A greve deixou claro que os motoristas de transportes de matérias perigosas são os criadores de valor económico que os governos, os empresários e organizações de classe manietaram durante décadas. O desporto tem uma situação semelhante pelas perdas do valor económico criado pelo seu capital humano na produção desportiva. Nada de novo se se considerar que entre os deuses gregos Crónus destacava-se por comer os seus filhos logo que nasciam.
Os camionistas de matérias perigosas
A população será contrária à greve dos camionistas de matérias perigosas por falta de literacia económica e cultura democrática.
Os condutores de camiões de transporte de matérias perigosas são profissionais cuja importância é perceptível para quem tem uma carta de condução e a usa responsavelmente.
As mortes e os feridos directos e indirectos, a destruição da propriedade dos causadores dos acidentes e de terceiros provocados com quaisquer camiões são um custo inaceitável. Um sinistro com um camião que transporta matérias perigosas pode ter consequências privadas e públicas elevadas. Para além das possíveis mortes, que não têm um preço, alguns dos feridos mais graves poderão ter sequelas ao longo da vida cujo custo será muito grande para o próprio, famílias, amigos e sociedade.
Obter a carta de condução destes veículos exige requisitos especiais. A qualificação para lidar com essas competências específicas exigem investimentos ao longo do tempo o que restringe a oferta de bons condutores sobre a procura das empresas, aumentando o salário que os motoristas auferem. Por esse motivo o seu nível de remuneração acaba por ser superior a outras profissões em que as exigências de formação e o seu custo são menores e a oferta de trabalho é maior face à respectiva procura.
A comunicação social demonstrou que a escassez de oferta é uma realidade quando referem que o salário total dos motoristas chega a montantes que são várias vezes a remuneração de parte significativa dos trabalhadores portugueses.
A greve sugeriu haver falhas relacionadas com a distribuição do valor económico gerado pelos seus motoristas. Não menos importante é o arrastamento ao longo de décadas das iniquidades da redistribuição do valor económico criado o que contribuiu para a gravidade da actual crise que, não tendo sido contidas no âmbito das negociações entre as partes envolvidas, levarão a que a população e restante economia venham a ser lesadas pela não resolução atempada das iniquidades sofridas.
Os praticantes desportivos e os técnicos, dirigentes e voluntários no desporto
No desporto há igualmente quem beneficie de rendas extraordinárias obtidas na produção associativa. O desporto tem 2 vertentes humanas: a primeira vertente é a matéria-prima da actividade desportiva e são as pessoas que a praticam e transformam o seu capital humano para elevarem os níveis bem-estar relacionados com a produtividade pessoal, desportiva e profissional; a segunda vertente são os factores de produção humanos das organizações, como os técnicos, dirigentes e voluntários, entre outros.
Na primeira vertente, a não prática regular e a má prática de uma actividade desportiva contribuem para o sedentarismo e têm consequências negativas para a vida dos indivíduos como a obesidade e outras doenças. A falta de um estilo de vida activo através do desporto tem custos de milhares de milhões de euros ao longo da vida da população pela sua falta de produtividade e na menor qualidade da sua saúde, por exemplo. É gravíssimo que mais de 50% da população portuguesa não tenha estilos de vida activos através da prática desportiva.
Relacionada com a primeira vertente estão os erros de política desportiva que são incapazes de valorizar o valor da vida da juventude nos casos graves que acontecem com as claques desportivas, nas praxes académicas, na formação militar, nos acidentes que acontecem no mar, praias, rios e zonas ribeirinhas em todo o país e durante todo o ano, etc.
A segunda vertente, relacionada com a qualidade dos técnicos, dirigentes e voluntários, condiciona a qualidade da produção, ou seja, a qualidade do valor desportivo que beneficia a vida do praticante.
Os fracassos no mercado de produção de actividades desportivas geram a diminuição do valor da vida e pode acarretar a perda de anos de vida dos cidadãos. O velho Modelo de Desporto Português, que se encontra em vigor, impede a criação de valor humano desportivo quer através da falta de incentivo à participação desportiva regular, quer no insuficiente ou mau financiamento dos seus factores de produção técnicos, dirigentes e voluntários.
Em particular, a base da formação de populações desportivamente activas está no investimento na prática dos sectores carenciados da população que abrange cerca de 40% dos portugueses e dos seus clubes produtores de desporto.
O mito grego de Crónus
Crónus é o Deus da mitologia grega que comia os filhos assim que nasciam. A mulher Rhea escondeu o nascimento do filho Zeus que obrigou o pai a regurgitar todos os irmãos. Este mito ilustra a desigualdade de uma sociedade onde a distribuição da riqueza favorece uns poucos à custa da maioria.
A greve dos camionistas de matérias perigosas alerta para um padrão de desigualdade de bem-estar de outras profissões como os enfermeiros, médicos, jovens doutorados, jornalistas, operadores de call centers, de supermercados, bombeiros, para citar algumas.
A sociedade portuguesa é das mais desiguais a nível europeu em que as condições de apropriação da riqueza gerada contam com a exiguidade da actuação do Estado. Sectorialmente, o velho Modelo de Desporto Português celebra Crónus por ser um instrumento de desigualdade entre as necessidades de criação de capital humano desportivo da população e os comportamentos rentistas de alguns parceiros.
O desporto deveria actuar para além das obrigações de curto prazo impostas por certos parceiros sociais e políticos e promover a valorização do capital humano desportivo sem restrições e numa perspectiva de longo prazo.
Alertados pela greve dos motoristas de matérias perigosas, a reforma do Modelo de Desporto Português deveria combater no desporto o comportamento do Crónus nacional.
Fernando Tenreiro
20Ago2019
fjstenreiro@gmail.com
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