Meu artigo no jornal I de ontem:
O infinito sempre nos
perturbou. É uma noção que tem desafiado a matemática, a física, a filosofia e a teologia. Na matemática a noção de
infinito decorre desde logo do facto de a sucessão dos números naturais 1, 2,
3,… nunca acabar. Um infinito pode conter o outro: o conjunto desses números é infinito,
mas ele contém dentro deles o conjunto dos números pares, 2, 4, 6,…, que também
é infinito. E os números reais, que contêm os naturais, são também em número
infinito.
Na física, uma questão perturbadora
tem sido a aplicação do conceito de infinito ao espaço e ao tempo. A teoria da
relatividade geral de Albert Einstein prevê infinitos (“singularidades”) no espaço
e no tempo, nos chamados “buracos negros” e nesse evento primordial de onde
tudo veio, o “buraco branco” que foi o Big Bang, ocorrido há 14 mil milhões
de anos. Os astrofísicos concordam hoje que vivemos num Universo que, no tempo,
é “semi-infinito”, isto é, infinito para a frente, mas não infinito para trás,
porque começou a certa altura. Como não temos acesso a nenhuma informação anterior,
não podemos dizer nada sobre o hipotético tempo anterior. E, mesmo sobre os
primeiros instantes do Universo, podemos dizer muito pouco. Por outro lado, no
que respeita ao espaço, permanece a questão de saber se o Universo é finito ou
infinito. Talvez seja infinito, mas não temos a certeza. Se é infinito, começou
logo infinito. No entanto, devido ao Big Bang, só podemos observar
dentro de um certo horizonte, uma superfície esférica com 42 mil milhões de anos-luz
de raio, mais do que 14 mil milhões porque o universo está em expansão.
O infinito sempre nos
causou vertigens. Ao olharmos para o céu, não podemos deixar de pensar na
extensão do espaço sideral. Blaise Pascal declarou: “O silêncio eterno desses
espaços infinitos assusta-me.” Se olharmos para a fotografias proporcionadas
pela NASA do “campo profundo” do telescópio espacial Hubble em que as galáxias
não passam de pontos, não podemos deixar de pensar no poema de William Blake:
“Veja o mundo num grão de areia,/ veja o céu num campo florido,/ guarde o
infinito na palma da mão,/ e a eternidade em uma hora de vida!”
Trinh Xuan Thuan (o nome
de família é Trinh, apesar de vir em primeiro) é um astrofísico vietnamita que é
professor na Universidade de Virgínia nos Estados Unidos e é investigador
associado ao Instituto de Astrofísica de Paris. É ele o autor do livro A Vertigem
do Cosmos, com o subtítulo Uma Breve História do Céu (piscando o
olho a Stephen Hawking), que acaba de sair pelo Círculo de Leitores e pela Temas
e Debates. É uma obra de popularização da astrofísica muito bem feita que
relata como as observações e medidas do céu se foram, ao longo do tempo,
ampliando e com elas o nosso entendimento do cosmos. Tal como Universo o nosso
conhecimento está em expansão.
Trinh nasceu em Hanói em
1948 (recorde-se que um dos primeiros astrónomos no Vietname, então chamado
Cochinchina, foi Christophoro Borri, um italiano, contemporâneo de Galileu, que
foi de Portugal e aqui voltou), e doutorou-se na Universidade de Princeton. É especialista
em astronomia fora da nossa galáxia, em particular na origem das galáxias: identificou
em imagens do Hubble a mais jovem galáxia até hoje conhecida. Publicou cerca de
15 livros, desde 1988, quando saiu o que terá sido o seu maior êxito, A Melodia
Secreta: ...E o homem criou o universo (Bizâncio, 2002), com tradução de
Máximo Ferreira (eu costumo dizer que “o céu é o Máximo”). Em português existem
ainda O Caos e a Harmonia: a Fabricação do real (Terramar, 1999) e O Infinito
na Palma da Mão: Budismo, ciência e salvação, com Matthieu Richard (Notícias,
2001). Ganhou em 2009 o Prémio Kalinga da UNESCO de divulgação científica e em 2012
o Prix mondial Cino Del Duca do Institut de France, que reconhece autores cuja
obra constitua uma mensagem de humanismo.
A primeira parte de A
Vertigem do Cosmos, publicada no ano passado em Paris pela Flammarion (a
editora fundada no século XIX por um irmão de Camille Flammarion, um dos
maiores divulgadores de ciência de sempre), de Paris, é uma história da
astronomia global, como hoje se diz. Começa por falar do universo mágico e
mítico do homem antigo para depois abordar a observação do céu no Egipto, na Mesopotâmia,
na Mesoamérica, na África, na Índia e na China. A origem asiática do autor ajuda a que exponha mitos e histórias que no Ocidente conhecemos
mal. Passa depois a descrever o universo de Isaac Newton, ordenado por leis
naturais, e o universo, “estranho e maravilhoso,” de Einstein, cuja teoria da
relatividade é necessária para descrever os buracos negros, o Big Bang,
e as ondas gravitacionais recentemente descobertas (que já vêm no livro).
O capítulo seguinte “Na
profundidade do espaço, um universo finito ou infinito?” discute a infinidade
do espaço. Já no capítulo sobre Newton, Trinh tinha referido a cosmovisão de Nicolau
Copérnico, em cuja obra maior, saída em 1543, o universo era fechado. Foi Giordano Bruno o primeiro a propor
um universo infinito no seu livro Sobre o Infinito, o Universo e os
Mundos (1584). Recordo o seu texto: "Existem incontáveis sóis;
incontáveis terras giram em torno destes sóis de maneira semelhante à forma
como os sete planetas giram em torno do nosso sol”. Foi queimado pela Inquisição
em 1600, não por essa mas outras heresias. Galileu escreveu em Diálogos
sobre os dois principais sistemas do mundo (1632): “Que vamos fazer agora (…)
com as estrelas fixas? Vamos dispersá-las nos imensos abismos do universo a
diferentes distâncias de um qualquer ponto determinado, ou então vamos colocá-las
sobre uma única superfície esfericamente esticada em redor do seu centro,
estando então todas a uma distância igual desse centro? (…) Não sabeis que
ainda não está decidido (e creio que continuará a sê-lo para ciência humana) se
o universo é finito ou infinito?” A questão para ele era de natureza metafisica
e não podia ser apreendida pela razão. Mas não arriscou pronunciar-se, por
conhecer o destino que teve Bruno. Na esfera protestante, o astrónomo seu contemporâneo
Johannes Kepler, embora concordando com Galileu em que a questão era metafisica,
imaginava um universo finito pela simples razão de que a noite era escura: se o
Universo fosse infinito e estivesse todo eles povoado de estrelas, haveria
sempre luz. Trinh cita o escritor oitocentista Edgar Allan Poe que, no seu
poema em prosa Eureka (1848), deu a explicação correcta. Se a luz
viaja a uma velocidade finita, a luz de infinitamente longe demoraria um tempo
infinito a chegar. Hoje sabemos que, de além do horizonte observável, não vem qualquer
luz. Portanto, o facto de a noite ser escura é uma prova da teoria do Big
Bang. Conclui Trinh: “O universo de curvatura nula como o nosso pode ser
finito ou infinito.” Não sabemos, portanto, se o nosso mundo é finito ou
infinito. É aliás difícil distinguir um universo infinito de um universo finito
que seja suficientemente grande. O astrofísico vietnamita encanta-nos com uma
metáfora: “O universo, tal como uma mulher coquete que se recusa a revelar a
sua idade, continua a esconder-nos a sua dimensão.”
O autor fala depois do
tempo e da “flecha do tempo”, da distinção entre passado e futuro, não se
esquecendo de referir que, para além do tempo físico (o tempo marcado pelos
relógios), há um tempo humano, psicológico, subjectivo. Há quem diga que o
tempo não existe, que é uma pura construção mental.
O livro termina com um capítulo
intitulado “O sagrado e o profano”. O tema do sagrado é muito caro ao autor,
que, sendo confucionista, se declara fascinado com a ideia de Einstein (que, em
larga medida, é a de Espinosa) segundo a qual Deus é o próprio mundo. Xinh tem procurado
aprofundar as ligações entre ciência e religião: foi, por exemplo, fundador da
Sociedade Internacional para Ciência e Religião. Para ele, como declara no
título de uma das últimas secções a espiritualidade é “companheira de caminhada
da ciência”.
Transcrevo a este
propósito um parágrafo do final: “O desenvolvimento da ciência fez com que o
espaço do homem moderno tenha perdido o seu carácter sagrado. Tornou-se
profano. Mas foi também o homem de ciência que permitiu que o homem redescobrisse
o sentido do sagrado, não venerando deuses personificados e construindo
edifícios para sacralizar a Terra, mas ao redescobrir e determinar a sua antiga
aliança com um cosmos que foi regulado de uma forma extremamente exacta para o
seu aparecimento. Ao revelar a sua interdependência com as estrelas e ao
maravilhar-se perante a beleza, a harmonia e a unidade do cosmos”.
O profano ocupa hoje
lugares que já foram do sagrado, como céu. Mas o céu, seja ele finito ou infinito,
continuou a deslumbrar-nos, a causar-nos vertigens à medida que a ciência ia
avançando. Autores de ciência como Carl Sagan, Hubert Reeves e Trinh Xuan Thuan
transmitem-nos um arrepio cósmico que tem algo de religioso. No profano – é
essa a mensagem de Trinh - há algo de sagrado.
1 comentário:
Pedagogicamente perfeito, por explicar coisas complicadas sem as complicar ainda mais!
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