[Outro dos meus artigos no JL de 26 de agosto de 2020 sobre os vários centenários de autores de ficção científica. Gostei muito deste pela ligação menos conhecida ao Moby Dick. O Jornal recomenda, entretanto, várias obras dos autores publicadas recentemente. Além destes trabalhos e de outros artigos, notas e sugestões, o JL tem entrevistas a Ondjaki e João Alvim, discute as feiras do livro de Lisboa e Porto, o teatro, a fotografia e outros assuntos. Boas leituras!]
Comemora-se este ano o centenário do nascimento de Ray Bradbury (1920-2012). Em Jardins de Cristais – Química e Literatura (Gradiva, 2014) escrevi que este não era tanto um autor de ficção científica mas mais um autor de narrativas fantásticas. E dava como exemplo o conto As Maçãs Douradas do Sol, no qual, uma nave espacial arrefecida a amoníaco, vai recolher bocados do Sol para usar como energia. O autor apresenta para a nave uma temperatura de milhares de graus negativos que viola a temperatura zero (que é de -273,15ºC) colocando este livro no domínio do fantástico, e isso é interessante no que concerne à distinção entre o que é possível e que não é.
Toda a gente vê que as pessoas não voam com pó mágico e bons pensamentos e não temos dificuldade em chamar a isso fantasia. Mas podemos não saber que a termodinâmica não permite temperaturas tão baixas, por exemplo. É por isso que uma verdadeira cultura científica é tão necessária. Ajuda-nos a distinguir a fantasia da realidade e nisso a ganhar novos mundos, ou ajuda-nos a perceber um argumento científico, ou a separar a ciência da pseudociência - estou-me a lembrar dos excelentes Pipocas com telemóvel (Gradiva 2012), ou A ciência e os seus inimigos (Gradiva, 2017) de Carlos Fiolhais e David Marçal. Não quero com isto dizer que não haja franjas, complexidades e aspectos técnicos – sim há. Mas é uma grande infelicidade haver erros tão banais como errar a tabuada que nunca irão mudar e são esses que deveremos evitar sob pena de sermos enganados e não percebermos o mundo em que vivemos.
Disse ainda, nesse livro, que Ray Bradbury levantava outros problemas numéricos. Por exemplo, no seu famoso Fahrenheit 451, também datado de 1953, usa como título o suposto valor da temperatura (em Farenheint) a que o papel arde de forma espontânea (temperatura de auto-ignição). Como é bem conhecido, neste livro distópico os bombeiros não apagam fogos, antes queimam livros, quaisquer livros, pois estes foram proibidos. Disse que são muitos os aspectos químicos que podem ser encontrados neste livro. E é verdade. Os processos de combustão, os materiais incombustíveis de que são feitas as casas, os antidepressivos e as drogas, são alguns exemplos, mas salientava, e ainda saliento, muito em particular a química dos odores. Ao longo de todo o livro os cheiros têm um papel importante nas suas relações com as memórias. A tomada de consciência do bombeiro e também na perseguição deste realizada por um mastim mecânico que usa o espectro do seu cheiro para o detectar. Este cão não vai aparecer no filme, talvez pelos aspectos técnicos, talvez por não ser interessante em termos de imagem, mas acaba por ser um aspecto interessante e muito actual a considerar. Na realidade os odores e a sua relação com a memória desempanham um papel importante em boa parte da literatura. Lembro apenas os cheiros que marcam a vida de Fermina Daza em o Amor nos Tempos de Cólera de Gabriel Garcia Marques e o famoso bolo (uma madalena) que conduz o narrador à sua infância de Em Busca o Tempo Perdido de Marcel Proust.
Fahrenheit 451 é muito conhecido e teve várias versões em contos e livros até à versão final que agora conhecemos. Há várias interpretações para a queima dos livros e isso é, na minha opinião, a boa literatura – haver várias possibilidades e caminhos. O próprio Bradbury contribuiu para isso referido o seu amor incondicional aos livros e como a televisão os poderia destruir. Não foi isso que aconteceu – nem a televisão, nem a internet, que em 1953 não era conhecida, matou os livros. Podería falar das suas Crónicas Marcianas, do Homem Ilustrado, ou de outras conhecidas obras. Mas não.
Toda a gente vê que as pessoas não voam com pó mágico e bons pensamentos e não temos dificuldade em chamar a isso fantasia. Mas podemos não saber que a termodinâmica não permite temperaturas tão baixas, por exemplo. É por isso que uma verdadeira cultura científica é tão necessária. Ajuda-nos a distinguir a fantasia da realidade e nisso a ganhar novos mundos, ou ajuda-nos a perceber um argumento científico, ou a separar a ciência da pseudociência - estou-me a lembrar dos excelentes Pipocas com telemóvel (Gradiva 2012), ou A ciência e os seus inimigos (Gradiva, 2017) de Carlos Fiolhais e David Marçal. Não quero com isto dizer que não haja franjas, complexidades e aspectos técnicos – sim há. Mas é uma grande infelicidade haver erros tão banais como errar a tabuada que nunca irão mudar e são esses que deveremos evitar sob pena de sermos enganados e não percebermos o mundo em que vivemos.
Disse ainda, nesse livro, que Ray Bradbury levantava outros problemas numéricos. Por exemplo, no seu famoso Fahrenheit 451, também datado de 1953, usa como título o suposto valor da temperatura (em Farenheint) a que o papel arde de forma espontânea (temperatura de auto-ignição). Como é bem conhecido, neste livro distópico os bombeiros não apagam fogos, antes queimam livros, quaisquer livros, pois estes foram proibidos. Disse que são muitos os aspectos químicos que podem ser encontrados neste livro. E é verdade. Os processos de combustão, os materiais incombustíveis de que são feitas as casas, os antidepressivos e as drogas, são alguns exemplos, mas salientava, e ainda saliento, muito em particular a química dos odores. Ao longo de todo o livro os cheiros têm um papel importante nas suas relações com as memórias. A tomada de consciência do bombeiro e também na perseguição deste realizada por um mastim mecânico que usa o espectro do seu cheiro para o detectar. Este cão não vai aparecer no filme, talvez pelos aspectos técnicos, talvez por não ser interessante em termos de imagem, mas acaba por ser um aspecto interessante e muito actual a considerar. Na realidade os odores e a sua relação com a memória desempanham um papel importante em boa parte da literatura. Lembro apenas os cheiros que marcam a vida de Fermina Daza em o Amor nos Tempos de Cólera de Gabriel Garcia Marques e o famoso bolo (uma madalena) que conduz o narrador à sua infância de Em Busca o Tempo Perdido de Marcel Proust.
Fahrenheit 451 é muito conhecido e teve várias versões em contos e livros até à versão final que agora conhecemos. Há várias interpretações para a queima dos livros e isso é, na minha opinião, a boa literatura – haver várias possibilidades e caminhos. O próprio Bradbury contribuiu para isso referido o seu amor incondicional aos livros e como a televisão os poderia destruir. Não foi isso que aconteceu – nem a televisão, nem a internet, que em 1953 não era conhecida, matou os livros. Podería falar das suas Crónicas Marcianas, do Homem Ilustrado, ou de outras conhecidas obras. Mas não.
Falo aqui do amor de Bradbury à literatura e de um problema que me intrigava e me fez voltar ao Moby Dick de Herman Meleville. Por que é Ray Bradbury disse e escreveu que a personagem de Persee Fedallah arruinava a obra? É verdade que este é referido de forma enigmática por Melville apenas a partir da capítulo 48 como um dos cinco fantasmas que rodeavam o capitão Ahab mas ainda não tenho um resposta convincente.
Como jovem argumentista de Hollywood, Ray Bradbury adaptou, também em 1953, o Moby Dick para o filme do mesmo nome de 1956 de John Huston com Gregory Peck a fazer de Ahab e com o sermão do padre Mapple a ser realizado por Orson Wells. Uma equipa fantástica como John Huston referiu. Os efeitos especiais eram rudimentares pelos padrões de hoje e para dar uma cor profunda ao filme foram sobrepostas a película a cores e preto e branco (diz-me a wikipedia). E, de facto, na cópia que tenho as imagens são bastante escuras. Ray Bradbury tratou de dizer a John Huston, o seu herói, que Fedallah seria atirado borda fora e as suas melhores deixas passariam para Ahab, com o que John Huston concordou de imediato.
Em 1992, Ray Badbury publicou Green Shadows: White Whale (que julgo não ter sido traduzido para português) o qual trata da sua ida à Irlanda e da escrita do guião do Moby Dick. Começa com a chegada ao mundo verde da Irlanda e um diálogo incrível com um inspector da alfandega sobre cultura, em particular sobre literatura, sobre o Moby Dick e o Hamlet. Muito do livro são os seus diálogos (verdadeiros ou inventados) com personagens locais ou com John Huston, enquanto escreve o guião do filme. Durante esse tempo, fala, vive e sonha com a literatura. Com Hemingway, Shaw, Chesterton, Wells entre outros, e ganhará um prémio, ele que aparentemente era conhecido como um Flash Gordon que punha toda a sua libido nos foguetões. Mas adaptar o Moby Dick era o seu sonho – conta - ele que amava a literatura e leu o livro totalmente três vezes, algumas partes cinco vezes e outras pelo menos vinte vezes.
Escrevi em 2014 que um bom livro de ficção científica, policial ou de literatura fantástica, mas também de ciência, é aquele que nos abre os olhos para enigmas para os quais ainda não temos solução. Continua a ser absolutamente verdade para mim.
Como jovem argumentista de Hollywood, Ray Bradbury adaptou, também em 1953, o Moby Dick para o filme do mesmo nome de 1956 de John Huston com Gregory Peck a fazer de Ahab e com o sermão do padre Mapple a ser realizado por Orson Wells. Uma equipa fantástica como John Huston referiu. Os efeitos especiais eram rudimentares pelos padrões de hoje e para dar uma cor profunda ao filme foram sobrepostas a película a cores e preto e branco (diz-me a wikipedia). E, de facto, na cópia que tenho as imagens são bastante escuras. Ray Bradbury tratou de dizer a John Huston, o seu herói, que Fedallah seria atirado borda fora e as suas melhores deixas passariam para Ahab, com o que John Huston concordou de imediato.
Em 1992, Ray Badbury publicou Green Shadows: White Whale (que julgo não ter sido traduzido para português) o qual trata da sua ida à Irlanda e da escrita do guião do Moby Dick. Começa com a chegada ao mundo verde da Irlanda e um diálogo incrível com um inspector da alfandega sobre cultura, em particular sobre literatura, sobre o Moby Dick e o Hamlet. Muito do livro são os seus diálogos (verdadeiros ou inventados) com personagens locais ou com John Huston, enquanto escreve o guião do filme. Durante esse tempo, fala, vive e sonha com a literatura. Com Hemingway, Shaw, Chesterton, Wells entre outros, e ganhará um prémio, ele que aparentemente era conhecido como um Flash Gordon que punha toda a sua libido nos foguetões. Mas adaptar o Moby Dick era o seu sonho – conta - ele que amava a literatura e leu o livro totalmente três vezes, algumas partes cinco vezes e outras pelo menos vinte vezes.
Escrevi em 2014 que um bom livro de ficção científica, policial ou de literatura fantástica, mas também de ciência, é aquele que nos abre os olhos para enigmas para os quais ainda não temos solução. Continua a ser absolutamente verdade para mim.
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