Entrevista publicado em 23 de Dezembro de 2019 pela Plataforma Barómetro Social do Instituto de Sociologia da Faculdade de Letras
da Universidade do Porto, conduzida por João Aguiar, Instituto de Sociologia da Universidade do Porto.
http://www.barometro.com.pt/2019/12/23/para-escolhermos-a-ciencia-em-vez-da-pseudo-ciencia-temos-de-ter-uma-sociedade-com-mais-cultura-cientifica/
JA- A pseudociência tem-se disseminado de um modo vincado. Paradoxalmente, tal facto ocorre num período histórico em que nunca houve tanto impacto do desenvolvimento científico e tecnológico. A que pensa que se deve este desfasamento?
CF- aradoxo que nota é bem real. Já o astrofísico e divulgador científico Carl Sagan, em 1990, num artigo publicado na revista “Skeptical Inquirer”, tinha dito que “vivemos numa sociedade extremamente dependente da ciência e tecnologia, na qual muito poucas pessoas sabem alguma coisa sobre ciência e tecnologia. Isto é uma clara receita para o desastre.” O que está a acontecer – basta ouvir as mensagens que vêm da Casa Branca e do Palácio do Planalto – é precisamente o desastre anunciado: a mistura entre poder e ignorância está-nos a explodir na cara. De certo modo, a ciência está a ser vítima do seu próprio sucesso. As variadas pseudo-ciências tentam caricaturar a ciência, copiando-lhe alguns traços da sua forma, sem lhe captarem de maneira nenhuma a sua essência, que assenta no método científico, nessa combinação poderosa entre observação, experimentação, razão lógica e crítica permanente. A ciência sempre coexistiu com as pseudo-ciências, que conseguem atrair muita gente devido à sua maior simplicidade para não dizer ingenuidade conceptual. No mundo de hoje a ciência e tecnologia têm uma presença avassaladora e as pseudo-ciências também. As duas cresceram e o mais certo é continuarem a crescer. Não tenho ilusões: o racional será sempre acompanhado pelo irracional. Cabe-nos a nós, cidadãos, fazer escolhas. E para escolhermos a ciência em vez da pseudo-ciência temos de ter uma sociedade com mais cultura científica. A escola não está a chegar para a sua transmissão, até porque a escola tem transmitido mais os resultados da ciência, que são provisórios, do que o método para os alcançar, um método que tem permanecido firme desde a Revolução Científica.
JA - A ciência, mais propriamente nas Ciências Naturais, corresponde fundamentalmente a um conjunto de teorias e de conhecimentos continuamente testados metodologicamente por via da experimentação, da replicação e da discussão dos resultados. Nesse sentido, gostaria que comentasse, com casos práticos e concretos, a capacidade de superação contínua do método científico. De que forma tal procedimento confere uma capacidade constante de correção e de aprimoramento do conhecimento científico?
CF- Dou exemplos da Física que conheço melhor, mas poderia dar exemplos de outras áreas científicas. Galileu ergueu-se contra Aristóteles a respeito da queda dos graves e foi o primeiro, usando a experimentação, a enunciar uma lei física de base matemática: a lei da queda dos graves. Foi também o primeiro a ver coisas novas no céu usando o telescópio. Mais tarde, Newton junta a lei da queda dos graves com as observações astronómicas, entretanto encapsuladas por leis matemáticas, para fazer uma teoria de unificação da física da Terra e da física do céu: chegou à lei da gravitação universal, que se aplica tanto na Terra como no céu. É a mesma lei que explica a queda de uma maçã e a órbita da Lua em volta da Terra ou da Terra em volta do Sol. Muito mais tarde, Einstein veio fornecer uma explicação da gravitação como uma deformação geométrica do espaço-tempo, verificando que a mecânica de Newton estava errada, no sentido de não se aplicar a escalas cósmicas. Mas continua a ser um caso limite da teoria de Einstein. Isto é, usando o mesmo método científico, conseguiu-se uma descrição mais exacta da variedade de fenómenos da gravitação. Os físicos estão, porém, convencidos que ainda não foi dada a última palavra. Falta juntar a teoria da gravitação com a teoria quântica. Mas, seja lá o que for, aquilo que vier terá de encaixar naquilo que se conhece. Ciência é acumulação. É preciso imaginação para crescer, mas uma imaginação limitada pelo conhecimento acumulado até à data.
JF – Num capítulo do livro “A Ciência e os seus inimigos”, que escreveu em co-autoria com David Marçal, verifica que «mesmo periódicos bastante respeitáveis por alguma razão não dispensam uma secção de astrologia» (p.210). Todavia, são minoritários os meios de comunicação social com programas de divulgação científica. A que se deve este aparente desinteresse pela ciência da parte de um setor de empresas que depende tecnicamente da aplicação do conhecimento científico para o seu próprio funcionamento?
CF- A astronomia não arredou a astrologia, que continua a ocupar maior lugar na imprensa e nas livrarias do que a astronomia. Porquê? Porque o cérebro humano tem um lado irracional que em muitas situações prevalece. O cérebro tende a aceitar explicações simplistas, explicações que ao fim e ao cabo não o são verdadeiramente. A ciência vai muito além de explicações simplistas, vai muito além do chamado senso comum. A ciência permite verificar que as coisas não são como por vezes parecem, e que não são como muitos gurus dizem que são. A ciência é precisamente a descrença nos gurus e em todos os vendedores de banhas da cobra, em favor do espírito crítico e da procura de provas. Os meios de comunicação social dão, dizem eles, ao público aquilo que este quer. Mas, na minha visão, estão equivocados. O público consome o que lhe dão por não ter alternativa ou ser difícil procurá-la. Há que romper este círculo vicioso: os medias, especialmente entre nós a televisão, deviam privilegiar o conhecimento científico. É a única maneira de não enganar o público.
JA – Para além da divulgação científica que os cientistas têm realizado, considera necessárias novas formas de educação para a ciência? Faz sentido equacionar políticas públicas (tanto ao nível governamental como universitário e escolar) desenhadas especificamente para a divulgação de conhecimentos e do método científico, ou os instrumentos existentes parecem-lhe suficientes?
CF- O principal instrumento deve ser a escola, mas parece evidente que não tem sido suficiente. Daí o papel dos diferentes media, desde a imprensa escrita até às redes sociais na Internet, passando pela rádio e televisão (todos estes meios estão, de resto, ligados). E há mais formas de fazer passar a cultura científica: encontros com cientistas ou divulgadores de ciência, que podem ter a forma de palestras ou outros, debates públicos (por exemplo, os chamados “cafés de ciência”), exposições (há que saber aproveitar melhor as várias possibilidades de ligação entre artes e ciências). Claro que faz sentido definir políticas públicas para melhoria da cultura científica da população. Em Portugal, existe a Agência Ciência Viva, que não é uma instituição pública, mas uma instituição privada sem fins lucrativos constituída por um pequeno conjunto de instituições do mesmo tipo. Tendo começado muito bem sob o impulso de José Mariano Gago, hoje está num estado apático, sem ser capaz de ver os sinais de futuro e desenhar políticas com base na melhor prospectiva. Dou exemplos: grandes temas da actualidade, como as alterações climáticas, a inteligência artificial e a revolução genómica, que colocam dilemas éticos, têm sido negligenciadas por aquela agência, que repete burocraticamente as acções que já teve, que são na maior parte dirigidas a crianças e jovens. É preciso pensar no público adulto, que consome a ciência e a tecnologia e que, no seu dia-a-dia, se vê confrontado com escolhas nas quais seria muito útil o exercício, ainda que rudimentar, do método científico. Uma parte da responsabilidade compete ao Estado e este, através do governo, não tem exercido a sua responsabilidade de um modo inteligente e consistente. Mas outra parte cabe a instituições com alguma autonomia, como as universidades. Na Universidade de Coimbra fundei o Centro Rómulo, cujo foco é a cultura científica, o fomento da ligação das ciências com outras actividades humanas, que tem procurado fazer o que pode no meio de mil e uma dificuldades. A Universidade do Porto está a construir um Museu da Ciência muito interessante, tendo começado pela abertura da Galeria da Biodiversidade na Casa Andresen. As Universidades, a minha, a do Porto e as outras, podem fazer bastante mais e melhor. Têm uma responsabilidade própria que não podem alienar.
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