Publicado inicialmente no “Jornal de Letras”, reproduzo mais um notável artigo de Eugénio de Lisboa que me trouxe à lembrança um livro do escritor e médico Fernando Namora, intitulado: “Deuses e Demónios da Medicina”. Como escreve Eugénio Lisboa sobre o Dr. Almeida Santos: “Poucas grandes figuras desta terceira República terão sido tão controversas, tão admiradas e tão criticadas, tão amadas e tão odiadas, quase sempre tão mal entendidas, na sua soberba complexidade”. Ou seja, Almeida Santos assumiu, assim, em vida a sua condição humana: nem Deus, nem Demónio. Transcrevo o texto de Eugénio Lisboa:
"Deixou-nos,
no passado dia 18 de Janeiro, o Dr. Almeida Santos, figura inconfundível desta
nossa democracia, agora em perda de carga. Poucas grandes figuras desta
terceira República terão sido tão controversas, tão admiradas e tão criticadas,
tão amadas e tão odiadas, quase sempre tão mal entendidas, na sua soberba
complexidade.
É próprio
destes dias de luto, que se seguem ao desaparecimento de um vulto de grandes
dimensões, como este, proceder-se à sua quase canonização. Almeida Santos, para
que a sua marca na História permaneça, não precisa destes pífios favores. Era
uma lenda? Era. Mas era mais e melhor do que isso: era um homem em grande
formato, dotado de excelsas qualidades e de óbvios defeitos. Pretender, de um
político, virtudes imaculadas de vestal é desconhecer a massa de que se fazem
estes animais magníficos e imperfeitos. Ortega y Gasset, no seu admirável
ensaio “Mirabeau o el político”, estudou-os como ninguém, não os santificando
nem os crucificando: apenas tentando compreendê-los. O seu relato conclusivo,
repito, nem os hipertrofia nem os diminui: caracteriza-os. Sem evitar as
asperezas da realidade, mas também sem com elas se deprimir. Segundo o grande
pensador espanhol, há que distinguir entre os “ideais” e os “arquétipos”: “Os
ideais são as coisas conforme estimamos que deveriam ser. Os arquétipos são as
coisas conforme a inelutável realidade. Se nos habituássemos”, continua Ortega,
“a buscar, de cada coisa, o seu arquétipo, a estrutura essencial que a
Natureza, pelos vistos, lhes quis dar, evitaríamos formar dessa mesma coisa um
ideal absurdo que contradiz as suas condições mais elementares. Assim, costuma
pensar-se que o político ideal seria um homem que, além de ser um grande
estadista, fosse também uma boa pessoa. Mas será que isto é possível?
Os ideais”, conclui o autor de La
rebelión de las masas, “são as coisas recriadas pelo nosso desejo – são desiderata - . Mas que direito temos nós
de desejar o impossível, de considerar como ideal o quadrado redondo?” Esta
quadratura do círculo não a conseguiu Almeida Santos, completamente, como o não
conseguiu nenhum grande político antes dele: seria contra a própria natureza
das coisas. Mas, se o autor de Rã no
Pântano não correspondeu nunca ao modelo do puro “ideal”, menos ainda se
situou no de puro “arquétipo”. Equilibrando-se, instavelmente, entre uma
sincera busca de ideais e de princípios e uma necessária e conflituante
rendição às asperezas da realidade e do compromisso, Almeida Santos seguiu o
percurso normal de quase todos os políticos que fizeram história. Os que, como
Herculano, visam um ideal quimicamente puro e rejeitam frontalmente o resignado
arquétipo – acabam fatalmente em Vale de Lobos: grandes padrões de ética, mas
políticos fracassados e amargurados (“Isto dá vontade de morrer!” e outras
proclamações de igual gosto e ineficácia). O verdadeiro político não hesita em
sujar as mãos, ao serviço de um qualquer objectivo. Mas, cuidado: suja-as por
nós, para que alguns de nós, egoistamente, nos possamos gabar de as manter
limpas. Digamos que evangelicamente se perdem para que outros se possam salvar.
Ortega
considerava haver dois tipos de homens: os ocupados e os preocupados, ou seja:
os políticos (sempre ocupados, sempre agindo
ou fazendo) e os intelectuais
(sempre preocupados, sempre interpondo ideias
“entre o desejar e o executar”). Almeida Santos não cabia inteira e
exclusivamente em nenhuma destas duas categorias: era um político (gostava de fazer, de actuar, de executar), mas
era também um intelectual (gostava de sonhar,
de visionar, de pensar, de interpor ideias). Era, como intelectual, um escritor, de
abundante bibliografia. Tem sido dito que era mesmo um admirável escritor e um
empolgante orador (o que muito lhe teria valido nos seus prélios de causídico).
Dizia Étienne Dumont, testemunhando
sobre Mirabeau, que “a eloquência é o encanto dos homens reunidos”. Muitos se
sentiram enfeitiçados pela palavra fluente, floreada, castiça do tribuno
Almeida Santos. Permita-se-me observar, sem sombra de acinte, que, como o
vinho, ele foi melhorando com a idade: inicialmente, a sua prosa – falada ou
escrita – enrodilhava-se, um tanto ou quanto, em meu entender, numa “Ramalhal”
abundância, com algum toque de mau gosto; porém, com o decorrer dos tempos, foi
sabendo descascá-la até lhe dar o escorreito e a limpidez dos textos mais
clássicos. O seu livro Nova Galeria de
Quase Retratos contém peças admiráveis sobre Mandela, Afonso Costa,
Mouzinho da Silveira, Miguel Torga, entre outros.
Como o
verdadeiro animal político que gosta de se ocupar
(Mirabeau desentranhava-se em actividade imparável mesmo quando se encontrava
encarcerado…), Almeida Santos era um trabalhador incansável: abatia tarefas,
como quem respira: grande legislador, governante extremamente operoso, escritor
abundante, viajante intemerato, político e intelectual doublé de infatigável
homem de negócios – e o mais que aqui se não diz…Era formidavelmente
trabalhador, era fecundo, era generoso. Recebia muito e dava muito. Os gestos
da sua abertura aos outros (sem falar nas defesas pro bono de presos políticos), em Lourenço Marques, onde se
estabeleceu, como advogado, em 1953 e, depois, em Lisboa, eram conhecidos e não
foram poucos. Um exemplo só: numa manhã de sábado perdida, na baixa laurentina,
junto à loja de discos do João Reis, ia Almeida Santos a passar, atira-lhe o
Rui Knopfli, sempre gavroche e provocador: “Ó António, pagas-me a edição do meu
livro de poesia?” Sem hesitar, com um sorriso galhardo, Almeida Santos saca do livro de cheques e da caneta: “De
quanto precisas?” Generoso, a seguir à independência das colónias, ajudou meio
mundo a recomeçar vida em Portugal. Alguns – vários – dos que vieram pedir-lhe
ajuda tinham-no, antes, profusamente caluniado. E continuaram a fazê-lo, com
vigor acrescido, depois de devidamente atendidos. A gratidão pesa. Escoicinhar
alivia.
Generoso,
pois. Mas também pragmático, homem de negócios, com tudo, de menos bom, que tal
encargo acarreta. Corajoso e eloquente oposicionista, era muito capaz de jantar
com o diabo e de conviver com o inimigo. O seu “charme”, com laivos de
casticismo, era, para muitos, irresistível. Abatia, como disse, horas imensas
de trabalho, com um sorriso sereno, de quem se não cansa e muito menos se descompõe:
fazia-o com aquela aparente “força fácil” de que falava o Eça.
A literatura
incriminadora dos políticos é abundante e contundente. Diz-se deles cobras e
lagartos, porque são capazes de passar por toda a folha, para chegarem onde
querem chegar. Ortega não ilude o problema e fala, com aguda perceptividade,
naquela, digamos, “falta de escrúpulos” que faz parte do equipamento de todo o
político. Falta de escrúpulos que ele logo avisa não dever confundir-se com
“imoralidade”. Eu cito: “Não acusemos, pois, de imoralidade o grande político.
Em vez disso, digamos que lhe falta o sentido de escrúpulo. Mas um homem
escrupuloso não pode ser um homem de acção. O escrúpulo é uma qualidade
matemática, intelectual: é a exactidão aplicada à valoração ética das acções.
Se se examina com cuidado a vida de Mirabeau, de César, de Napoleão, vê-se que
a presumida maldade não é senão a falta de escrúpulo anexa a todo o
temperamento activista e, portanto impulsivo.” Seja dito que só em parte
pequena isto se aplica ao político (por isso algo) “imperfeito” (embora grande)
que foi Almeida Santos: mas não poderia ficar imune – como político – ao
escalpe analítico do grande filósofo.
Pela parte que
me toca, fiquei a dever a Almeida Santos testemunhos vários da sua generosidade
e amizade. E não me pesa a gratidão que sinto.
Muitos que
regressaram de África, a seguir às independências, têm acusado o autor de Pela Santa Liberdade de ser o principal
responsável pelos terríveis problemas que acompanharam o processo da
descolonização. É injusto e é, sobretudo, falso. Essa responsabilidade situa-se
muito a montante: deve-se fundamentalmente à teimosia de Salazar e à inacção de
Marcelo Caetano. Almeida Santos limitou-se a apanhar os cacos de uma política
míope e tonta. E fê-lo com enorme empenho, certeira eficácia, muita energia e
um grande coração".
1 comentário:
“Nem Deus nem Demónio”. Eis o Homem! Se amado, Deus. Se odiado, Demónio. Ou talvez o contrário seja a verdade... Onde há muitos, há erro... Mas compreendo a falha dos dois e a falha dos grandes Homens suspensos no vazio dessa cruz de mãos dadas à direita e à esquerda. Uma triste dependência independente. Pendente, o Homem, não importa o tamanho, vibra pelas naturais cordas do amor e do ódio balançando ao sabor da sua simbologia e, por isso, sem terra de repouso. Ingarantido, incoerente, inconsistente, frágil, o Homem criado e procriado ainda se tenta erguer pelo seu pé, em pleno desmame ventral, tropeçando no riso e no choro por um caminho herdado de escombros à procura da Mãe eternamente perdida. Pela palhinha do estábulo, rodeado de bestas e anjos, bebe o céu negro de estrelas e paraísos mirrados pelos magos do deserto.
“Nem Deus nem Demónio”, Deus ele próprio, resolvido e Uno, órfão de Pai e Mãe, infamiliar, afastado do cálice e da festa, resta-lhe o calvário e a expulsão da Humanidade que o matou. Talvez porque o Homem sozinho, apenas Homem, por muito grandioso que se torne, perca a sua Humanidade se “nem Deus nem Demónio” e não seja mais reconhecido como humano. A pior solidão de todas – o regresso inteiro ao animal que resta, sem glória, nem flor, nem céu. Apenas chão.
F.C.
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