Meu texto no último "As Artes entre as Letras":
A cidade francesa de Avignon, na Provença, é conhecida globalmente pela canção, do século XV, que se refere à antiga ponte de Saint-Bénézet, com apenas quatro arcos, sobre o rio Ródano: “Sur le pont d’Avignon” (“Sur le pont d’Avignon/ L’on y danse/ L’on y danse/ Sur le pont d’Avignon / L’on y danse tous en rond).” Mas é também conhecida pelo Palácio dos Papas, o impressionante edifício gótico que se ergue no coração da cidade (no século XIV, mais precisamente de 1309 a 1377, sete papas presidiram ali à Cristandade, seis dos quais após conclaves ali realizados), que deu à urbe o epíteto de “cidade dos papas” (o centro histórico pertence desde 1995 à Lista da UNESCO de Património Mundial da Humanidade).
A cidade provençal foi, em Julho, uma festa, em virtude do seu notável Festival de Teatro. Fundado pelo grande actor Jean Vilar em 1947 (que foi seu director até à morte, em 1971), o Festival d’Avignon é não apenas um dos maiores festivais de teatro do mundo como um dos que tem maior tradição e fama. O palco maior é o “Cours d’Honneur” do Palácio dos Papas, no pátio do palácio, onde uma bancada consegue acomodar mais de mil espectadores, não chegando apesar disso para a procura que os melhores espectáculos registam.
Para além do espectáculo mais emblemático nesse palco, que este ano foi a peça Architecture do escritor e coreógrafo francês Pascal Rambert, que conta a vida atribulada de uma família vienense de artistas entre as duas guerras mundiais, tiveram lugar outros espectáculos de relevo, alguns clássicos (este ano a Oresteia e Sete Contra Tebas, de Ésquilo, e a Eneida, de Virgílio) e alguns contemporâneos (destaco neste ano Le présent qui déborde. Noitre odyssée II, da trupe da directora de teatro e cineasta brasileira Christiane Jatahy, uma recriação moderna da Odisseia, de Homero; Nous, l’Europe, Banquet des Peuples, do escritor Laurent Gaudé encenado por Roland Auzé; e Points de Non-retours [Quai de Seine], da jovem franco-romena Alexandra Badea). A este conjunto (festival “in”) acresceram um conjunto verdadeiramente impressionante de outros espectáculos teatrais e musicais de todo o tipo que têm lugar extra programa (“off”). O programa teatral de Avignon tem a espessura das antigas listas telefónicas e os cartazes não deixam praticamente nenhum pedaço de parede livre.
Durante três semanas realizam-se cerca de 1600 peças para todos os gostos e vendem-se mais de 130.000 bilhetes. As ruas estão animadas, com numerosos espectáculos informais e serviços de restauração. Para quem se interessar por outras formas artísticas, basta andar de comboio vinte minutos para visitar, em Arles, os Rencontres de la Photographie, fundados em 1970 (este ano realizou-se, espalhada por vários sítios históricos, a edição número 50), cujo número de visitantes é próximo do do Festival d’Avignon.
Participei como Director do Rómulo – Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra e convidado da organização nos sextos "Rencontres Recherche et Création" que decorreram de 9 a 11 de Julho em Avignon no quadro do Festival de Teatro promovidos pela Agence Nacional de Recherche francesa, isto é, a agência que apoia a investigação científica em França, semelhante à nossa Fundação para a Ciência e Tecnologia. Tratou-se de uma oportunidade única de juntar cientistas, principalmente cientistas sociais e das humanidades (que incluem arqueólogos e neurocientistas) e criadores artísticos, designadamente escritores, encenadores e actores. O local como é habitual foi no Claustro de Saint Louis, logo à entrada da cidade. Todos os anos é escolhido um tema diferente, mas sempre ligado aos assuntos do Festival – este ano o tema foi “Travessia dos Mundos”, um título que permitiu debater a omnipresença das viagens na história da Europa desde os antigos mitos gregos até à presente crise dos refugiados.
Percorrendo a história do Velho Continente desde a revolução neolítica até à actual União Europeia, passando pelo drama que foi a Segunda Guerra Mundial e a posterior divisão da Europa em dois blocos, os oradores escolhidos pela organização proporcionaram um diálogo tão rico quanto fértil sobre as relações entre a investigação científica e as artes contemporâneas, com especial ênfase no teatro. O que é criar? Que diferenças existem no processo criativo entre as artes e as ciências? Como é que as artes e as ciências se influenciam mutuamente? Só um diálogo desse tipo, que se afigura como uma das necessidades maiores da cultura científica (entendendo por cultura científica a interpenetração entre ciência e sociedade), permitirá deslocar de um modo coerente as fronteiras do conhecimento e abrir novas perspectivas.
Ele é imperativo no mundo global em que hoje vivemos, com os problemas que nos atormentam. Se a ciência permite responder a alguns dos problemas da sociedade, é óbvio que ela nada ponte sozinha, em particular nada pode se não estiver devidamente bem acomodada no seio da sociedade. O teatro pode ser um excelente pretexto para nos interrogarmos sobre o nosso futuro individual e colectivo.
O Rómulo - Centro Ciência Viva da Universidade de Coimbra - foi pelo segundo consecutivo, associado da organização destes encontros, uma associação que está consubstanciada por um protocolo de colaboração assinado entre as duas partes. Assim o logotipo do Rómulo juntou-se aos de toda uma variedade de entidades que incluem os Ministérios do Ensino Superior, Ciência e Inovação e o Ministério da Cultura franceses; as Universidades de Avignon, Oxford e Bruxelas; a Biblioteca Nacional de França - Casa Jean Vilar; o CNRS; o Departamento de Românicas da Universidade de Harvard; o Instituto de Estudos Avançados de Paris; o Institut Français; o IRCAM; a Maison Française d'Oxford; a France Culture; e as revistas La Recherche, L'Histoire, Philosophie Magazine e Sciences et Avenir (ver https://www.recherche-creation-avignon.fr/partenaires/). Também o comissário português para a Investigação Científica Carlos Moedas se juntou nos apoios à organização.
Estabeleci vários contactos que permitirão com toda a probabilidade colaborações internacionais. Em particular discutiu-se a possibilidade de vir a organizar um encontro semelhante, embora naturalmente noutra escala, em Coimbra, uma cidade onde no centro também se encontra um palácio antigo – que serve de sede à secular universidade, que também é Património Mundial da Humanidade. Problema maior? Pois Coimbra não tem um festival como o de Avignon…
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