quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Educar e doutrinar. Uma diferenciação tão fundamental quanto necessária

A pedido do De Rerum Natura, Manuel Alte da Veiga (professor de Ciências da Educação, sobretudo na área da Filosofia da Educação) enviou-nos o segundo texto que abaixo reproduzimos e que muito agradecemos. 

Nesse texto, o conceito de doutrinamento ocupa um lugar central. Trata-se de um conceito que se confunde com o de educação.

Situando-nos nos sistemas de ensino públicos, na perspectiva da escola/do currículo do futuro/do século XXI, vemos o doutrinamento avançar em detrimento da educação. Trata-se, sobretudo, de um certo doutrinamento económico-financeiro, a que a política confere suporte. 

Acontece, nota Alte da Veiga, que em qualquer campo de conhecimento, incluindo o da religião, a educação deve prevalecer em detrimento do doutrinamento.

Para se perceber melhor o acima dito, recuperei um texto do autor (o primeiro que a ser reproduzido abaixo); além disso, destaco as passagens que se me afiguram de maior relevo nos dois mencionados textos.

O ser bem educado
(...) a «boa educação» (...) caiu da moda devido a ter degenerado em elitismos, snobismo e formalismo. Contudo, a agressividade crescente e descontrolada tem muito a ver com se ter posto de lado, sem mais, a «boa educação». Infelizmente, esta ficou-se por um conceito e processo de educação muito superficial, longe da espantosa e maravilhosa complexidade do que é um «ser humano». 
E por que é que prestamos atenção ao «ser humano», logo desde os princípios da sua emergência? Porque temos um ideal e um critério de «Homem educado», na linha do profundo desejo de virmos a ser uma pessoa plenamente realizada. 
Partindo da reflexão e prática de muitos educadores, diríamos que o homem educado é aquele que é capaz de agir porque é bom agir (e não por interesses “menores”); domina uma área de conhecimento ou um «saber fazer», mas é consciente da imensidão de conhecimento para além dos seus limites; e que por isso não pode viver na prisão estreita da especialização, mas abre as janelas a opiniões diversas, como um “adolescente” viajando com novas maneiras de ver coisas novas; reconhece como qualquer tipo de acção/profissão é melhorada, facilitada e mais agradável, em função do nível de educação. E sabe ser tudo isto sem submissões ideológicas. 
A ideologia, de facto é facilmente manipuladora, ao “encaminhar” a pessoa, sub-repticiamente, para a submissão a um plano cuja concreção é atentatória da liberdade da pessoa “como fim”. É pois um homem insatisfeito por conhecer e compreender, e por isso lança continuamente uma pergunta nova. Procura dar exemplo de uma «razão bem orientada», eliminadora do irracional, mas atenta aos graus de «razoabilidade» a serem discutidos e avaliados. 
Porque em tudo se revela a verdade e o bem, abre bem os olhos para não perder as pedras preciosas que se escondem no caminho. Ser «bem educado» é viver o apelo da verdade.
"Mudar de ares nem que seja para pior"
Era uma das sábias sentenças do meu avô paterno. Na Velha Alta de Coimbra, há duas placas que o lembram: «Anthero da Veiga – republicano, diplomata, guitarrista – 1866 – 1960». Na minha opinião, o seu grande valor era a Arte na Vida. 
Por ser republicano, saboreou a prisão dos últimos anos da monarquia; no posto equivalente a Presidente de Câmara, na 1.ª República, saboreou novas prisões por defender a realização dos festejos religiosos populares; e não deixou de provar as prisões do Estado Novo, acusado de «se dar» com gente da Maçonaria.
Porém (talvez por ser artista…), passava pelas prisões como «degustador», «mudando de ares» ao fim de alguns dias ou poucas semanas.
 
Várias figuras mais ou menos importantes, mas sobretudo os organizadores de festas populares (que tanto o inspiraram), todos gostavam de o convidar como reconhecido artista da guitarra portuguesa, compositor de letra e música. Como lhe dizia D. Carlos (que também o convidou), «a Arte não é escrava da política». Assim deveria ser, para bem de ambas as partes. 
Ares de férias ou mudanças lembram que é preciso arejar ideias e relações, como se muda e areja a terra de cultivo. Sentir outras conversas, outros valores, outras maneiras de amar e até de nos relacionarmos com Deus. Nem que pareça «para pior»: compete-nos tirar proveito da experiência, para que a «espiral da vida», de que já se falou, mantenha a tendência geral para a feliz realização de todas as pessoas. 
Demasiadas vezes ficamos agarrados ao nosso «castelo» seguro, onde nada se põe em questão. Envelhecemos sem ter crescido por dentro e temos medo de abrir a porta. Resultado: a nossa vida religiosa cheira cada vez mais a mofo e nem arejamos a amizade com Deus. Não aguentamos dúvidas e perguntas: julgamos que nos basta ficar agarradinhos ao que parece ser o carrinho para o céu. E afirma-se a pés juntos que Deus só pode ser encontrado nos corredores e jardins desse castelo sem janelas. 
Mudar de ares? Lá fora espreita o perigo! No entanto, a própria fé exige terra bem arejada, para não morrer estiolada. E ser cuidada pelo próprio e não por empregados ou mesmo por amigos que fazem quase tudo por nós e aconselham ou dão ordens de como devemos agir. 
Como dizia um filósofo inglês: «Os seres humanos são absurdamente fáceis de doutrinar – até o desejam! Preferem mais acreditar do que conhecer» (Edward O. Wilson). Não empregamos a força da razão de que dispomos: preferimos descansar submissamente na força ou autoridade alheia. 
«Doutrinamento» traduz o inglês “indoctrination” e o francês “endoctrinement”. O verbo doutrinar, de que deriva, tem o sentido comum de «instruir numa doutrina, ensinar, instruir, catequisar». Por sua vez, doutrina é vulgarmente definida como «conjunto de princípios em que se baseia uma religião ou um sistema político ou um sistema filosófico»; e ainda «erudição, norma, disciplina, instrução, modo de pensar, catequese religiosa». 
Porém, quem «doutrina» cai facilmente na tentação de tornar os outros totalmente submissos ao que lhes é impingido, em vez de os ajudar a procurar a verdade. É o doutrinamento «no mau sentido»: imposição das ideias (de um educador, de um gestor, de um político, de uma comissão internacional...) «a todo o custo», eliminando as razões contrárias e tornando o diálogo impossível. 
Nenhum mestre, neste mundo, se pode arrogar de ser dono da verdade: pelo contrário, a sua acção é mais eficaz se ele próprio se apresenta como alguém que a procura. E que para isso se informa quanto pode e ouve com atenção quem quer que seja, para melhor meditar e reflectir. 
Muitas vezes, aceitamos como verdade aquilo que nos dizem, só porque foi apresentado de modo atraente: em que a estética, a arte, o encadeamento de ideias, a beleza e imponência do discurso usurpam o lugar de uma análise cuidada, paciente, imparcial (as virtudes da razão). Não falando já dos que pretendem sobretudo excitar a emoção, a paixão, o sectarismo... 
Dá-se doutrinamento quando se despreza a capacidade racional do outro e se apela sobretudo ao sentimento. Nem se é «educado» nem se trata o outro como pessoa «educada». 
Que há conteúdos mais facilmente doutrináveis, é notório: a política, a religião, a estética, a própria história... e sempre que é importante a interpretação subjectiva. Aliás, todas as teorias são facilmente doutrináveis: apoiam-se na firmeza do raciocínio, formando uma estrutura sólida e coerente (mas baseada nos dados da experiência). Se as aceitamos é porque reconhecemos que têm muito valor – mas que são provisórias. Não atingimos a verdade – somos orientados por ela e para ela. 
A eternidade, para os crentes, seria um eterno aborrecimento se não se esperasse uma sempre nova descoberta da Verdade, Amor e Alegria – que é Deus. Depois dos «ares» das férias, será mais fácil e agradável falar de Deus e de viver a religião sem «doutrinar». Basta aproveitar «os ares» que ajudam a amar a liberdade e originalidade que despontam já nas crianças. E para continuar em família, aqui vai uma divisa de minha mãe: «Os melhores dias são os que estão para vir!» 
MANUEL ALTE DA VEIGA

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