quinta-feira, 29 de agosto de 2019
Descer na Lua com as mãos na Terra
Artigo do JL de 28 de Agosto de 2019 (número com destaque para o centenário de Fernando Namora, a literatura de Cabo Verde, fotos de minas abandonadas e o regresso da coluna de Carlos Reis) a propósito dos cinquenta anos da descida na Lua e da relação desse feito notável com a literatura e outros feitos igualmente épicos que se repercutem no mundo actual. [corrigi algumas gralhas da minha responsabilidade]
A 20 de Julho de 1969, Miguel Torga escreveu no Diário: “O homem desceu na Lua. Ensacado num fato espacial e de foguetão no rabo, tanto teimou que conseguiu pôr os pés fora da Terra. E lá anda aos saltos, a lutar com a imponderabilidade, ridículo mas triunfante.” Mas logo de seguida, Torga reflete sobre o seu entusiasmo com o feito e a tristeza perante as “monótonas e desconsoladas aventuras que restam à humanidade” que, em vez de “arredondarem a fraternidade”, alargam a solidão, completando o que havia escrito em Dezembro de 1968: “O homem tem pela primeira vez a grandeza do universo cósmico.”
Referi alguns aspectos da relação entre a ciência e a literatura, a propósito da ida à Lua, em Jardins de Cristais (Gradiva, 2014), mas uma evocação mais completa foi feita por David Seed no artigo Moon on the mind: two millenia of lunar literature da revista "Nature" de Julho de 2019. Já em 1943, Agostinho da Silva, numa publicação de divulgação cultural, "Viagem à Lua", editada por Helena Briosa e Mota, em Páginas Esquecidas (Quetzal, 2019), analisou a ciência de algumas ficções sobre a ida à Lua. Mas ainda mais interessante é a discussão do que para Agostinho é uma certeza – que o homem irá chegar à Lua - envolvendo o leitor na análise do que se sabe sobre a Lua e sobre os problemas dessa viagem, mais de 25 anos antes desta ter ocorrido!
O primeiro passo na Lua foi dado, como é sabido, por Neil Armstrong às 2 horas e 56 minutos (hora de Greenwich) do dia 21 de Julho. Na manhã seguinte, os jornais fizeram edições especiais com imagens de capa dos astronautas na Lua, passando quase despercebida, também na primeira página de alguns jornais, uma pequena notícia sobre o primeiro transplante realizado em Portugal - em Coimbra, a equipa de Linhares Furtado fez nessa mesma noite o transplante de um rim. Será que podemos comparar os dois feitos, aparentemente tão díspares? Será que a literatura dá atenção suficiente e compreende o que representa, em termos científicos e técnicos, a possibilidade de realização de transplantes, para além das muitas distopias que nos questionam – e bem - como Nunca de deixes de Kazuo Ishiguro?
A odisseia que foi (e continua a ser) o desenvolvimento das técnicas de transplante não envolve os meios financeiros e humanos da ida à Lua, mas é, em termos científicos, um feito com mais novidade científica. De facto, a ida à Lua é um resultado tecnológico que congregou, de forma fascinante e enorme complexidade, ciência e tecnologia já existentes, enquanto que o sucesso dos primeiros transplantes envolveu algo novo e desconhecido: o controlo químico da imunidade. Para além da perícia e excelência cirúrgica, os transplantes tornaram-se possíveis devido à sintese, por Gertrude Elion, no final dos anos 1950, da primeira molécula imunossupressora eficaz - a azatiotropina. É a invenção desta molécula que permitirá a Roy Calne nos anos 1960 iniciar um programa de transplantes que se generalizou a todo o planeta e está em contínuo desenvolvimento científico. Para além disso, a possibilidade de realização transplantes envolveu uma grande quantidade de descobertas e desenvolvimentos prévios como a anestesia, a assepsia, os grupos sanguíneos e transfusões de sangue e antibióticos, entre outros feitos da química medicinal e da medicina. Curiosamente, Miguel Torga no Diário refere o “milagre da ciência moderna” que são os antibióticos, mas não encontrei referências a imunossupressores. Muitos feitos médicos de base química, são quase invisíveis, mesmo para médicos, e, obviamente, também para a literatura.
No dia 5 Julho de 1963, depois de ter salvo um doente com muito esforço, Torga compara a dignidade das actividade humanas que se fazem todos só dias de forma competente, como salvar um doente, ou apertar bem um parafuso, com os feitos ainda por realizar. Para estes últimos escolhe a ida à Lua, referindo com melancolia: “Lá chegaremos, na mesma tristeza com que pisámos pela primeira vez as terras da Patagônia.” Essa tristeza é, para mim, a condição humana que a literatura ajuda a dar sentido, humanizando a ida à Lua, dando grandiosidade às coisas comuns, ou mostrando que os desenvolvimentos científicos e técnicos quase não mudam a natureza humana.
No Poema do Homem Novo, António Gedeão começa por enumerar alguns dos maravilhosos aspectos científicos e tecnológicos que envolvem o passeio na Lua de Neil Armstrong, concluindo de forma crua que o “Homem Novo” fez exactamente o que faria o “Homem Velho:” espetou a bandeira da sua pátria na Lua! É revelador que o fato espacial de Neil Armstrong seja um catálogo dos polímeros (plásticos) sintéticos disponíveis na altura – não, não foi a NASA que inventou o teflon ou qualquer dos polímeros usados no fato – e as suas várias camadas tenham sido cosidas por costureiras de uma fábrica especializada em sutiãs e cintas. Seis camadas de poliamidas, algumas aluminadas, uma de policloreto de vinilo, uma de elastano, duas de poliacrilonitrilo, nove de poliésteres, algumas com tecido de fibra de vidro, e duas de politetrafluoroetileno, com nomes comerciais, nylon, vinyl, spandex, nomex, neopreno, mylar, dacron, kapton e teflon, para além do capacete de policarbonato e das luvas com silicone. O sucesso da aventura da ida do homem à Lua envolveu mais de 400 mil pessoas, muitas delas engenheiros e operários nas muitas companhias que contribuíram para o projecto. Não é, por isso, estranho que muitas companhias tenham feito anúncios em que de forma directa, ou indirecta, ligavam os seus produtos à ida à Lua.
A ida à Lua foi um feito notável, mas os objectos e processos que nos rodeiam, ligados ou não à ida à Lua, têm histórias que podem ser igualmente épicas. Reflectindo com base no conhecido poema de Sophia, a civilização em que estamos é errada, talvez não tanto porque o pensamento se desligou da mão, uma vez que os arados são desde há muitos anos demasiado complexos, mas porque o pensamento não sabe qual o poder e os limites do alcance da mão nem se apercebe da real complexidade dos arados.
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