domingo, 30 de dezembro de 2007
Paradoxo de EPR, Variáveis Escondidas e Desigualdade de Bell
Mais um post convidado de Luís Alcácer.
Não é fácil, para mim, explicar estas questões em poucas palavras, e, muito menos, sem recorrer a fórmulas. Esta é uma tentativa, simplificada, consciente de que corro o risco de cair em algumas incorrecções, que espero, sejam apenas de natureza formal. Futuramente poderei voltar a estes temas que aliás, me fascinam. Descrições detalhadas e mais ou menos formais podem ser encontradas na literatura [i].
Não conformado com algumas das implicações da mecânica quântica (MQ), Einstein, que dera importantes contribuições para a teoria, publicou, juntamente com Podolsky e Rosen, em Maio de 1935, um artigo [ii] com o título "Pode a Descrição Quântica da Realidade Física Ser Considerada Completa?"
Pelas implicações paradoxais que os argumentos de EPR (de Einstein, Podolsky e Rosen), suscitaram, o tema do artigo é conhecido como "paradoxo de EPR". EPR argumentavam que a descrição quântica da realidade física, não poderia ser completa, no sentido de que, nas suas palavras, "numa teoria completa, deve existir um elemento correspondente a cada elemento da realidade", o que não acontece na MQ. Na MQ existem pares de grandezas físicas, como a posição e a velocidade (mais correctamente, velocidade vezes massa) de uma partícula, para as quais o conhecimento de uma, torna impossível o conhecimento da outra (incerteza de Heisenberg). Segundo EPR, isso implicaria que quando a velocidade da partícula fosse conhecida, a sua posição não teria realidade física, deduzindo que o formalismo da MQ seria incompleto.
EPR consideraram ainda o exemplo de duas partículas que tenham interactuado durante algum tempo. Em princípio, se forem conhecidas as propriedades (grandezas físicas) de cada uma das partículas antes da interacção, a MQ pode prever as propriedades do conjunto das duas partículas em qualquer instante após o período de interacção, mas não pode prever as propriedades individuais de cada uma delas. Isso só pode fazer-se, realizando novas medições sobre uma das partículas. Mas, segundo a MQ, o acto de medir pode provocar a alteração das suas propriedades e também das propriedades da outra partícula. Essa previsão da MQ parece implicar que a medição numa das partículas pode influenciar o valor das propriedades na outra, embora já esteja separada dela. Foi a isto que Einstein chamou "acção fantasma a distância".
O artigo de EPR levou Schrödinger a publicar um extenso artigo [iii], onde explica algumas implicações da MQ, nomeadamente, o carácter probabilístico das suas previsões. Foi nesse artigo que Schrödinger expôs a ridícula situação do famoso gato, que estaria meio morto, meio vivo.
Niels Bohr também reagiu ao artigo de EPR publicando, em Outubro desse mesmo ano, um artigo [iv] em que reafirma, de forma dogmática, que segundo o formalismo da MQ nunca é possível atribuir valores definitivos a ambas as grandezas físicas de um par complementar (p.ex., posição e velocidade de uma partícula).
Einstein, nunca aceitou o ponto de vista de Bohr e a sua desconfiança levou-o a questionar o carácter aleatório dos fenómenos quânticos. Louis de Broglie, David Bohm e John Bell tentaram desenvolver novas versões da MQ e procuraram meios de pôr à prova o princípio da complementaridade. Bohr continuou impassível.
Uma vez que todas as experiências confirmavam o carácter aleatório dos sistemas microscópicos (p.ex., átomos), muitos físicos acreditavam que a aleatoriedade resultava da nossa ignorância sobre as suas causas, que embora inacessíveis, são reais. Bastaria recorrer à versão clássica do cálculo de probabilidades, para o qual as propriedades intrínsecas dos sistemas físicos são assumidas como existentes e bem definidas, embora desconhecidas ou mesmo impossíveis de conhecer. Esta é a base da ideia das variáveis escondidas. Nessa representação da realidade, assume-se que uma partícula é, de facto, uma partícula, que em qualquer instante, tem uma posição bem definida e uma velocidade única, mesmo que, na prática, não possam ser determinadas. Só podemos determinar as suas distribuições estatísticas que aceitaríamos serem correctamente descritas pela MQ. Poderíamos assim assumir que a MQ é uma teoria essencialmente correcta, pelo menos quando considerada como um instrumento de cálculo, mas não seria um modelo da realidade escondida, e, nesse sentido, seria incompleta.
As variáveis escondidas representariam as causas eficientes necessárias para levar a um dado resultado experimental e ofereceriam um substrato clássico a partir do qual a MQ poderia ser erigida como uma teoria fenomenológica. Restaurariam também à teoria, a causalidade e a localidade (a MQ sugeria, de certo modo, a possibilidade de acção a distância, ou não localidade). A tentativa de David Bohm não foi bem sucedida, uma vez que tinha o defeito de também ter estrutura não local.
Esta discussão leva-nos à questão do determinismo em MQ (ou falta dele), que tentarei abordar mais tarde, noutro texto. De momento, apenas direi, citando Roland Omnès, que seria difícil tentar estabelecer os fundamentos da física num substrato determinístico exacto, quando se tem verificado que o determinismo, que "vemos" à nossa volta, e do qual as nossas mentes estão prenhes, é apenas algo aproximado.
Bell [v] mostrou matematicamente que a ideia das variáveis escondidas era incompatível com as previsões probabilísticas da MQ. Baseou-se na experiência imaginária sugerida por Bohm e Aharonov, na qual dois electrões, inicialmente emparelhados, com spin [vi] nulo, eram separados e enviados para locais diferentes, A e B. Se, no local A, for medido o valor do spin com um campo magnético apontando numa qualquer direcção e encontrarmos o valor +1/2, a MQ prevê que se encontrará, de certeza, o valor -1/2, para o electrão enviado para B, desde que o campo magnético seja paralelo ao usado em A.
O mesmo acontecerá, se forem mudadas as condições da experiência (orientação do campo magnético) depois da separação dos dois electrões. Isso implica que as medições feitas em A influenciam instantaneamente os resultados de medições feitas em B, por maior que seja a distância entre A e B. Bell calculou que, se existissem variáveis escondidas e fosse válido o cálculo de probabilidades clássico, os resultados de experiências como a sugerida deveriam cair dentro de certos limites, satisfazendo algumas bem definidas desigualdades. Foram realizadas várias experiências deste tipo, especialmente com fotões (partículas de luz), sendo a experiência de Aspect [vii], uma das mais citadas. Os resultados experimentais confirmaram inequivocamente a validade da MQ, violando claramente as desigualdades de Bell e deitando por terra a hipótese das variáveis escondidas. Esse tema foi alvo de um texto no DRN em Outubro último.
Tal como no caso dos paradoxos de Zenão de Eleia, uma análise aprofundada da teoria formal (apoiada em resultados experimentais) pode em certos casos levantar, ou pelo menos esclarecer, os paradoxos.
No fundo, todas as situações aparentemente paradoxais da MQ, resultam do facto de querermos usar para descrever a mesma coisa, o conceito de partícula, em determinadas circunstâncias e o de onda, noutras. Einstein tinha razão, ao questionar: se a realidade física é só uma, porque é que usamos dois conceitos diferentes para descrever a mesma coisa? Einstein sugeriu que tudo seriam ondas, e que o comportamento que consideramos típico de partículas pode ser descrito em termos de interacções envolvendo ondas (ou campos), como as de natureza electromagnética. É aliás o que se faz em algumas versões sofisticadas da teoria quântica.
[i] Para uma análise de questões filosóficas levantadas pela mecânica quântica recomendo vivamente o livro (sem fórmulas) "Quantum Phylosophy. Understanding and Interpreting Contemporary Science", de Roland Omnès, Princeton University Press, 1999. Consta do catálogo da FNAC, Preço: 24,89€. Uma análise mais técnica, com matemática é feita no livro "The Interpretation of Quantum Mechanics", de Roland Omnès, Princeton University Press, 1994. Em português e com a matemática necessária sugiro o 3º capítulo do meu livro que está acessível aqui.
[ii] A. Einstein, B. Podolsky, and N. Rosen, «Can quantum-mechanical description of physical reality be considered complete?», Phys. Rev. 47 777 (1935).
[iii] E. Schrödinger, "Die gegenwärtige Situation in der Quantenmechanik", Naturwissenschaften 23: pp.807-812; 823-828; 844-849 (1935). Versão em inglês.
[iv] N. Bohr, Phys. Rev. 48 696 (1935)
[v] J. S. Bell, Physics (N.Y.) 1, 195 (1964)
[vi] O spin é uma propriedade do electrão. Não tem analogia clássica. É uma espécie de movimento de rotação em torno de si próprio, o que não faz muito sentido pois o electrão é considerado na MQ convencional uma partícula sem dimensões. O spin pode ter um dos dois valores: +1/2 e -1/2, o que metaforicamente poderia significar rodar no sentido dos ponteiros do relógio, ou em sentido oposto.
[vii] Aspect, A., Grangier, P. & Roger, G., Phys. Rev. Lett. 49, 91 (1982).
Luís Alcácer
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6 comentários:
São bem vindos mais artigos de MQ neste espaço.
Excelente... falta mais gente a escrever assim na "realidade" portuguesa.
É um prazer voltar ao rerum natura.
Soberbo.
Fiquei com curiosidade para comprar o "Quantum Phylosophy. Understanding and Interpreting Contemporary Science", de Roland Omnès.
Tenho é receio de comprar o livro e de não perceber nada... Assim pergunto-lhe, é de dificil leitura?
Caro defendê o miníno
Tudo depende da formação que tiver. É um texto em inglês, profundo e filosófico. Tem a vantagem, para os não especialistas, de praticamente não ter fórmulas. Digo praticamente, porque, embora o texto seja corrente, surgem, por vezes frases contendo alguns (muito poucos) símbolos (matemáticos e sobretudo lógicos). No final de uma das críticas, pode ler-se: os conhecedores das ciências duras e de matemática acharão este livro intrigante; os não não têm essa formação acharão, mesmo assim, este um texto útil e inspirador. Sugiro que consulte o site da Amazon e leia as críticas ao livro, o ÍNDICE DE MATÉRIAS e as primeiras duas páginas, disponíveis no site: http://www.amazon.co.uk/Quantum-Philosophy-Understanding-Interpreting-Contemporary/dp/0691095515/ref=sr_1_2?ie=UTF8&s=books&qid=1199105824&sr=1-2
Luís Alcácer
ok, obrigado!
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