afecto.
... Será que os nossos superiores hierárquicos pensam assim??? É que sem investimento, não há melhoria!
Gostei do texto. Mas parece-me que o "erro" que aqui se aborda tem uma conotação óbvia com o erro fortuito e ocasional.
Ora há outros erros. Sem sequer falar dos de má-fé, sabe-se que há erros que derivam de mundividências confinadas , de perspectivas limitadas , de paralaxe, de omissão, entre outros.
Por vezes, por razões de vária ordem, não é "conveniente" perceber o erro. E os erros têm também um comportamento interessante, que é a capacidade de progredirem em "bola de neve" e eventualmente dar origem a evitáveis avalanches...
Por isso a conclusão do texto me parece algo "cândida", como se o estado civilizacional em que estamos fosse o melhor dos mundos e não resultasse de dinâmicas de erro persistentes.
Por detrás dos erros há por vezes decisões absurdas, o que levou MOREL, Christian a escrever LES DÉCISIONS ABSURDES. SOCIOLOGIE DES ERREURS RADICALES ET PERSISTANTES (Gallimard,col. folio essais, 380 pp) um manual preciosíssimo com inúmeros exemplos, de que destaco, entre outros, o 4.º caso "L'explosion de la navette Challenger, lancée contre la recommandation des ingénieurs (28 janvier 1986, centre spatial Johm F. Kennedy, Floride).
Só para dar uma ideia do tomo, cito as quatro partes:
1 - Des décisions absurdes
2 - L'intelligence des décisions absurdes
3 - Les fdécisions absurdes sont une œuvre collective
4 - Le sens des décisions absurdes.
Boa leitura
João Boaventura
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