“Chesterton imaginou o Super-Homem como um ser débil e doente. Também outros super-homens têm os seus pontos fracos, o que, aos olhos dos seus admiradores, só torna o seu poder sobre-humano mais admirável.”
Alberto Manguel, Monstros fabulosos, Tinta da China, 2019.
A Mitologia grega fala-nos da idade dos Heróis, uma era mítica em que a convivência entre humanos e imortais era considerada normal, sentindo-se os humanos uns privilegiados por serem bafejados com essa proximidade com os seres superiores.
Porém, nesse relacionamento destacava-se sempre a força das divindades em fazer valer o seu querer junto dos pobres mortais a quem subjugavam, irremediavelmente, sendo os homens castigados quando se atreviam a igualar-se a eles. Que o diga a jovem Aracne, a habilidosa tecedeira que se atreveu a equiparar-se a Atena e foi por tal orgulho castigada e transformada em aranha, ficando eternamente presa à sua teia.
Com essa mesma vontade divina, que tudo pode, os deuses seduziam as mais belas mortais, e sempre conseguiam os seus intentos graças às metamorfoses e aos disfarces e estratagemas sem conta que conseguiam inventar. Os maiores exemplos vêm dos amores de Zeus com as mortais, de cuja união nasciam seres extraordinários, pois não eram já iguais ao comum dos humanos, mas também não gozavam de todas as prerrogativas dos deuses olímpicos. Eram os semi-deuses, depois, muitos deles heróis, humanos com capacidades fora do normal, quer em força, quer em inteligência, recebidas da sua “costela” imortal, vinda do pai ou da mãe. Por vezes acontecia também o inverso, eram as deusas imortais que se apaixonavam pelos humanos. Veja-se o exemplo de Eneias, filho da deusa Vénus e do mortal Anquises.
Estes heróis, homens, em geral, mas também mulheres, praticavam na sua vida feitos extraordinários que acabavam por elevá-los à categoria de quase deuses. Eram-lhes dedicados templos, estátuas, monumentos de vária ordem, evocativos das suas façanhas, eram cantados pelos poetas o que levava a que nunca fossem esquecidos. Alguns seriam até admitidos no Olimpo junto dos deuses maiores.
Os heróis lendários mais conhecidos são os que estão relacionados com a Guerra de Tróia, com destaque para Aquiles, Sarpédon, o filho de Zeus e de Europa, para além do astucioso Ulisses de quem tanto nos fala Homero.
Passou, depois, esta época dos grandes heróis.
Passou, depois, esta época dos grandes heróis.
Longos séculos nos separam dessas histórias que, tidas como verdadeiras, eram apresentadas como exemplos na educação da juventude. A Humanidade caiu em desgraça, mesmo muito depois de renovada pelas pedras de Deucalião e Pirra. A obscura Idade das Trevas, muito mais longa do que aquilo que a História define, reduziu o Humano à sua condição de imperfeito, tornou bem clara a separação entre os mortais e os imortais, a convivência terrena de uns e outros desapareceu. Os deuses deixaram de descer à terra.
E essas histórias de semi-deuses e heróis ficaram apenas nos livros que continuam a encantar, em momentos de sonho que nos levam para lá do mundo real.
No entanto, essa era de heróis e seres imortais parece estar a regressar à terra. Outros são os deuses, mas não menos poderosos. E os heróis, criados por essas forças “divinas” aparecem a cada momento, divulgados, agora, pelos Homeros tecnológicos, pelos aedos da comunicação social.
São os heróis enaltecidos e condecorados, a todo o momento apregoados e apontados como exemplos, adorados pela juventude, aproveitados pelas divindades do poder. Nas mais diferentes áreas há que escolher os melhores e elevá-los a essa categoria de seres extraordinários, endeusá-los, divulgar o seu valor pelo Universo para que sejam adorados pelos humildes mortais. É o melhor futebolista do mundo, o melhor treinador, o melhor goleador, o melhor aluno, o melhor professor do mundo, o empresário do ano, o banqueiro modelar, o melhor profissional, seja de que área for. E apresentam-se como exemplo, são modelos a imitar. E essa emulação, causa depois as angústias, na ânsia de igualar o “modelo”.
Por isso é preciso incentivar a criança, o jovem, o adulto. Desde pequenino incutir no menino, na menina a ideia de que tem de ser excepcional, no que quer que seja. Os pais tratam os filhos como príncipes e princesas a quem nada pode ser negado, a escola dá ao aluno todo o poder porque ele é senhor de si mesmo, capaz, empreendedor e não pode ser “humilhado” com uma repreensão ou uma classificação que destrua a sua auto-estima, porque eles têm o direito à felicidade, que passa, exactamente, por serem reconhecidos, enaltecidos, adulados. Surgem os pequenos ditadores, com uma elevada consideração se si mesmos, que a eles próprios se promovem, se tornam numa marca comercializável, considerando-se, antes que outros os considerem, os melhores, os mais aptos, os mais empreendedores, os mais... mais...
É esta a nova era dos heróis. O século da auto-promoção, que, nessa busca ansiosa da felicidade gera as depressões, os desalentos, que, depois, é preciso tratar... Por isso, há que promover a psicologia positiva, desenvolver a inteligência emocional, incentivar a auto-estima, levar as pessoas a acreditar que o futuro depende exclusivamente de si próprias e que tudo se resolverá “se acreditarem em si mesmas” e que, por isso, devemos procurar sempre o prazer em tudo aquilo que fazemos. É, de acordo com um livro há pouco publicado entre nós, a “Ditadura da felicidade”*.
E surgem as ajudas para alcançarmos essa felicidade em nós: é o ioga, é o mindfulness, são os livros de auto-ajuda, são os psicólogos da “psicologia positiva”, são os cursos mais variados que nos levam nessa procura de “ser feliz” a todo o custo.
E em que consiste essa felicidade?
Não pode ser, com certeza, no poder económico, que vai gerar mais angústia para o alcançar, no trabalhar cada vez mais, graças aos exercícios de ioga ou outros, pois isso só trará menos tempo para usufruir dessa felicidade...
O conceito de felicidade não pode ser imposto pelos “deuses” do poder, não pode ser global e universal, vindo de cima, ele tem de sair das capacidades de cada um se libertar das amarras que o escravizam, da liberdade de cada mente para buscar aquilo que o realiza, que o torna melhor, porque mais sensível ao outro e que não é indiferente a tudo o que é verdadeiramente humano.
E em que consiste essa felicidade?
Não pode ser, com certeza, no poder económico, que vai gerar mais angústia para o alcançar, no trabalhar cada vez mais, graças aos exercícios de ioga ou outros, pois isso só trará menos tempo para usufruir dessa felicidade...
O conceito de felicidade não pode ser imposto pelos “deuses” do poder, não pode ser global e universal, vindo de cima, ele tem de sair das capacidades de cada um se libertar das amarras que o escravizam, da liberdade de cada mente para buscar aquilo que o realiza, que o torna melhor, porque mais sensível ao outro e que não é indiferente a tudo o que é verdadeiramente humano.
Isaltina Martins
* Edgar Cabanas e Eva Illouz, A Ditadura da Felicidade, Círculo de
Leitores, 2019.
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