"Ora aqui está, se não me iludo, uma pedra de violento escândalo para muitos dos nossos leitores anti-desportistas: o desporto como peste contemporânea até agora, invade heterodoxalmente o belo templo de Minerva e vem sentar-se, de face descarada, no banco dos doutoramentos perante um areópago sapientíssimo e soleníssimo " (Sílvio Lima, professor da Universidade de Coimbra, 1904-1993).
Perante resquícios de uma sociedade vítima, ainda por vezes, do dualismo cartesiano ("res extensa/res cogitans"), hesitei em publicar neste blogue o meu "post" -"A paciência também se esgota", 03/09/2020 -, mas logo essa hesitação se dissipou por prestar homenagem póstuma a um colega de estudos superiores académicos (INEF) ,que muito estimei, meu companheiro de "marranço" de sebentas noites fora, por cafés lisboetas com maior frequência no "Palladium", no fim da Avenida da Liberdade.
Refiro-me a João Boaventura e ao seu "post" publicado neste blogue, que transcrevo "verbo pro verbo":
segunda-feira, 2 de julho de 2012
A PROPÓSITO DAS ATRIBULAÇÕES DA EDUCAÇÃO FÍSICA
Texto recebido de João Boaventura (na imagem tese de doutoramento sobre exercício físico defendida na Faculdade de Medicina em Paris em 1834 do português G. Centazzi, que estudou em Coimbre e foi o autor do primeiro romance português):
A sociedade lusitana, não satisfeita com o andar da carruagem nacional, ficou agora surpreendida com os ataques contra a educação física por parte do governo, o que significa assistirmos a um ataque que dura desde a fundação de Portugal até aos dias de hoje, pelo que espanta alimentar-se alguma incredulidade sobre o que debaixo dos nossos olhos espantados o Ministro da Educação consegue patentear, ou seja, considerar que a matemática, a menina dos seus olhos, é matéria fundamental no ensino, o que não se discute, mas a educação física – que oxigena o cérebro para lhe permitir fazer os cálculos matemáticos – lhe merece o desprezo, por manifesta ignorância, quando um matemático, embora não seja obrigado a saber tudo, deveria ao menos respeitar o que desconhece, ou procurar esclarecer-se. Razão tinha Helena Roseta quando proclamou que é muito fácil perder a alma quando se está no poder. (O JORNAL, de 18.5.1981)
Admite-se que haja uma hierarquia de valores nas cadeiras curriculares, mas todas elas em paridade na formação dos jovens. Mas como é isso possível se os políticos europeus já falam em países de primeira e países de segunda classe, abotoados com aldrabas de solidariedade, quando esta palavra já os pressupõe? Mas como é isso possível, quando o governo suprime subsídios de férias e Natal a todos os funcionários, mas aplica abonos suplementares de férias e Natal a alguns eleitos, infringindo um direito e violando um dever?
Quem se der ao trabalho de fazer uma análise panorâmica à progressiva regressão da educação física nacional verificará que é concomitante com a progressiva regressão política, económica e social, o que significa haver uma perfeita conjugação entre governo e súbditos porque, soçobrando o primeiro, é matematicamente impossível não se afundarem também os outros por arrastamento.
È muito provável que algumas culpas caibam aos professores de educação física, mas elas resultam do desequilíbrio imposto, entre dominante e dominados, que os obriga a lobrigar novos horizontes para estancar o derrame que os governos sucessiva, teimosa e agressivamente decretam, promulgam e acentuam.
A conquista obtida, em 2004, pela classe para se equiparar a disciplina aos das cadeiras intelectuais e científicas, com as classificações, e pontos escritos, apresentava-se como um recurso demonstrativo de que todas as cadeiras seriam iguais em importância e valia, mas depararam com um imprevisto e inesperado impasse que obliterou o que parecia ter alguma lógica.
Chegados ao final do ano lectivo as expectativas dos alunos para ingressarem na Universidade saíram goradas, porque as classificações (médias, altas ou baixas, mas insuficientes) vinham coarctar-lhes a escolha da carreira, transformando a educação física numa cadeira destinada a obstruir o futuro dos jovens, independentemente de alguma animosidade já prevalecente contra a disciplina.
A celeuma gerada parece não ter tido qualquer reacção positiva, no sentido de encontrar uma saída para um problema gerado pela própria classe. Colocada mentalmente entre duas situações – ou aumentar a nota, ou mantê-la – optou eticamente pela segunda, tomando uma posição de força que o Estado não lhe reconhecia, tanto mais que nas reuniões em que as notas definitivas eram atribuídas, alguns docentes das restantes disciplinas, e face ao currículo de alguns alunos, não tinham qualquer objecção em levantarem a nota, para facilitar a entrada nos cursos superiores.
Perante este quadro, o Ministério tomou a única decisão possível que foi a de decidir que a disciplina de educação física não entrará no apuramento da média final para acesso à universidade, no próximo ano lectivo, mantendo-se o sistema para os que pretenderem ingressar nas universidades de âmbito desportivo, onde aí a classificação já tem um peso valorativo específico.
O sonho realizado da igualizar a educação física com as outras disciplinas desfez-se em espuma, já que classificar ou não classificar têm o mesmo valor. E, se a animosidade do Governo para com a educação física escolar, no caso vertente, e para com o desporto, em geral, se vem patenteando com manifesto desassombro, ao longo de todas as legislaturas, a classe acabou por fornecer ao Governo mais uma oportunidade para ir agonizando a disciplina.
Donde se pode concluir que a educação física, como “instrumento” de trabalho se transformou numa “instituição”, no que sela encerra de preocupações outras, como foram as classificações para se equipararem às restantes disciplinas, com os resultados contraproducentes.
Mas a classe limitou-se a seguir o lema de Hannah Arendt, ou seja, “a luta contra o poder é a luta da memória contra o esquecimento”.
João Boaventura
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