domingo, 1 de dezembro de 2019

Educação e emancipação

Transcrevemos extractos de um texto com grande interesse, escrito pelo professor, músico e agora também autarca Manuel Rocha, destinado a apoiar a sua intervenção num evento educativo recente (ver imagem ao lado). Aborda a ideia de que a educação, sendo, de facto, educação, tem por finalidade a autonomia de pensamento, a emancipação. E ressalta que essa tarefa, pela complexidade de que se reveste, não pode ser apenas confiada à escola, ainda que a escola tenha uma especial responsabilidade em educar nesse sentido, nunca no sentido contrário, da dependência, da submissão. 
Maria Helena Damião e Isaltina Martins
Grande parte de tudo o que está lá fora foi feito por muita gente que não aprendeu a ler e a escrever. Dito de outra maneira, gente que não teve direito aos lugares de ler e escrever, porque, para quem mandava, esse não era – e não era mesmo – impedimento para que se soubesse construir grande parte do que está lá fora. Erguiam-se as casas e as pontes, plantavam-se as árvores, assentavam-se os carris, pavimentavam-se os caminhos, que ainda são os usados, com recurso às sabedorias que passavam de mão em mão, desde os primeiros fenícios que por aqui se fixaram, aos nossos próprios avós, num tempo tão perto do nosso. 
É sabido que, neste mundo assimétrico, aos humanos calham muitas condições, umas mais abastadas, outras de menos fortuna. Foi destes que falou um homem no dia em que se achou de medalha ao peito e faixa a tiracolo, a receber um prémio que só é dado aos que sabem ler e escrever e disso façam prova de incomparável excelência junto dos seus semelhantes. Disse assim José Saramago, recebendo o Prémio Nobel: o homem mais sábio que conheci em toda a minha vida não sabia ler nem escrever (…)
Não é qualidade das letras a capacidade de ler o mundo, a vontade de mexer no mundo, a pena de o abandonar. Mas sem letras não haveria isto que vos acabo de dizer, que nos foi dito pelo neto de Jerónimo e Josefa, o qual por saber ler e escrever foi capaz de somar às nossas histórias uma história mais, porventura semelhante a muitas que se perderam à vista da sepultura, por não haver quem as soubesse escrever para que pudessem ser lidas a quem viesse a seguir. 
Foram, porém, estes tantos que abriram os caminhos aos que viriam a fixar no papel equações de comportamentos dos materiais, que das casas são esqueleto e pele; e os que estudaram quanta água e quanto sol explicava robustezes de troncos e demais vegetação, para que mais ancho se fizesse o fruto; e aqueles que agastados com o esburacado do macadame se atiraram à procura de melhor chão para os passos apressados deste século XXI. 
Saber ler e escrever poderá não ser ainda garante de emancipação mas é, certamente, instrumento de transformação. “Educação, factor de emancipação” –  assim foi chamada a praça de opinião em que nos encontramos agora. 
E bem, já que educação e emancipação, não sendo sinónimos, são palavras bem calhadas numa mesma frase, e mais bem calhadas se acharão se convergirem numa mesma vida. A educação, enquanto direito, é assunto recente na história das sociedades humanas. Já a emancipação, mais antigo assunto, é etapa final de lutas pequenas e grandes que ainda hoje custam vidas – algumas no espaço doméstico – sempre que o desejo emancipador colide com a vontade dos que possuem existências como se de objectos se tratasse. 
A vontade de acesso à educação e à cultura (que daquela é irmã) é, sobretudo nos lugares de ofensa à emancipação, uma reivindicação essencial, uma espécie de luz de humanidade nos tempos mais azedos dessa luta antiga, que é a luta de classes. Que o diga aquela menina palestiniana fotografada quando recolhia livros nos escombros da sua escola bombardeada. Que o digam os homens e mulheres, alguns destas terras a sul do Tejo, que aprenderam a ler e escrever nas prisões da ditadura, ensinados por presos também, no terrível e admirável paradoxo de poderem ser os lugares de repressão o palco de construção emancipadora através do conhecimento; simultaneamente metáfora e evidência do poder da educação, enquanto ferramenta de humanização, até nas condições de privação da liberdade, até na calamidade da guerra. 
Talvez seja, então, essa a primeira conclusão que se possa tirar neste encontro em que nos propomos abordar a educação enquanto fator de emancipação. A de serem, emancipação e educação, historicamente, matéria da luta dos deserdados e ofendidos pelo acesso ao conhecimento entendido como direito humano. Talvez possa ser por aí que a Escola tenha de iniciar o seu trabalho emancipador: pelo relato da história da emancipação. 
Para que se saiba que na Atenas da antiguidade, onde se diz que nasceu a democracia, os que mandavam decidiram que educação era domínio de que estavam arredados os estrangeiros, as mulheres e os escravos. E que no mesmo século XX em que a educação dos cidadãos todos, enquanto obrigação do Estado, foi inventada, mesmo assim continuou a negar-se a educação a milhões de cidadãos. E que foi para impedir que a educação se constituísse fator de emancipação, numa construção social em que os ricos precisam que os pobres pobres se mantenham, que a educação foi transformada em produto de mercado e, como tal, instrumento do poder económico e dos que nele se abastecem. O medo do poder emancipador da educação atinge sociedades economicamente poderosas, como o Reino Unido, e sociedades miseráveis, como aquela em que Malala, uma menina paquistanesa que queria ir à escola, quase pagou com a vida o seu atrevimento 
É justo e pertinente que a AMRS, em tempo de desenhar um projecto educativo para a sua região, associe a expressão “educar na comunidade” ao desígnio da emancipação. 
É que, ainda não há muito, um governo de Portugal pretendia que a educação reproduzisse na Escola um sistema de valores inspirado no dito corrente de que “nem todos podem ser doutores”. Salazar também era desta opinião. Por isso, no Portugal dos anos de 1960, um quarto dos cidadãos não sabia ler nem escrever, sendo que nas mulheres a percentagem de analfabetismo era de quase 50%. Para poder ser factor de emancipação a educação tem mesmo de preconizar que todos possam ser doutores. Não se trata, aqui, de exigir que todos o sejam, complexa que se apresenta a paleta de cores das vontades humanas. 
Trata-se de disponibilizar meios de acesso ao conhecimento, ao mesmo tempo que se luta contra projectos que insistem em modelos de educação decalcados do modelo salazarista, com as devidas actualizações, em que o português de agora ocupasse o lugar do “saber escrever o nome” de então, e a matemática de hoje pudesse ser o “fazer contas” de antanho. Tudo tão longe da intenção daquele Pedro Nunes que era daqui, que encontrou nos meandros dos cálculos as voltas que, na vida, são poesia também e matéria de emancipação. 
Caros amigos, 
No discurso corrente das redes sociais, que são o manual de vida disponível no bolso de milhões de cidadãos, atribuem-se hoje à Escola responsabilidades educativas que não são só suas. A Educação é, como bem diz o tema deste encontro, assunto comunitário, correndo nos planos formal e informal, nos canais que definem esta região (como definem outra qualquer) mas também em planos a que a Escola não tem como atender. Fomos, pois, aqui chamados para reflectir sobre uma questão que, naturalmente, não está circunscrita ao espaço educativo da Escola (...). 
Tudo aquilo que acabo de referir pertence a uma poderosíssima indústria que repete uma mensagem mil vezes até se converter em convicção (...). É essa a indústria que congrega poderosos meios destinados a vender produtos, condicionando para tal o comportamento social das pessoas, as suas escolhas do dia-a-dia, as suas preferências musicais e até a sua opção de voto, obrigando a democracia a pintar-se de campanha publicitária, em que vale mais um slogan bem promovido do que mil boas razões que precisem de atenção. É neste ambiente de permanente assédio do mercado que surgem novos produtos com impacto educativo, quais sejam os canais de youtubers e influenciadores que (...) orientam os gostos e as opiniões de milhões dos nossos jovens. 
Mas é de educar na comunidade que aqui se quer falar, decalcando – e bem – a velha ideia de que para educar uma criança é precisa uma aldeia inteira. E esta é a aldeia que fica no Estuário do Tejo, na Arriba Fóssil da Costa da Caparica, na Arrábida, no Estuário do Sado, nas Lagoas da Sancha e de Santo André, nos lugares entre o Sudoeste Alentejano e a Costa Vicentina, natureza ainda, e já os humanos viriam a caminho para a transformar e gerar cultura, que tanto foi muralhas do castelo e o Santuário de Nossa Senhora da Pedra Mua, como ofícios da pesca e da conserva e trabalhos da laranja e do Moscatel. E movimentos de homens e mulheres em busca de pão, subidos das praças de jorna para as indústrias do Alfredo da Silva, recriando modas camponesas à revelia das searas, só saudade naquelas vozes. E o Bocage, o Romeu Correia, a Luísa Todi e o Manuel da Fonseca. E os artistas de agora, de que não sei nomes, mas sei que sempre os há. E estaleiros navais onde se construíram cidades que iam por sobre o mar. E tudo o que agora se faça, interrompidos velhos ofícios, nascidos novos, emergente a preocupação com o ambiente desde o dia em que o excesso se percebeu na água, no ar e na terra. E o povo, os daqui e os que vieram de longe tingir esta terra de braços, sabedorias e apelidos cheios de consoantes. Que melhor ferramenta de emancipação poderia haver nesta aldeia, do que a História de uma terra alimentadora de sonhos de justiça e trabalho? 
Regressaremos agora à Escola – e dela não diremos os equívocos em que eu, por ser autarca também, cá me vou amargurando. Regressemos antes ao lugar que é sempre colo quando o colo falta; que é sempre pão se de pão se precisa; que seria sempre janela, mesmo que só pátio de recreio fosse. 
Nunca a escola, por mais males que se lhe apontem, deixará de ser o maior laboratório da emancipação da nossa sociedade – à disposição dos que aprendem, dos que ensinam e dos que se ocupam das funções do organismo escolar. Já era assim, mesmo no tempo da memorização dos rios e dos ramais – uns permanecentes, outros extintos por razões de turvo interesse. Sempre foi assim, mas será melhor quando lhe passarem os traumas das metas curriculares e da monocultura do tal português e da tal matemática de linha de montagem. E quando de novo democratizar a vida nos seus órgãos de governo. E aprender a alhear-se dos resultados dos rankingues, que são bons quando se trata de produção de componentes de automóveis, mas nada acrescentam às origens e destinos de gente viva, posta nos lugares da realidade. E valorizar o papel dos seus trabalhadores, operários-artífices da construção da ideia emancipadora (...).

2 comentários:

Anónimo disse...

QUERER É PODER

“Para poder ser fator de emancipação a educação tem mesmo de preconizar que todos possam ser doutores. Não se trata, aqui, de exigir que todos o sejam, complexa que se apresenta a paleta de cores das vontades humanas.”

Antigamente, os jovens queriam ser médicos, bombeiros, professores, enfermeiros, polícias, bate-chapas, marceneiros, estucadores, agricultores, camionistas, jardineiros e limpa-chaminés, entre muitos outros profissionais, todos revestidos daquela probidade que só a dignidade do trabalho confere.
Atualmente, as grandes organizações internacionais, como a União Europeia ou a OCDE, querem, sobretudo, que, tantos os jovens como os velhos, sejam todos doutores!
Estes doutores, de apanha estatística, compreendem um larguíssimo espetro de possibilidades que vai desde a neurocirurgia, em que são poucos, até às ciências da educação, com que muitos deles se comprazem na destruição do ensino e das aprendizagens nas escolas C + S e EB 1, 2, 3 + JI.
A sociedade democrática, por mais moderna e civilizada que seja, não tem o direito de obrigar um qualquer indivíduo a ser doutor!
Se a massa cinzenta, de um qualquer cidadão, não tem a qualidade suficiente para fazer dele um verdadeiro doutor, o que ganhará a sociedade inclusiva com mais um doutoramento falso?!
Respeitemos, então, “a paleta de cores das vontades humanas”!
A beleza de um mundo colorido não está só nas boas massas cinzentas!

Carlos Ricardo Soares disse...

O título fez-me pensar imediatamente em paternalismo.
Vivemos numa sociedade em que as palavras são reproduzidas diante dos nossos olhos, quando somos leitores, ou atingem os nossos ouvidos, quando estamos no papel ou atitude de escutar o que diz Molero ou o que falava Zaratustra, com a previsão de serem entendidas e interpretadas como cada um quiser ou for capaz...
O mercado da atenção é um problema muito complexo para toda a gente que depende dele.
E, cada vez mais, dependemos desse mercado, não apenas como dizentes ou falantes, mas também como escutantes ou ouvintes.
Neste mercado da atenção, tudo se transforma em ruído, mas a liberdade, que é muito bonita, não é para todos.
A liberdade de dizer/falar e a liberdade de escutar/ouvir não são da mesma igualha e, no mercado da atenção, a liberdade de uns não é propriamente liberdade de outros.
O paternalismo e a emancipação têm vindo a ser o ator e a sua personagem dramática e/ou trágica, das relações de poder, num teatro que virou tudo do avesso ao tornar-se verdadeiro poder e um poder maior.
Tudo sob a égide de um deus (dinheiro), que não precisa de saber, nem tem de valer nada, para ser critério de (quase) tudo.

O BRASIL JUNTA-SE AOS PAÍSES QUE PROÍBEM OU RESTRINGEM OS TELEMÓVEIS NA SALA DE AULA E NA ESCOLA

A notícia é da Agência Lusa. Encontrei-a no jornal Expresso (ver aqui ). É, felizmente, quase igual a outras que temos registado no De Rerum...