quarta-feira, 30 de setembro de 2020

O QUE É A VIDA?


Meu artigo no Público de hoje (na foto Erwin Schrödinger):

Quando em 1938, depois do Anschluss, a Universidade de Graz, na Áustria, se passou a chamar Adolf Hitler, o físico austríaco Erwin Schroedinger (1887-1961), que aí ensinava e que tinha recebido o Nobel da Física em 1933 pela sua formulação da teoria quântica como uma mecânica de ondas, teve de fugir para Itália. Iniciou então um longo périplo pela Europa, que acabou em 1940, quando se fixou em Dublin, na direcção do recém-criado Instituto de Estudos Avançados. A estada de 16 anos na capital irlandesa foi um período muito fértil da sua vida: Professor estimado, era convidado a fazer conferências sobre física e não só.

Foi em Dublin que Schrödinger proferiu em 1943 um ciclo de conferências intitulado “O que é a vida?,” que resultou na edição no ano seguinte do seu livro mais famoso. O co-autor da teoria quântica deu nele um contributo essencial para a interpretação da biologia. Para ele todos os fenómenos da vida, incluindo a então misteriosa hereditariedade, eram o resultado de leis físico-químicas, designadamente as leis quânticas que explicavam as ligações químicas. A pergunta do título prolonga-se noutra: Como é que podem ser explicados pela química e pela física os fenómenos que, no espaço e no tempo, se passam no interior dos seres vivo?” A resposta vem logo a seguir:A incapacidade evidente da física e da química actuais para explicar tais fenómenos não é de modo nenhum razão para duvidar de que eles possam ser explicados por essas ciências. A afirmação de que a vida é física e química continua válida: Os modernos desenvolvimentos da biologia, alguns deles de grande impacto (designadamente a sequenciação do genoma humano em 2000), têm dado razão ao físico austríaco.

Esta resposta a respeito da essência da vida – que contraria teses animistas – foi dada vários anos antes da descoberta da estrutura molecular do ADN, realizada em 1953 pelo físico inglês Francis Crick e pelo então jovem biólogo norte-americano James Watson. Os dois reconheceram a sua dívida para com o livro de Schroedinger, o físico que tinha feito a pergunta certa na altura certa, uma pergunta à qual eles ajudaram a responder.

A vida, exibida por uma imensa variedade de seres desde a bactéria Escherichia coli ao  Homo sapiens, é um fenómeno extremamente complexo. Foi, por isso, um golpe de génio a grande unificação que o naturalista inglês Charles Darwin propôs em 1859 integrando-os a todos numa “árvore”. Sabemos hoje que todos eles são descritos pelo código genético, formado por apenas quatro letras, que Crick e Watson, usando métodos das ciências físicas (raios X), reconheceram no ADN. Nos genes, as unidades físicas do ADN, encontram-se codificadas as proteínas, as máquinas-ferramenta da vida. O físico dinamarquês Niels Bohr, autor de uma versão antiga da teoria quântica, aconselhou, a partir de certa altura, os seus discípulos a enveredarem pela biologia molecular e alguns, como Max Delbrück, alemão naturalizado norte-americano, que estudou a genética da mosca da fruta, fizeram-no com um sucesso assinalável.

O livro inclui ainda o texto de outra conferência “Espírito e matéria” (talvez em vez de “espírito” devesse estar “mente”), proferida em Cambridge em 1956. Vida, Espírito e Matéria tornou-se, traduzido em várias línguas, um best-seller mundial. Em português saiu em 1963 nas Publicações Europa-América, uma edição agora em fac-símile na colecção do PÚBLICO, com tradução da primeira parte por Germano da Fonseca Sacarrão, professor na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, e da segunda parte por S. de Miranda.

Apesar do grande sucesso obtido pela teoria quântica na descrição dos fenómenos químicos e por extensão biológicos, Schroedinger experimentou algumas dificuldades de compreensão da sua teoria. O problema maior era o papel do acaso. Para explicitar o problema, engendrou em 1935, numa discussão com Einstein, um gato que se tornou proverbial. O gato está fechado numa caixa sujeito a um dispositivo quântico. Segundo a interpretação convencional, a medição modificava aleatoriamente a “função de onda” do gato: a vida ou a morte do felino dependem da observação. Enquanto a caixa não é aberta, o gato é um zombie, está meio vivo e meio morto, passando depois a vivo ou a morto. Estranho! Mas hoje tais estados de sobreposição são usados na computação quântica: isto é, aquilo que era uma dificuldade conceptual tornou-se um artefacto técnico.

Em Vida, Espírito e Matéria não há gato. Mas há muitas questões que transcendem a ciência. “O que é a vida?” termina com uma discussão do determinismo e livre arbítrio e “Espírito e matéria” aborda quase no final as relações entre ciência e religião (conclui afirmando a “indestrutibilidade do espírito pelo tempo”). Schroedinger interessou-se pela filosofia e pela espiritualidade, em particular por religiões orientais.

Este livro ainda hoje se lê com gosto e proveito. A ciência avançou e está a avançar mais, mas algumas dos mistérios fundamentais permanecem. Schroedinger, um grande humanista, percebeu quais eles eram.



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