O Ano Internacional da Tabela Periódica 2019 celebra os 150 anos de Dmitri Mendeleiev (1904-1907) deixando espaços vazios para os actuais 118 elementos químicos ao encontro de Sophia de Mello Breyner Andresen (1919-2004), Jorge de Sena (1919-1974), Fernando Namora (1919-1989), Rómulo de Carvalho / António Gedeão (1906-1997) e Vitorino Nemésio (1901-1978) que deixaram espaços para nos prenchermos.
A poesia de Sophia Obra Poética (Assírio & Alvim, 2015) é luminosa e concreta. Mas o que fazem aqui a família e os amigos (e também os inimigos)? Trazem a humanidade multifacetada que precede a imortalidade como espero mostrar. Na ciência parecia mais fácil - pensar em espaços vazios de acordo com fórmulas - mas também não é. Há nesta também um factor humano. Na Menina do Mar, de 1958, fala de química. Parece simples. Sophia era enganadoramente simples.
“-Trouxe-te isto - disse. - É uma caixa de fósforos.
- Não é muito bonito - disse a Menina.
- Não; mas tem lá dentro uma coisa maravilhosa, linda e alegre que se chama o fogo. Vais ver.E o rapaz abriu a caixa e acendeu um fósforo.
- A Menina deu palmas de alegria e pediu para tocar no fogo.
- disse o rapaz - é impossível. O fogo é alegre mas queima.
- É um sol pequenino - disse a Menina do Mar.
- Sim - disse o rapaz - mas não se lhe pode tocar.
E o rapaz soprou o fósforo e o fogo apagou-se.”
Podemos encontrar ligações científicas, claro, mas o mais importante é certamente o factor humano.
O prefácio de Sena às Poesias Completas (Sá da Costa, 1965) de Gedeão, mostra que há uma ciência da literatura contra o impressionismo da crítica, com 70-80% dos seus poemas a não terem uma referência científica [corrijo a minha gralha]. Nas Memórias (Gulbenkian, 2010), no qual deixa um espaço para a sua morte, Rómulo de Carvalho diz que gostou do prefácio de Sena, mas no Hotel Tivoli em Junho de 1967, “Sentado à minha frente, na mesa do almoço, a meio metro de distância de mim, está Vitorino Nemésio que não me falou durante toda a refeição, nem antes nem após ela. Era um intelectual.” Em Nemésio, os poemas de 1971, de Limite de Idade, há hidrogénio, hélio, fósforo, carbono, ouro, azoto, polónio, chumbo, plutónio, néon, árgon, ferro, silício, sódio, cloro, alumínio, magnésio, potássio, enxofre, bromo, boro, estrôncio, mais elementos que em Gedeão! Ele que chumbara, segundo as suas palavras, por não saber a composição centésimal do metano.
Sena gosta de Nemésio, que resolveu triunfar de 1935 até a morte, numa aparentemente gratuitidade nas metáfora, “Nemésio que conhecia tudo mas aparentava não conhecer nada” ao contário de Namora, segundo Sena. Em Estudos da Literatura Portuguesa II, Sena (Edicões 70) escreve sobre Namora e Domingo a Tarde, de 1969: “«O melro eu conheci-o», perdão o Namora, eu conheci-o, somos da mesma idade, andámos no mesmo liceu. Da mesma carteira. [U]m romancista medíocre e um péssimo escritor. Ou pior: é um narrador convencional” seguindo de “concluamos com uma nota comprovativa da total isenção com que foi escrito este artigo: eu nunca li nenhum romance de Namora, e muito menos este de que me ocupei … a diferença fundamental entre a literatura autêntica e a literatura de consumo está em que para falarmos da última não é necessário lê-la.” Por seu lado, Namora, num dos seus últimos escritos “[o]s homem de letras, detestam as pessoas sem as conhecer, as obras sem as ler.”
Sena mostra uma infância solitária abatido ao contingente do Sagres, numa ocasião única, ele que sempre sonhara ser oficial de Marinha. No seu Diário, editado por Mécia de Sena refere, por cartas, que vai ser chumbado. Ganhou-se um génio contrariado, talvez, sempre a ler, que se forma em engenharia e vai para a junta autónoma, para o Brasil e depois Universidade da Califórnia. A história é conhecida da wikipedia.
Namora, também contrariado, estuda medicina, mas esta é uma fonte de inspiração. E é sobretudo um homem do seu tempo. Com tuberculosos e cancros terríveis, gente pobre e rude, acompanhamos a evolução da medicina, desde que os hospitais não eram asilos, até o serem de facto. Em Um Homem Disfarçado, de 1967, e em 1969, surgem as drogas e a crítica social do seu tempo. Em Marketing, de 1969, e depois em Cadernos de um Escritor, e sobretudo, Os Adoradores do Sol, de 1971, numa viagem aos países Escandinavos, que repeti quase cinquenta anos depois e estes não “mudaram muito mas mudaram o suficiente.” Namora traz-nos o tempo com algum bolor e tralha é certo, mas faz-nos pensar na Greta Thunberg e no Mundo em que vivemos.
Namora responde em Março de 1966 na revista Vértice a Augusto Sales que já havia feito comentários à adaptação cinematográfica de o Trigo e o Joio. É assim que os vemos, em lutas entre eles, sempre sufocados e amordaçados, mas a liberdade não os fez melhores, como hoje sabemos.
Sena que foi um grande cultor das cartas. Podemos encontrar cartas a quase todos e todas são importantes, no original. Só no original se percebe o Sena que vê no Gaspar Simões um amigo quando ao Ramos Rosa diz mal dele. Espreitar por de trás da fechadura? Não! Só a humanidade os torna imortais. Citando Sena, fora do contexto (é, de facto, muito perigoso estar morto): “Que os historiadores universitários da literatura meditem nesta tremenda verdade...”
E não deixa de ser revelador que Namora tenha reescrito, no estilo, mas não no conteúdo, nos anos 1970, o seu romance de juventude, As Sete Partidas do Mundo, de 1938, escrito entre 1936 e 1938, e Jorge de Sena reescreva toda a vida o seu romance, (também) de juventude Sinais de Fogo, publicado ainda incompleto, em 1979, e o tema seja o mesmo, o colégio que os marcou e uniu, um pobre a detestar os burgueses, outro burguês, também a detestar. Focando coisas diferentes, o primeiro as tuberculoses e as pneumonias, o segundo o pavor das gravidezes, antes do aparecimento da pílula (metonímia fantástica de um medicamento que criou um revolução), com diferentes profundidades, sempre na primeira pessoa. Como na tabela periódica que de 118 elementos se fazem mais de 15 mil moléculas todos os dias e de 26 letras se fazem incontáveis palavras todos os segundos, celebrando todos, os elementos e as letras, a humanidade.
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