sexta-feira, 4 de setembro de 2020

A Duna encontra o Outono em Pequim: diálogos inesperados entre Frank Herbert e Boris Vian

[Outro dos meus artigos no JL de 26 de agosto de 2020 sobre os vários centenários de autores de ficção científica. Gostei especialmente deste. De aprender sobre a ligação de Boris Vian a este universo e de fazer a ligação deste à Duna de Franck Herbert, também ele centenário. O Jornal recomenda, entretanto, várias obras dos autores publicadas recentemente. Além destes trabalhos e de outros artigos, notas e sugestões, o JL tem entrevistas a Ondjaki e João Alvim, discute as feiras do livro de Lisboa e Porto, o teatro, a fotografia e outros assuntos]


Quando a Duna de Frank Herbert (1920-1986), o livro de ficção científica (FC) mais lido de todos os tempos, com pelo menos duas adaptações para cinema, uma delas de David Lynch, foi publicado, em 1965, Boris Vian (1920-1959) tinha já morrido. Morreu com 39 anos, mas deixou uma obra a descobrir. Eu, que fiz parte da geração que lia os livros de Vian pelo seu humor e provocações, nunca tinha pensado em Boris Vian como um autor de ficção científica, mas a enciclopédia de FC na internet disse-me que sim – e eu verifiquei que era verdade. Em Outono em Pequim, obra inclassificável de 1947, que não se passa num outono nem em Pequim, onde o surrealismo se mistura com o humor, tudo com um fundo de música que se sente em toda obra, ou não fosse o autor também músico, tem desertos, areia e dunas. Talvez não seja classificado precisamente como sendo ficção científica, como A Erva Vermelha, por exemplo, mas poderia. Boris Vian era um polimata que traduziu ficção científica, escreveu usando os métodos da ficção científica e escreveu ensaios, em particular um deles sobre o cinema de ficção científica, merece ser lembrado também por isso. Sofria de uma doença do coração, o que o fez com que fosse considerado inapto para a guerra, desaconselhado de tocar saxofone e acabasse por morrer de enfarte de miocárdio.

Há um número enormíssimo de livros sobre ficção científica. Tenho aqui comigo uma referência - já datada, é certo, mas todas o são - para livros e outros materiais sobre livros e materiais de ficção científica, literatura fantástica e horror. Parece ficção científica - um livro que cataloga livros, que catalogam livros e aí por diante - mas não é – existe mesmo! Refere até um livro sobre a ficção científica recursiva, ou seja ficção científica que escreve sobre ficção científica! Natália Correia, sempre atenta, disse em 1981 que não era uma literatura menor – e penso que tinha razão. Basta pensar nos autores que referi, mas também em o Ensaio sobre a Cegueira de José Saramago, por exemplo, agora muito citado. Nesse livro referem, claro, H. G. Wells, Artur C. Clark, Isaac Asimov, Ray Bradbury, Frank Herbert, e muitos outros, mas não encontrei Boris Vian, ele que terá dito que a ficção científica “era o ressurgimento da poesia épica.” Nem mais!

Também no Outono em Pequim há dunas, como referi, mas primeiro falemos da Duna de Herbert. Começo por dizer que não gosto muito da Duna, nem de livros similares. O que mais me aborrece, mas aceito que outros adorem, é a existência de um mundo alternativo no futuro que se passa a milhares de anos, com viagens mais rápidas do que a luz e muitas tecnologias para nós desconhecidas. Para mim, o mais interessante está nas entrelinhas. As pessoas continuarem a ser humanas, claro, e serem até mais feudais e religiosas. Os computadores e robôs, assim como todas as máquinas que podem imitar o homem estão proibidos! Como é que isto é possível? O livro apresenta uma solução: computadores humanos. Paralelamente, há uma especiaria que só existe no planeta Arakis onde quase não existe água e por isso esta e o sangue (que como sabemos é uma solução aquosa) são preciosos. E os nativos usam fatos destiladores para não perderem água. Claro que a narrativa tem falhas, mas é plausível. Ou talvez não seja em 2020, mais de sessenta depois de ser escrito! Com a tecnolgia de hoje saberíamos qual era a estrutura tridimensional da especiaria que, de acordo com uma enciclopédia sobre o livro, tem uma parte parecida com a canela e outra parecida com a hemoglobina. A milhares de anos de distância, com viagens no espaço-tempo, mais rápidas do que a luz - comandadas por computadores humanos, é certo - continuam a não saber qual é a estrutura da molécula mais importante e central na civilização? Claro que podemos suspendar a nossa desconfiança, mas essa eu tive alguma dificuldade em engolir. Afora isso, vemos claramente como o Duna influenciou muita da literatura de ficção científica que se seguiu e, em particular, os filmes conhecidos como Star Wars, estes que, por outro lado, revolucionariam o consumismo. E ao mesmo tempo tem sido visto como um livro ecológico. Esse aparente paradoxo também me fez pensar. Mas percebemos mais ou menos porquê: a tecnologia é biológica. Na minha opinião, o melhor do livro são as imagens que acabaram por influenciar o cinema e a banda desenhada de ficção científica. Agora, em 2020, parecem banais mas não eram, sendo que o Duna pode ser também um filme de franchising – na verdade este é também uma saga com vários episódios. Um conhecido cineasta, Martin Scorcese, disse, e explicou mais tarde, que isso não era cinema por já se saber o que irá acontecer, e sobretudo como será feito. Ele referia-se aos filmes de super-heróis e, em particular, aos filmes de franchising, aos filmes de chave-na-mão, mas acho que ele (ou nós) podermos estar a cair no mesmo erro das pessoas que pensam que a literatura de ficção científica é uma literatura menor. Pode ser, sim, se for unilateral e banal, só para vender, mas pode ser excelente se nos abrir os olhos, se tiver vários caminhos possíveis, mesmo sabendo nós a história, aliás como acontece nos mitos gregos - toda a gente sabe, ou pode saber, o que acontece ao Édipo, por exemplo.  

O Outono em Pequim foi escrito afinal na primavera e refere autocarros que se perdem nas cidades e um deserto longinquo mas estranhamente, ou não, familiar, onde estes nos podem levar por acaso. Rolls refere também A Visita Maravilhosa de Wells, a Viagem ao Fim da Noite de Céline, a Alice no País das Maravilhas de Carroll, O Estrangeiro de Camus e o Trópico de Cancer de Miller. Mas, deixemos isso para os especialistas. Este livro não tem medo de ser divertido, essa é que é essa. O deserto estabelece a ligação entre os dois livros mas a seriedade pomposa afasta os dois autores. Como referi, Boris Vian traduziu para francês e escreveu sobre ficção científica. Depois de Jules Verne ser quase abandonado em França, Boris Vian escreverá sobre ficção científica (FC) e temos um volume compilando crónicas de cinema e FC. É neste que recupera um artigo, escrito sob psedónimo, em 1947, em que declara que o romance de antecipação é agora chamado de ficção científica. Neste também antecipa como seria sua vida em 2000, ano em que terá 80 anos, mas não, não foi bem assim. Boris Vian não antecipou, como refere o cardiologista Gilgenkrantz, os tratamentos cardíacos que se seguiram, tendo morrido numa ambulância.

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