Meu artigo no último I:
O poeta grego Arquíloco do século
VI a.C., talvez o mais antigo poeta da Antiguidade cuja existência pessoal é
conhecida (Homero não passa de uma lenda), escreveu um poema num fragmento que
se pode traduzir prosaicamente em português: “A raposa sabe muitas coisas, mas
o ouriço sabe uma coisa muito importante.” Uma tradução mais literal será:
“Raposa sabe muitas./ Ouriço uma./ Manha consistente”. Uma outra tradução, mais
elaborada: “Raposa sabe/ Enésimas/ Manhas e ainda/ É apanhada: Ouriço sabe/ Uma,
mas ela/ Funciona sempre.”
Esta frase teria ficado
esquecida, como muitos outros fragmentos do grego antigo, não fora Isaiah
Berlin (1909-1997), filósofo, politólogo e historiador das ideias britânico, ter
intitulado um dos seus ensaios O Ouriço e a Raposa, com o subtítulo
Ensaio sobre a filosofia da história de Tolstói. A expressão tornou-se desde
aí proverbial e é citada à exaustão nas ciências sociais e humanas.
Nascido em Riga, na Letónia, que
na altura fazia parte do Império Russo, Berlin estava com a sua família judaica
em Petrogrado (São Petersburgo), quando estalou a Revolução de Outubro. Mas,
aos 12 anos, já estava, exilado com a família, no Reino Unido, tendo estudado
em Londres e Oxford. O seu pensamento caracteriza-se pela ideologia liberal,
pela apologia do pluralismo e pela oposição ao marxismo e comunismo. Embora não
gostasse de escrever, Berlin escrevia muito bem, procurando ser claro e seduzir
pelo estilo. A maior parte da sua obra, não muito extensa, é formada por transcrições
de palestras que proferiu ou por textos que ditou às secretárias.
O Ouriço e a Raposa, que
acaba de ser reeditado entre nós pela editora Guerra e Paz, é um exemplo desse
seu modo de trabalhar. Trata-se da transcrição de uma palestra original dada em
Oxford em 1951 e cujo texto ficou “sepultado” numa revista obscura sobre
cultura eslava. O título inicial era “O cepticismo histórico de Lev Tolstói”.
Dois anos depois, por sugestão do editor Weidenfeld (como são importantes os
editores, como este que mandou o autor escrever mais!), foi publicado o texto em
forma de livro, não só revisto como também acrescentado com a discussão de uma
eventual influência em Tolstói de Joseph de Maistre, o pensador católico
ultramontano que se opôs à Revolução Francesa. O texto de Berlin tinha sido
publicado entre nós noutra tradução, como um capítulo do livro A Apoteose da
vontade romântica (Bizâncio, 1999), que saiu na colecção Leviatã -
Biblioteca de Ciência Política dirigida por João Carlos Espada.
Aí ocupava umas escassas 62 páginas, enquanto agora, dado o seu menor
formato, chega às 124. O resto do recente
volume de 180 páginas é preenchido por uma nota inicial do incansável editor de
Berlin, Henry Hardy, por uma nota inicial do próprio autor, por um interessante
apêndice, que contém correspondência de Berlin a propósito do seu ensaio e
algumas recensões críticas – com explicações do autor, e um útil índice. A
tradução escorreita é de Maria João Madeira. O volume, muito bem produzido (parabéns
Manuel Fonseca, que tem ampliado o seu catálogo da Guerra e Paz de uma forma
muito consistente), conta com um apelativo grafismo de capa de Ilídio Vasco, ostentando
uma raposa e um ouriço dentro de um círculo que evoca o do homem de Vitrúvio.
Não sendo autor de muitas obras
em inglês, Berlin também não pode ter muitas traduzidas em português. Enumero
aqui as restantes, por ordem cronológica de publicação, para benefício dos leitores
que não conheçam o seu pensamento e que, depois de devorarem o pequeno ensaio
com o ouriço e a raposa na capa, queiram embrenhar-se na sua clarividente obra:
A busca do ideal : uma antologia de ensaios (Bizâncio, 1998), O poder
das ideias (Relógio d'Água, 2006), Karl Marx (Edições 70, 2014), e
Rousseau e outros cinco inimigos da liberdade (Gradiva, 2005).
Qual é a tese de Berlin, que se
serve do ouriço e da raposa, neste seu ensaio que o The Guardian
considerou um dos cem melhores de sempre? Ele começa por dividir grandes autores
da filosofia e da literatura universal em dois grupos, os que são ouriços, e os
que são raposas. Ser ouriço é ver o todo, a “manha” mais importante…. E ser
raposa é ver as partes, as várias “manhas” avulsas. Nas palavras do autor, “existe
um grande abismo entre, por um lado, aqueles que se colam tudo a uma visão
única central, um sistema mais ou menos coerente e articulado (…) e, por outro
lado, aqueles que perseguem muitas pontas frequentemente não relacionadas e até
contraditórias.” Entre os ouriços coloca Dante, Platão, Pascal, Hegel,
Dostoiévski, Nietzsche e Proust (há mais, escolhi sete). E, entre as raposas,
Aristóteles, Shakespeare, Montaigne, Goethe, Pushkin, Balzac e Joyce (outros
sete).
Dividir os pensadores e criadores em dois
únicos grupos não deixa de ser um pouco arriscado. Já alguém comentou
ironicamente que se pode dividir a humanidade em dois grupos: os que dividem a
humanidade em dois tipos de pessoas e os outros (eu reclamo-me do segundo
grupo). Pode muito bem haver situações intermédias. Poder-se-á, tal como o gato
de Schrödinger que está meio-vivo meio-morto, ser ao mesmo tempo ouriço e raposa.
O ensaio de Berlin analisa essencialmente o romance Guerra e Paz, que
ele, Berlin, leu no original russo e que os portugueses podem ler numa
excelente tradução do russo de Nina e Filipe Guerra: Presença, 2005, obrigado Francisco
Espadinha (e que, diz José Pacheco Pereira, ninguém lê no telemóvel). O
romance, publicado em folhetim entre 1865 e 1869, descreve o tempo de Napoleão
entre 1805 e 1813 (a campanha da Rússia é de 1812, como lembra uma abertura de
Tchaikovsky). A pergunta de Berlin sobre Tolstói é: “Assemelha-se mais a
Shakespeare ou Púchkin do que a Dante e Dostoiévski?” A sua resposta,
apresentada como hipótese, era: “Tolstói era uma raposa, mas acreditava ser um
ouriço.” No fundo, uma raposa que queria ser ouriço. O grande autor russo tinha
uma atenção muito desenvolvida para as visões diversas dos indivíduos, mas idealizava
alcandorar-se a uma visão coerente da história, uma espécie de “teoria unificada”
para usar uma expressão da física moderna. Segundo Berlin, o drama de Tolstói
foi não conseguir ligar esses dois aspectos, o micro e o macro: há verdade em
qualquer deles, mas não é nada fácil a ligação. Como é que as grandes correntes
da história, algumas delas parecendo ter um certo determinismo, emergem da acção
aleatória das partes? O problema é um
pouco semelhante, digo eu, ao que se encontra na Segunda Lei da Termodinâmica:
como é que do movimento aleatório e reversível das partículas se pode extrair o
inexorável aumento da entropia para o sistema global, que exibe uma clara irreversibilidade?
A metáfora de Berlin, como todas,
tem as suas fragilidades, como é discutida no apêndice, mas o seu exercício é
engraçado. Será Berlin uma raposa ou um ouriço? Ele define-se como
raposa, mas um crítico diz que há algo de auto-referente e que Berlin se sente
como Tolstói, apertado entre dois modos
de ser. O leitor, se pertence ao grupo das pessoas que gostam de dividir o mundo
em dois grupos de pessoas, pode dividir os filósofos e escritores da sua
predilecção entre ouriços e raposas. Direi que se alinhar mais ouriços, terá
tendência para ouriço. Se alinhar mais raposas, terá tendência para raposa. Eu,
tal como Berlin, sinto-me mais raposa: confesso que me sinto um pouco constrangido
e até intimidado por uma visão única, supostamente coerente do mundo, a tal “teoria unificada”.
Parece-me até algo perigoso. Lembro que entre os inimigos da sociedade aberta
de Popper estavam Platão, Hegel e Marx, todos eles ouriços.
Vejamos num excerto o estilo de Berlin: “A tese
central de Tolstói – em determinados aspectos não dissemelhante da inevitável
teoria da ‘auto-ilusão’ de Karl Marx. Salvo que Tolstói vê em quase toda a
humanidade o que Marx reserva a uma classe – é que existe uma lei natural de acordo com a
qual e num grau não inferior ao da natureza, as vidas dos seres humanos são
determinadas; mas que os homens, incapazes de encarar este inexorável processo,
procuram representá-lo como uma sucessão de escolhas livres, atribuir a responsabilidade
para aquilo que acontece às pessoas por eles dotadas de virtudes heróicas ou vícios
heróicos, e a que chamam ‘grandes homens’.”
Tolstói não via Napoleão como um grande homem. Via-o apenas como um carneiro,
que engordou, antes de ir para o matadouro, como não podia deixar de ir.
E o que faz o reaccionário Maistre neste ensaio, ao lado de Tolstói? Responde Berlin: “Um dos mais impressionantes elementos comuns ao pensamento destes penseurs distintos, e de facto, antagónicos, é a sua preocupação com o carácter ‘inexorável’ – a ‘marcha´ dos acontecimentos.” Inexorabilidade histórica? Quem sou eu para achar, mas acho que não existe.
1 comentário:
Quando se fala de big bang todos somos ouriços, como quando se falava de Deus no tempo em que não fazia sentido falar de outra coisa. Só havia ouriços. Tudo é racional se o "puzzle" funciona. O ouriço tem um puzzle. A raposa não, tem uma montanha de problemas e uma montanha de soluções, muitas vezes contraditórias, em que umas coisas encaixam muito bem, mas outras não. A raposa, normalmente, tende a comportar-se como um ouriço, mas o ouriço topa-a facilmente. Quando uma raposa, depois de ler Marx e Hegel e Nietzsche, continua a falar como se nunca os tivesse lido, é óbvio que não assimilou e não integrou no "puzzle", pelo menos no do ouriço, aquelas peças.
Só os loucos não têm problemas com a racionalidade e não têm puzzles para resolver. Os humanos normais são uma espécie de robots mal programados que não cessam de se reprogramarem, na tentativa de encontrarem a chave, que acreditam que exista. Os ouriços tendem a crer mais nisto, em sistema de coerência. As raposas exploram todos os sistemas de coerência disponíveis, conscientes ou não, de que os problemas existem e que existem porque nós existimos. O problema somos nós.
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