quarta-feira, 2 de setembro de 2020

JORNAL ‘VIVA DOURO’: GRANDE ENTREVISTA A CARLOS FIOLHAIS

 


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DESTAQUE  |  JORNAL ‘VIVA DOURO’Edição 08/20

Grande Entrevista a CARLOS FIOLHAIS

 APRENDEMOS COM ESTE VÍRUS QUE SOMOS, TAL COMO OS MICROORGANISMOS. PARTE DO MUNDO NATURAL 

André Rubim Rangel, jornalista

Foto: Escola Portuguesa de São Tomé e Príncipe

ARR-Comecemos pelas raízes. O facto de o pai ter sido militar da GNR fez com que tivesse uma educação mais rígida e regrada do que a dos seus colegas de infância?

CF- Talvez, mas, francamente, não sei. O meu pai era militar e gostava de o ser. Antes de falecer pediu para ter honras militares na hora da despedida, desejo que, juntamente com os meus irmãos, fiz por satisfazer. Mais do que profissional do seu ofício, o meu pai foi uma pessoa do seu tempo, um tempo austero e autoritário, que não foi fácil para Portugal. Não tenho particulares traumas de infância, até porque fui sempre bastante mimado e apoiado. Mas confesso que não aprecio quartéis e a obediência cega que lá se cultiva. Fiquei, por isso, muito contente no dia em que livrei da tropa. Receava que o serviço militar fosse uma perda de tempo. Costumo dizer a brincar que o 25 de Abril veio para mim mesmo na hora certa. Nessa altura havia demasiados intelectuais nas forças armadas e não eram precisos mais… Claro que as forças armadas e de segurança prestam um grande serviço a todos nós, mas penso que o serviço nelas deve ser para quem tenha a devida vocação. Eu não me via nada no “esquerdo-direito-um-dois”.

ARR- Nos anos de liceu mostrou que tinha muito jeito para as artes, mas seguiu mais tarde pelas ciências. Por que não enveredou pela pintura? A ver pelos muitos prémios conquistados na altura…

 CF- Não foram muitos. Alguns prémios escolares e principalmente, aos 16 anos, um prémio primeiro nacional e depois internacional num concurso juvenil  de tema ferroviário. Sim, na altura desenhava e pintava. Dei nessa altura a minha primeira entrevista a um jornal, ao desaparecido “Diário Popular,” e embora as minhas respostas já estejam nas brumas da memória – nem sei onde tenho o recorte – julgo ter dito a arte não me parecia ser um meio de vida no nosso país. Curiosamente, tendo tido sempre boas notas, a única negativa que tive no liceu foi uma vez a Desenho, por não me entender com a Geometria Descritiva. Poderia, a avaliar pelas notas, ter ido tanto para ciências como para letras, mas, quando tive de escolher, no fim do antigo 5.º ano, hoje 9.º ano, estava já apaixonado pelas ciências. Quando, dois anos volvidos, entrei na Universidade de Coimbra para Física – o meu pai perguntou-me “isso dá para quê?”  e eu não soube responder - , embrenhei-me no curso e deixei de pintar. Ainda tenho uns quadros meus pendurados em casa. Não sei se a veia artística morreu ou só está em sono profundo.

ARR- Curiosamente, com esta questão da pintura, interrogo-me se já na altura sofria de daltonismo?

CF- Sim, descobri na adolescência que era daltónico, uma condição que é sempre hereditária, o que me ajudou a evitar o serviço militar: Tenho até uma história curiosa da inspecção militar: quando disse que era daltónico fizeram-me uns tentes com umas bolas coloridas onde devia reconhecer uns números (teste de cores de Ishihara). E eu disse que não via números nenhuns. E o militar de serviço respondeu: “Ah sim? Está a gozar com a tropa? Sabe que só os daltónicos é que vêem estes números”… Não sabia, mas fiquei logo a saber, porque aprendo rápido. Passei a ver todos os números que ele queria que eu visse. O daltonismo é uma condição transmitida pelas mães. Na Europa, cerca de 10% dos homens são daltónicos – muitos deles não fazem ideia – mas apenas 0,5% das mulheres o são. Isso explica, pelo em parte, a maior sensibilidade feminina para discernir as cores do vestuário…  Também é um facto que nenhum grande pintor é daltónico, ao contrário do que se passa com alguns grandes cientistas, a começar logo pelo químico inglês John Dalton que identificou a deficiência em si próprio (já foi feito um exame genético post-mortem, que o confirmou). De qualquer modo há toda uma gradação de severidade e eu não tenho uma caso severo de daltonismo, ao contrário de Dalton. Um oftalmologista assegurou-me que que eu podia guiar.

ARR- De que forma foi todo esse processo de habituação e de ver um mundo sem todas as cores ou sem algumas das cores: como é no seu caso? Custou-lhe a adaptação à realidade?

CF- Como físico, estou em crer que existe uma realidade objectiva. Mas nós vemos sempre a realidade pelos nossos sentidos, isto é, a nossa realidade não é à primeira vista necessariamente a realidade dos outros. Dou um exemplo: cada um de nós tem direito ao seu próprio arco-íris, centrado em si. Eu não me queixo nada da minha realidade, o meu arco-íris é bastante bonito. Somos todos diferentes: uns são mais baixos e vêem o mundo mais de baixo e outros, como eu, são mais altos e vêem o mundo mais de alto. Uns são mais lentos e outros são mais rápido: eu sou lento numas coisas e rápido noutras, a avaliar pelo que me dizem. Mas somos todos iguais. Todos somos diferentes – porque há pequena variabilidade genética – mas somos todos iguais – porque partilhamos a quase totalidade do genoma.

ARR- É sabido que não há cura universal para o daltonismo ou discromopsia. Porém, sendo um cientista premiado e reconhecido, sonha – ou alguma vez sonhou – em encontrar a cura?

CF- Eu fui o comissário nacional de 2015- Ano Internacional da Luz, uma iniciativa da UNESCO,  e li muita coisa sobre a luz. Tem toda a razão ao dizer que actualmente não há cura. Mas, em princípio, nos tempos de hoje já se  pode fazer edição genética, pelo que podemos conceber tecnologias capazes de corrigir deficiências como essa. Já foram feitas experiências em animais, que têm em geral uma visão mais limitada do que a nossa. Mas não me ofereço para cobaia. Experiências genéticas envolvem dilemas éticos muito sérios:  não devemos fazer tudo aquilo  que podemos fazer. A certa altura, um ser humano “melhorado” pode passar a ser desumano.

ARR- Dos seus mais de 40 livros publicados, constam as obras de divulgação científica «Física Divertida» e «Nova Física Divertida». A que conclusões chegou sobre o modo  de tornar a Física mais atraente e compreensível aos jovens? Dado que nem sempre o é…

 CF- Nesta data, e sem contar com prefácios e capítulos, já conto mais de 60 livros, mas cerca de metade são manuais escolares. Os dois que refere foram dos que obtiveram mais êxito, tendo merecido edições internacionais. Há até uma edição brasileira de “Física Divertida”, onde em vez de “impulsão” – a força de Arquimedes mergulhado numa banheira – vem “empuxo” e em vez de “protão” vem “próton”.  O título do meu primeiro livro, de 1991, foi deliberadamente provocatório. Queria contrariar a visão estabelecida de que a Física é uma disciplina aborrecida. Não concordo. A Física é uma das facetas mais empolgantes da vasta aventura do conhecimento humano. É divertido saber como é o Universo, de que são feitas todas as coisas, é divertido penetrar nos grandes mistérios do espaço, do tempo, a matéria, da energia… É sempre um prazer saber mais.  Começa por ser um prazer para os cientistas, mas devia ser um prazer para todos, uma vez que a ciência não é dos cientistas, mas de todos.

ARR- Como este é um jornal da região duriense, permita-me duas questões sobre a mesma. O que conhece do Douro, como o sente e descreve, o que realça de mais significativo nele? E até comparativamente com outras regiões nacionais…

CF- O meu pai é de uma aldeia do peso da Régua: Sedielos, a terra do escritor Guedes de Amorim. Disseram-me que uma avó ou bisavó minha aparecia no livro “Aldeia das Águias,” precisamente Sedielos, sítio onde o Douro acaba e o Marão começa. A casa bastante humilde dos meus avós e dos meus pais era frente à enorme Quinta de Sá de Baixo. No Douro, onde passei férias em miúdo, impressiona-me não só a grandeza da paisagem, mas também o contraste na vida das pessoas. O Douro era e julgo que em parte ainda é um local de bastante pobreza.  As quintas no Douro são muito bonitas, mas a vida dos trabalhadores da terra – eu vi como eram as vindimas nos socalcos - é muito dura. Modernamente o turismo mundial descobriu o Douro e ainda bem, porque o vale do Douro é único no mundo. Andei pelos vales do Reno e do Meno, na Alemanha, mas o nosso vale é único, pela força da paisagem, pelo trabalho do homem e pelo produto da Terra. Na terra do meu pai não se dizia “vinho do Porto”, porque o vinho “fino” ou “generoso” era dali, longe do Porto. É só pena não termos tido nas suas margens o desenvolvimento que houve noutras margens.

ARR- O Douro, certamente, não é apenas Turismo e Cultura. Será, também, portador de Ciência. Em que patamar está esta região no quadrante científico e o que tem desenvolvido na amplitude desta área?

CF- Em Vila Real existe há décadas a UTAD – Universidade de Trás os Montes e Alto Douro que, em colaboração com outras universidades nortenhas, tem produzido conhecimento, em particular sobre a terra e sobre o vinho. Portugal evoluiu muito no sector  do vinho, em particular no controlo da qualidade e na afirmação de marcas. No início da minha carreira, ensinei em part time Física na UTAD. Mas lembro-me a odisseia que era chegar de Coimbra a Vila Real… Vila Real era mesmo longe e hoje não é. Perto de Vila Real fica uma terra com o meu nome, Fiolhais, onde evidentemente já fui…

ARR- Passemos ao assunto que, infelizmente e desde há meio ano, continua a ser actualidade mundial. Com melhor conhecimento presente do vírus, e depois de tanto ruído e informações falsas iniciais, o que importa ter em conta da covid-19 para vivermos melhor o  último trimestre deste ano?

CF- O novo coronavírus foi, está a ser, uma surpresa para a maior parte de nós. Os cientistas sequenciaram-no logo no início da epidemia e é com base nesse conhecimento que funcionam os testes genéticos. Estamos cada vez mais a saber mais sobre o vírus. Estamos a procurar medicamentos antivirais específicos. E estamos a procurar vacinas: já há várias, que estão em várias fases de teste. Tenho esperança que algumas venham a funcionar bem.  Mas mais vale prevenir do que remediar: manter o distanciamento social, usar máscara, ter sempre cuidados de higiene. Estes métodos funcionam garantidamente: o vírus precisa de um hospedeiro e, se não o encontra, fica impossibilitado de se multiplicar.  Aprendemos com este vírus – embora já o devêssemos saber - que somos, tal como os microrganismos, parte do mundo natural. E aprendemos – espero que a lição venha para ficar – que a espécie humana ganha com a cooperação. Nós somos inteligentes e os vírus não, são meras máquinas de fotocópia biológica. 

ARR- Entrando na questão científica da vacina, que tanta especulação temporal e funcional tem gerado, o que há a esclarecer com precisão – neste momento – sobre a mesma? 

CF- Não sou especialista do assunto. Mas acompanho-o com interesse. Há várias candidatas a vacinas e estamos a ver as respectivas segurança e eficácia. A de Oxford parece que está bem encaminhada. Há muitas incertezas: por exemplo, a duração da imunidade. Havendo vacina, persistem problemas: Quem vacinar primeiro? Quem paga? Uma vez que não haverá cem por cento de eficiência, como enfrentar os “inimigos das vacinas”, que são também – cito o título de um livro meu e do David Marçal na Gradiva - “inimigos da ciência”. A ciência não é tudo, há questões éticas, políticas, económicas…

ARR- A Rússia já anunciou e aprovou, este mês, a primeira vacina contra a covid-19: o que se seguirá? Competição e negócios comerciais estapafúrdios de patentes entre os outros países na corrida da descoberta curativa?

CF-  Há sérias dúvidas sobre a vacina russa, que quis ser a primeira, arrepiando todo um caminho que havia a fazer. Os humanos sempre competiram uns com os outros, como agora mais uma vez está à vista. Mas, nalguns casos, como neste, poderiam ganhar se cooperassem mais. Claro que esta é uma oportunidade de negócios milionários e, como sempre no mundo dos negócios, não faltará quem vai querer vender gato por lebre.  Convém estar atento e, sabendo que há estupidez e maldade, confiar na inteligência e na bondade dos homens.

ARR- Acredita que haverá vacina para todos sem excepção ou não? Irão os países mais ricos e desenvolvidos apoderar-se da mesma e ficarem os mais pobres a perder, lamentavelmente, como de costume ou de que modo se equilibrará a distribuição?...

CF- Desigualdades sempre houve. Não é só em Portugal e no Douro, é no mundo todo. Infelizmente, o seu fim não está à vista. Não tenho grandes ilusões: os ricos procurarão ser ainda mais ricos e os pobres poderão ficar ainda mais pobres. Não há um governo do mundo, mas competição desenfreada entre as nações. A Europa, na qual nos inserimos, tem de encontrar o seu papel no mundo global. Parece andar um pouco perdida, num mundo onde o eixo está a passar do Ocidente para o Oriente.

ARR- Em Portugal, o que está a ser feito na ciência e com que resultados visíveis – passando, por vezes, despercebidos e ofuscados com notícias paralelas e menos importantes – no âmbito da resolução desta pandemia?

CF- Os cientistas portugueses juntaram-se aos esforços mundiais. Ainda é cedo para fazer uma apreciação objectiva e isenta: esta epidemia não tem ainda meio ano entre nós. Vejo muita propaganda, com muita gente a querer chamar a atenção para si própria: veja-se o caso do “ventilador nacional.” Mas gostava que esta fosse uma ocasião para apostar mais na ciência e na tecnologia nacionais. Aqui há poucos anos o primeiro-ministro prometeu 2,1% do PIB em ciência e tecnologia. No ano passado foram apenas 1,4%. Já chegámos a ter 1,6% em 2009 e recuámos. A média europeia é hoje de 2,1%, o que significa que em vários países está bem acima. Acho que há falta de liderança na ciência em Portugal e não há suficiente participação da comunidade científica na gestão.  A nossa comunidade científica cresceu, mas não tem ainda afirmação política. O ministro da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior estava desaparecido antes da epidemia e continua desaparecido, sem carisma nem poder. Não o vimos activo  dentro de um gabinete de crise. Não o vemos como voz da ciência e, mais em geral, da razão. A FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia, tal como está, não passa de uma direcção geral do Ministério, quase desligada dos cientistas e dos centros de investigação. A Ciência Viva, uma grande ideia do saudoso José Mariano Gago, anda entretida com coisas menores, com o seu financiamento quase todo concentrado na capital. Portugal continua a ser Lisboa e o resto é paisagem. No plano de recuperação do país, era preciso dar à ciência e à tecnologia, em particular na área da saúde, uma outra visibilidade. A ciência é a semente do nosso futuro. 

ARR- Depois destes meses todos há quem já se tenha habituado ao uso da máscara e faça já parte, naturalmente, da sua vida. Contudo, vêem-se ainda muitas pessoas, em público, que não a usam. Cientificamente, ela é imprescindível e eficaz?

CF- Não há nunca risco zero. Mas a máscara, dentro ou fora de espaços fechados, diminui obviamente o risco de transmissão viral. Eu uso e recomendo o uso. Não percebo o que estava a fazer a DGS quando, no início da epidemia, não recomendava o uso da máscara. Mais do que isso, criticava-a, por dar uma “falsa sensação de segurança”…  Houve entre nós erros na gestão da epidemia.

ARR- Considera que a medida do uso obrigatório de máscara devia ser geral, que não apenas em algumas regiões planetárias? E punível por lei para quem não usa, por respeito aos outros no não contágio?

CF-  Sim, o uso de máscara deveria ser obrigatório de um modo mais geral do que é hoje entre nós. Pode não ser agradável, mas mais vale esse desconforto do que uma infecção com consequências incertas quiçá graves para nós e para os outros. Devemos pensar não só em nós, mas também nos outros. A epidemia vai passar, como passaram outras, mas com uma acção colectiva responsável  passará mais rapidamente.

ARR- Como habitual nesta rubrica de grande entrevista a figuras públicas, peço-lhe uma mensagem final aos leitores, de cariz motivacional, para o presente e o futuro…

CF- Confiar no conhecimento e na inteligência humana, que constituem o melhor meio de alcançar o conhecimento, de distinguir o verdadeiro do falso, na complexa realidade em que vivemos.  Sem conhecimento e sem o exercício da inteligência que o proporciona, seríamos muito mais frágeis. Como espécie já não estaríamos aqui. Este planeta, que partilhamos com os vírus, é a nossa casa e devemos usar o nosso melhor conhecimento para morar nela da melhor maneira possível.

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