Crónica primeiramente publicada em diversa imprensa regional
O sonho é, de facto, uma constante da vida, ou mais precisamente dos seres vivos.
Demócrito sonhou com o átomo. Mas foi Aristóteles, que não possuía
equipamentos de ressonância magnética, o primeiro a observar que até insectos,
como as abelhas, sonham. Que sonham, quiçá com coreografias, desenhos de
néctar, no palco hertziano de uma passarola solar. Mas sonham!
Freud, que não sabia como Damásio da natureza molecular,
fisiológica e anatómica das emoções, pressentiu nos sonhos os desejos por
interpretar da terra do subconsciente. Desejos de terras distantes, de
superfícies lunares.
Aserinsky
e Kleitman, que não sabiam bolinar, encontraram ilhas de sonho no mar do sono. Designaram
estas janelas interiores por sono R.E.M. (Rapid Eye Movement). Por elas, a
actividade neuronal expressa nos registos electrofisiológicos, é semelhante à
do estado de vigília, quando estamos acordados!
Mas
por essas janelas cogitamos sem nos movermos. Mas o sonho, esse avança por essas
ilhas de sono R.E.M.
Hobson e McCarley, sem
saberem voar, postularam que os sonhos são experiências sensoriais cerzidas
pelo tear do cortéx cerebral, que usa fios de sinais aparentemente caóticos,
emanados desde a Ponte de Varólio, estrutura primeva do tronco cerebral, que
partilhamos com os répteis e com as aves.
Payne e Nadal, que não eram poetas, definiram o sonho como o
resultado de uma semântica feita com memórias, que nele se consolidam numa
fluida narrativa, como pedaços de vida acordada, mas intangível e que foge à
recordação mais consciente.
Se o sonho ocorre, é porque tem uma função específica e útil para
as redes neuronais e suas complexas interacções entre as diferentes partes do
cérebro. É porque foi uma melhor adaptação para a realidade evolutiva segundo
Darwin!
Mas quais são os caminhos do sonho? Em que vagas de ondas de
impulsos, ditos nervosos, avança ele, por entre milhões de neurónios, até à praia
da nossa consciência?
No oásis onírico revoltam-se as essências, ocorrem flutuações na
concentração de iões e moléculas. Mas há átomos e moléculas do sonho?
Sim. Alguns iões, principalmente os de sódio e potássio. E que
moléculas? Certas combinações de não mais de duas dúzias de átomos de carbono,
oxigénio, nitrogénio e hidrogénio. Átomos forjados em estrelas, mais ou menos
distantes, e que hoje formam neurotransmissores, quais caravelas transportando
mensagens.
Allan Hobson sonhou quantificar as moléculas do sonho. Mostrou que
no sono do sonho, as concentrações nos fluidos cerebrais de neurotransmissores
como a serotonina, a histamina e a noradrenalina estão diminuídas, e isto inibe
as vias neuro-motoras, relaxando o corpo.
Por outro lado, neurónios colinérgicos na Ponte de Varólio
aumentam as vagas de acetilcolina em direcção ao córtex e em níveis semelhantes
ao estado acordado. Será a acetilcolina (C7H16NO2) a molécula do sonho?
Nesta janela bioquímica que também é o sonho, o córtex cerebral tenta
organizar as incessantes e anacrónicas vagas de impulsos. E com a matriz de
padrões feitos de sensações e emoções quotidianas, o cérebro cortical vê,
sente, ouve sem gastar os sentidos. Revisita a caderneta das nossas vivências,
dos nossos planos futuros e compara-os, mistura-os, experimenta-os em novos
cenários interiores, para forjar no silêncio sonoro e visual uma alquimia de
novos e úteis padrões de comportamento. E faz tudo isto e muito mais, sem
cansar o corpo.
Mas no mar da vigília, também há ilhas de sonho. Ao sonhar
acordados, co(a)gitamos as ressonâncias entre experiências passadas com as
possibilidades futuras, permitimos que soluções novas, para problemas velhos, floresçam
de entre razões enrodilhadas.
E através da paleta das ressonâncias magnéticas funcionais,
sonhamos nós um dia poder ver as cores de um sonho qualquer, “como bola
colorida entre as mãos de uma criança” como escreveu, sonhando, Rómulo de
Carvalho na sua pérola poética enquanto António Gedeão.
Sonhemos…
António Piedade
Comunicador de Ciência
1 comentário:
Os sonhos são maravilhosos desde que não se concretizem. Precisamos de espaços sólidos de fuga, de ideais etéreos, de amores perfeitos, de naturezas mortas que não se transformem em realidade. Sonhar é sempre não ser. Liberdade.
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