No post “Razão e Ciência”, o Ludwig Krippahl responde ao meu post “Fé, Racionalidade e Cientismo”. Concordo com quase tudo o que escreve, mas parece-me haver aqui dois aspectos subtis.
O que está em causa é a ideia de que a ciência esgota a racionalidade. Outra maneira mais clara de exprimir o que está em causa é esta: nenhuma verdade escapa aos métodos científicos de descoberta da verdade.
O primeiro aspecto é o seguinte: a minha posição não é a ideia de que há algo que escapa aos métodos científicos da descoberta da verdade, mas sim que há algo que escapa a tais métodos se concebermos esses métodos de um modo excessivamente restrito. O “se” é crucial aqui. Do meu ponto de vista, o cientismo consiste precisamente em restringir indevidamente a racionalidade ao que pode ser estabelecido pela física, pela biologia ou por outras ciências empíricas, para depois declarar triunfantemente que há coisas que escapam à “racionalidade científica”. Pois. Se começarmos por restringir os seres humanos aos lisboetas, depois também há seres humanos que escapam a Lisboa. Se restringirmos a racionalidade aos métodos das ciências empíricas, é claro que depois se declara que temos todo o indizível do místico, da religião, etc. e tal. Ora, eu defendo que isso resulta de uma visão demasiado redutora da racionalidade, para usar a terminologia mecânica do “redutor”, hoje em dia tão em moda. O que nos conduz ao segundo aspecto.
O segundo aspecto é este: o que significa a palavra “ciência”? Claro, podemos dar às palavras o significado que nos apetecer. Mas o que não devemos fazer é basear o nosso pensamento sobre estas questões em pura confusão verbal. Ora bem, “ciência” tem hoje em dia pelo menos dois significados bastante distintos. O primeiro significado refere-se apenas às ciências como a biologia, a química ou a física: refere-se aos procedimentos levados a cabo por ciências fortemente empíricas e fortemente matematizadas. O segundo significado é sinónimo de “prática académica séria”, e tanto se aplica a tais ciências como se aplica à filosofia ou à matemática, que não são disciplinas empíricas; e aplica-se também à história, que não é uma ciência matematizada. Neste segundo sentido da palavra, “ciência” quer dizer apenas “investigação academicamente séria da natureza das coisas”. Se queremos dizer que a única investigação séria da natureza das coisas é a investigação científica, entendendo o qualificativo “científica” neste segundo sentido, estamos realmente a dizer uma verdade. Mas é uma tautologia, pois estamos a dizer que a única investigação séria das coisas é a investigação séria das coisas.
O que importa neste debate é o seguinte: até que ponto é preciso investigar algo cientificamente para podermos dizer que temos uma crença justificada ou racional? O meu exemplo do João e da Maria apaixonados serve para responder a esta pergunta. É claro que, como reconhece o Ludwig, quando uma pessoa está apaixonada não veste uma bata branca para se pôr a fazer listas cuidadas de factos, controlos cegos, estatísticas, etc. Limita-se a basear o seu juízo na observação assistemática das coisas. É isso racional? Sem dúvida. É científico? No primeiro sentido, não. E no segundo? Também não. Mas é racional? Sem dúvida.
O Ludwig acrescenta aqui um pensamento crucial, com o qual concordo: a ciência não é senão a extensão da racionalidade que usamos todos os dias. A minha objecção principal ao misticismo e à ideia de Wittgenstein de deitar escadas fora é precisamente que isto se baseia na ideia de que as metodologias científicas são coisas “do outro mundo”. Não são. São meramente a extensão da nossa tentativa normal de descobrir a natureza das coisas. E adaptamos as metodologias em função do que estamos a tentar descobrir. Não podemos fazer experiências num laboratório para fazer história; não podemos consultar documentos velhos para saber se houve ou não Big Bang.
O que isto significa é que a decisão do João de casar com a Maria, não sendo “científica” em qualquer sentido normal da palavra, é perfeitamente racional. É racional porque se baseia numa observação assistemática suficiente e num raciocínio informal defensável. Nada tem a ver com deitar escadas fora, nem com o desprezo da justificação racional. É apenas o mesmo tipo de coisa que se faz na investigação séria das coisas, na “ciência” no segundo sentido da palavra, mas num estádio menos sofisticado — porque não consideramos valer a pena fazer uma investigação mais aturada das coisas, nesta circunstância.
E a filosofia? Onde fica nisto tudo? A filosofia é uma investigação “científica”, no segundo sentido da palavra, mas não no primeiro. Não é uma disciplina empírica, como a biologia ou a história, nem é uma disciplina formal como a matemática ou a lógica. Mas também não é como a decisão do João casar com a Maria. Não é um tipo de pensamento assistemático, que fazemos sem grandes aprofundamentos, como o pensamento quotidiano. Esta é a ideia falsa de que “somos todos filósofos”. Isto é tão falso como dizer que somos todos físicos porque, ao fim ao cabo, todos temos vários conhecimentos assistemáticos de física — sabemos que os objectos caem, conseguimos calcular intuitivamente quando temos de começar a travar para parar um carro que viaja a 50 Km/h, etc. Tal como isso não faz de nós físicos, também não ficamos filósofos só porque temos umas ideias engraçadas sobre temas filosóficos. Para sermos filósofos é preciso conhecer profunda e sistematicamente os problemas, teorias e argumentos da filosofia — que, hoje em dia, se encontram na bibliografia especializada.
E a religião? Será racional ser religioso? Sim, em certas circunstâncias; mas essa é uma questão para outro post.
segunda-feira, 24 de dezembro de 2007
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10 comentários:
Aguardo com ansiedade o post sobre se é racional ser religioso.
Caro Desidério, tive uma semana muito ocupada que não me deixou muito tempo para dar aos teus recentes textos a atenção que eles merecem. Neste momento, quer apenas esclarecer brevemente algumas questões.
A primeira é a seguinte: eu tenho razões para acreditar que não estou errado nem iludido na minha fé cristã. Quando me perguntam que razões são essas, oiço invariavelmente a pergunta: mas como sabe que não está errado, que não é tudo uma ilusão? Fico com a sensação de que são as pessoas que não têm uma fé religiosa, e não eu, que exigem uma demonstração que não deixe margem para dúvidas. A minha posição de que não é possível demonstrar nem a existência nem a não existência de Deus tem a ver precisamente com esse género de demonstração ou prova que me pedem, no sentido indubitável e definitivo.
A segunda questão é a seguinte: A tua posição leva-nos para uma racionalidade das escolhas humanas bastante subjectiva, para não dizer solipsista. No caso do amor do João pela Maria, por exemplo, ele tem uma série de indícios sobre o amor dela por ele, e com base nesses indícios a sua decisão de casar com ela será racional. O que acontece muitas vezes é que com esses mesmos indícios, uma tal decisão não é lá muito racional. Conheço um número considerável de casos em que nas mesmas circunstâncias, uma das duas pessoas foi aconselhada por muitos amigos a não casar com a outra, por razões que esses amigos apresentaram, e cuja atitude era também racional. Consumado o casamento, o divórcio seguiu-se em pouco tempo. Neste caso, por exemplo, a racionalidade da decisão do João adquire contornos pouco definidos, bastante subjectivos, não te parece? Se me disserem que o divórcio provou que o João, de facto, não tomou uma decisão racional, pergunto se pode uma decisão ser considerada racional e pouco depois irracional, com base nas suas consequências. Ou dar-se-á o caso de uma decisão, uma vez declarada racional, não poder vir a ser considerada irracional, quaisquer que sejam as suas consequências?
Caro Desidério, acredita que estas minhas perguntas não têm qualquer carácter polémico, são apenas meros pedidos de clarificação.
Obrigado.
Olá, Alfredo
Parece então que temos uma maior convergência do que poderia parecer. Para responder às tuas perguntas é preciso falar um pouco do que é a racionalidade, mas farei isso noutro post. Para já posso dizer que ser racional não é incompatível com estar enganado. O João pode estar a ser perfeitamente racional ao tomar uma decisão que só mais tarde descobre ser errada. Mas ser irracional não é compatível com a recusa em admitir o que é incompatível com o que queremos só porque o queremos. Assim, o João pode estar a ser irracional caso se recuse a dar atenção aos aspectos que os seus amigos sublinham, e que lhes fazia crer que o casamento não iria funcionar.
Se - como afirmou Niels Bohr - na Fisica Quântica há um núcleo irracional irredutível, então como se pode afirmar que a ciência -a Física, neste caso - esgota a racionalidade?
Por outro lado, como se pode falar em racionalidade, em sentido estrito, em ciências que trabalham fora da lógica formal?
Alfredo Dinis:
Há aqui um equívoco. Quando a generalidade dos ateus pede "provas" (note-se o plural) da existência de Deus aos crentes, geralmente estão a pedir apenas indícios sólidos ("evidences" em inglês). Não estão a pedir nenhuma prova definitiva (nesse caso bastaria uma...).
Isto é muito importante. Os crentes dizem que não há nenhuma prova da inexistência de Deus, mas referem-se a uma "prova final e inequívoca". Mas os ateus consideram que não existe sequer nenhum indício sólido a favor.
Tomemos o caso do Deus judaico cristão, por exemplo. Não existem melhores indícios de que Jesus ressuscitou do que da existência de sereias. E nós consideramos que os indícios da existência de sereias (registos de avistamento em documentos históricos, etc...) são insuficientes para acreditar nelas. Assim sendo, se formos coerentes vamos considerar que não existe nenhum indício que nos devesse fazer acreditar que Jesus ressuscitou. Quanto aos milagres, sendo as coisas como são, parecem-me perfeitos indícios de como as igrejas são desonestas e perigosas. Veja-se Fátima: vários jornalistas com máquinas fotográficas e ninguém registou o "milagre do Sol", vários católicos devotos e importantes confessaram não ver nada de milagroso, mas o revisionismo histórico da Igreja tentou fazer "esquecer" essa realidade e falam em 70 000 testemunhas, quando a única coisa que aconteceu foi umas nuvens com pouca espessura passarem através do Sol (dando um efeito de aparente rotação sobre si próprio normalíssimo em qualquer outra situação); e hoje, Fátima é uma máquina de explorar o dinheiro dos mais desesperados. É horrível.
N. Senhora andar a surgir centenas de vezes (reconhecidas pela Igreja Católica) na Idade Média, mas tornar-se tímida quando surgem câmaras de filmar, máquinas fotográficas, e jornalistas que podem investigar as coisas a fundo, é algo que mostra bem como os "milagres" são um excelente indício de que a religião é uma charlatanice.
Caro Vasco,
Considero que o termo ‘indícios’ talvez seja demasiado vago. Bertrand Russell e, depois dele, John Searle responderam da mesma forma a quem lhe perguntou: ‘Suponha que depois de morrer se encontra diante de Deus que lhe pergunta porque não acreditou nele. O que responderia?’ ‘O Senhor não me deu suficiente evidência da sua existência’. Em correspondência particular, o neurocientista Cristoph Koch, umnão crente, disse-me que Deus, se existe, deveria fazer alguma coisa suficientemente evidente para que as pessoas acreditassem nele. Respondi-lhe: ‘Se eu fosse Deus não investiria energias em produzir qualquer acontecimento que esperasse ser reconhecido pela humanidade como uma prova da minha existência’. E a razão é simples. Qualquer acontecimento extraordinário produzido por Deus – alguns não crentes até já deram alguns exemplos! – ou é empiricamente observável e eventualmente analisado pela ciência, ou é pura ilusão. Esta é a atitude generalizada das pessoas. Creio que é a sua, se não o interpreto mal. A questão é, pois, esta? O que poderá ser considerado uma boa razão para acreditar em Deus? O que poderá ser considerado uma boa razão para não acreditar em Deus? O que leva tantas pessoas, até mesmo entre cientistas altamente credenciados, a acreditar em Deus? Será apenas o medo da morte, como dizem alguns? Mas por que razão o medo da morte leva uns a acreditar em Deus e outros não? Será a educação que receberam na infância, como diz Dawkins? Mas por que razão algumas pessoas que foram educadas como crentes abandonam mais tarde a sua crença, e pessoas que foram educadas como não crentes aderem mais tarde a uma crença? Considero que a questão da crença religiosa é razoavelmente complexa para se poder resolver em poucas palavras.
No que se refere à ressurreição de Jesus, os cristãos têm três boas razões para acreditarem nela. A primeira tem a ver com os testemunhos dos seus discípulos, que tiveram a experiência de encontros com ele. Mas não se tratou de encontros como os que tinham tido antes da sua morte. A ressurreição de Jesus não consistiu na simples reanimação do seu corpo, nem é hoje essa a concepção cristã da ressurreição, embora a ideia geral que se tem seja precisamente a do passado. Jesus ressuscitado não é uma pessoa espaciotemporal, por isso não poderia nunca ser fotografado por uma máquina fotográfica. O mesmo acontece com a Virgem Maria. O mesmo acontece com os milagres. É evidente que em Fátima o Sol não se moveu. Dawkins toma este facto como uma evidência de que a Virgem Maria não apareceu em Fátima e de que, por conseguinte, Deus não existe. Não me parece que ele tenha aqui uma boa razão contar o cristianismo.
O encontro com Jesus Ressuscitado foi certamente um encontro pessoal acompanhado por percepções tácteis e visuais que não correspondiam a nenhum corpo físico. Que razões temos para acreditar que não foram meras alucinações? Vem agora a segunda boa razão para crer na ressurreição de Jesus: a transformação radical da vida dos primeiros discípulos. Essa transformação aparece claramente expressa no Novo Testamento e em testemunhos históricos sobre a vida e o martírio de muitos dos primeiros cristãos. A terceira razão para crer na ressurreição de Jesus tem a ver com o facto de serem as mulheres a dar a notícia da sua ressurreição. No tempo de Jesus, o valor do testemunho das mulheres era nulo. Se não houvesse uma boa razão para aceitar esse testemunho, teria sido impensável que os discípulos o aceitassem.
Obrigado pela paciência de ler esta mensagem.
Obrigado também, Prof. Alfredo Dinis, pela sua infinita paciência em nos esclarecer a todos. Bem haja.
Não aguardo com ansiedade o post sobre se é racional ser religioso.
Agradeço, sim, DM a sua exploração partilhada.
Por mim, basta-me viver infantilmente na crença de que sou racional.
Serei?
Permita-me DM esta divagação pueril:
A propósito de "penso, existo", dir-se-ia, como P. Cabral, que a retenção da crença – forma pela qual as crenças dependem de outras crenças, constituindo assim uma tessitura ambiental – é uma preocupação constante, seja de antropólogos, seja de ornitólogos, domésticas, psicólogos ou horticultores.
Ou, como Sebald:
"Se perante mim vejo
a nervatura da vida passada
numa imagem, logo penso
que isto tem que ver
com a verdade. Afinal, os nossos cérebros
estão sempre a trabalhar nos tremores
de auto-organização, por rarefeita que esta seja,
e é daqui que surge
ordem, em lugares bonitos
e consoladores, e mais cruéis também,
do que o anterior estado de ignorância.
Até onde, todavia, necessitamos recuar
Até encontrarmos o princípio? Talvez..."
W. G. Sebald, 1944-2000
Citado por João de Pina-Cabral na sua intervenção no Seminário
“O Processo da Crença”, 2002, Gradiva, 2004, p 238
Entrei nessa discussão sem ser convidado, mas convido a todos para lerem minhas considerações a respeito dessa salutar discussão entre Desidério e Ludwig.
http://www.portalphilosophia.org/index.php?option=com_content&task=view&id=70&Itemid=63
Gilberto M. Jr.
www.portalphilosophia.org
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