segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Mark Athias (1875-1946)



Minha entrada sobre o médico madeirense e Mark Athias, que saiu no vol. 1 do Grande Dicionário Enciclopédico "Madeira Global", que acaba de sair na Theia (eds. José EDuardo Franco e Cristina Trindade):

Mark Anahory Athias, médico nascido no Funchal de uma família judaica (o seu pai era director de um banco), foi professor universitário na Universidade de Lisboa, investigador em Ciências Biomédicas e um pioneiro da Histologia e da Bioquímica em Portugal.

Foi bastante jovem estudar para Paris, em cuja universidade se licenciou em Medicina no ano de 1897. Permaneceu na capital francesa, encontrando emprego num laboratório de Histologia. Os seus trabalhos, premiados pela Faculdade de Medicina de Paris, permitiram-lhe estagiar com diversos especialistas de Histologia e de Química, entre os quais, a partir de 1894, o professor de Anatomia e Histologia Mathias-Marie Duval (1844 – 1907). Nos seus estudos foi muito influenciado pelas ideias então muito discutidas de histofisiologia nervosa do médico Santiago Ramón y Cajal (1852-1934), o único Prémio Nobel espanhol nas áreas das ciências (recebeu-o em 1906, pelas suas investigações relativas ao sistema nervoso realizadas em 1888). Apesar do anti-semitismo que se vivia em França nessa época na sequência do famoso caso Dreyfus (como ficou conhecida a polémica à volta do julgamento do capitão de artilharia francês Alfred Dreyfus, que, em 1894, foi injustamente acusado e condenado por alta traição, tendo padecido cinco anos de presídio numa ilha ultramarina) Athias concorreu a um lugar no laboratório parisiense onde trabalhava. Mas foi preterido por um colega francês.

Completada a sua formação, e fracassada a intenção de se fixar em Paris, o médico regressou ao Funchal tendo-se, em 1903, instalado em Lisboa. Ai, a convite do médico Miguel Bombarda (1851-1910), que com ele partilhava a simpatia pelas ideias de Ramón y Cajal, foi nomeado director do Laboratório de Histologia do Hospital de Rilhafoles (designado, desde 1911, Hospital de Miguel Bombarda).  Essa foi uma época de profunda renovação da Medicina portuguesa, com a realização no novo edifício do Campo de Santana do XV Congresso de Internacional de Medicina (onde Ramón y Cajal apresentou comunicação) e com a criação, com base na Escola Médico-Cirúrgica, da Faculdade de Medicina de Lisboa, impregnada pelo espírito positivista do movimento republicano. A nova geração médica ficou conhecida por “geração de 1911”.

Athias soube aproveitar não apenas as instalações e serviços da Faculdade de Medicina, mas também de outras instituições. Dirigiu nessa altura o Serviço de Raiva do Instituto Bacteriológico, fundado em 1892 por um outro médico madeirense, Luís de Câmara Pestana (1863 – 1899), como serviço especializado do Hospital de S. José, e o Instituto Pasteur de Lisboa, ligado ao de Paris, estabelecimento que comercializava produtos médicos. Colaborou activamente com o Instituto Bento de Rocha Cabral,  fundado com base numa doação deixada em testamento pelo multimilionário português com esse nome que fez fortuna no  Brasil e  morreu em 1921  (o Instituto ainda hoje existe no Rato, embora apenas restrito a actividades de história e divulgação). O primeiro director desta instituição, escolhido pelo próprio Rocha Cabral. foi o médico Matias Ferreira de Mira ( 1875- 1953), professor de Química Fisiológica da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa, amigo e colaborador de Athias. Nesse instituto de investigação privado (o primeiro em Portugal, pois longe vinham os tempos das Fundações Calouste Gulbenkian e Champalimaud) haveria de ser criado um notável Laboratório de Bioquímica dirigido por Kurt Jacobsohn (1904 - 1991),  químico alemão de origem judaica exilado formado em Berlim e exilado em Portugal em 1929, que, depois de ter trabalhado durante muitos anos no nosso país, acabou por se retirar para Israel.  Athias colaborou ainda com o Instituto Português para o Estudo do Cancro, criado em 1923 pelo médico Francisco Gentil (1878 - 1964), ao serviço do qual efectuou viagens de estudo internacionais. Em 1942 dirigiu o Instituto Português de Oncologia, criado na sequência do anterior.

Para além do seu trabalho de investigação laboratorial, Athias dedicou-se com entusiasmo ao ensino da Histologia Médica, tendo começado por ministrar um curso de técnicas histológicas para médicos. Esse curso desencadeou uma carreira científica relevante na introdução das técnicas de investigação experimental no ensino e na investigação biomédica em Portugal. Em 1919 foi nomeado director do Instituto de Fisiologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde criou uma escola de investigação permeada pela sua estratégia de renovação da Medicina portuguesa. Nessa escola  sobressaiu a acção do seu maior discípulo, Augusto Celestino da Costa (1884-1956) , professor da Faculdade de Medicina de Lisboa de 1911 a 1947, especialista em Histologia e Embriologia, que se notabilizou como defensor da introdução da investigação científica nas Universidades portuguesas, tendo dedicado boa parte da sua vida a tarefas de gestão do sistema científico português (foi presidente entre  1934 e 1936  da Junta de Educação Nacional  e de  1936 a 1942  da instituição que lhe sucedeu, o Instituto para a Alta Cultura, as duas na base dos actuais Instituto Camões e Fundação para a Ciência e Tecnologia). Antes de Celestino da Costa, em 1931, Athias foi Presidente da Junta de Educação Nacional.

Mark Athias fundou em 1907, com Miguel Bombarda, Celestino da Costa e o biólogo portuense Augusto Nobre (1865 - 1946), a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, SPCN,  e, em 1920, com Celestino da Costa e o médico portuense Abel Salazar (1889 - 1946) a Sociedade Portuguesa de Biologia, SPB,  as duas ainda hoje existentes, sendo as  mais antigas sociedades científicas em Portugal nessas áreas (a primeira é albergada na Faculdade de Ciências de Lisboa e a segunda no Instituto Rocha Cabral). A SPCN, proposta no XV Congresso Internacional de Medicina, foi administradora a partir de 1909 do Aquário Vasco da Gama, em Algés, criado pela Sociedade de Geografia de Lisboa em 1896, tendo aí fundado a Estação de Biologia Marítima. Dados os interesses oceanográficos do Rei. D. Carlos não admira que ele tenha sido escolhido para primeiro presidente de honra. Entre os seus primeiros sócios honorários estiveram o botânico de Coimbra Júlio Henriques (1838 - 1928) e Ramón y Cajal. A SPB, que começou por se chamar Reunião Biológica de Lisboa e de início esteve ligada administrativamente à primeira, foi uma filial da Societé de Biologie de Paris, fundada em 1848 pelo fisiologista Claude Bernard (1813-1878). As duas sociedades portuguesas desenvolveram políticas editoriais, publicando revistas especializadas com avaliação por pares à semelhança do que já se fazia no estrangeiro, que visaram acima de tudo a consolidação da comunidade científica portuguesa e a sua internacionalização: a SPB publicou, a partir de 1920, os Archives Portugaises de Sciences Biologiques, publicados a partir de 1920, revista que foi sucedida em 1940 pelo Bulletin de la Societé Portugaise de Sciences Naturelles). Em 1941 realizou-se em Lisboa, com o apoio daquelas sociedades, o I Congresso Nacional das Ciências Naturais.  Athias foi ainda sócio correspondente da Academia de Ciências de Lisboa.

 Jubilado em 1945, atingida a idade regulamentar, o Professor Mark Athias faleceu no ano seguinte, com 71 anos, em Lisboa, nos tempos após a Segunda Guerra Mundial, quando em Portugal surgia alguma esperança, que não se veio a confirmar, de afirmação de um ideal democrático e com ele do desenvolvimento da ciência, como se verificou na Europa Ocidental.

O professor e investigador funchalense deixou 138 publicações, incluindo a sua dissertação inaugural na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (A Anatomia da Célula Nervosa, 1905), numerosos artigos científicos (a maior parte da sua produção bibliográfica, perfazendo 65 por cento dos títulos, que incidiram sobretudo nas áreas de Histologia, Histofisiologia, Histopatologia, Fisiologia e Química Fisiológica, devendo realçar-se trabalhos  sobre endocrinologia do ovário e sobre a influência das hormonas na evolução dos tumores), artigos didácticos (guias dos trabalhos práticos de fisiologia e de química fisiológica didácticos destinados aos alunos da Faculdade de Medicina e manuais como, entre outros, o Manual de Fisiologia, Lisboa: J. Rodrigues, 1941), obras de divulgação científica (biografias científicas, entre outras, do rei D. Carlos, de  Miguel Bombarda e de Ramón y Cajal, e o livro escrito em colaboração O Problema do Cancro, Lisboa: Biblioteca Cosmos, 1941), várias conferências como aquelas que proferiu no Instituto Bento de Rocha Cabral) e relatórios diversos (incluindo relatos de viagens e de actividades de instituições onde trabalhou). Entre as suas obras merece destaque por sumariar a sua obra científica o livro Introdução do Método Experimental e suas Principais Aplicações às Ciências Médicas e Biológicas em Portugal (Coimbra: Congresso da Actividade Científica Portuguesa, 1940). Ver uma lista de publicações em http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p41.html

Há hoje uma rua com o seu nome em Lisboa no Lumiar.

Pode-se considerar Mark Athias um pioneiro em Portugal da Biomedicina por, inspirado em ideias que recolheu em França, ter chamado a atenção dos médicos portugueses para o papel da célula, alvo da Biologia Celular, quando antes o foco estava no órgão, e ter prenunciado a importância que, dentro da célula, haveria mais tarde de assumir a molécula, alvo da Medicina Molecular. Defensor das metodologias experimentais, soube chamar a si estudantes e fazer discípulos, deixando por isso uma escola, a Escola de Histologia Portuguesa, feito raro entre nós (conseguiu-o na mesma época também na Medicina António de Egas Moniz, 1874-1955, o nosso até agora único Nobel nas ciências). Conseguiu cruzar instituições, algo difícil num país onde os organismos, públicos e privados, trabalham normalmente de costas voltadas. Obedecendo sempre ao seu impulso congregador, fundou duas importantes associações na Biologia, uma área que até então tinha permanecido relativamente apartada da Medicina mas que hoje sabemos estar intimamente relacionada com ela. Contribuiu para o crescimento e afirmação da ciência em Portugal pela procura de padrões internacionais, designadamente ao defender a união fecunda entre a universidade e a investigação científica que o visionário William Humboldt já tinha proposto e proselitado no alvorecer do século XIX, ao fundar em 1810 a Universidade de Berlim.
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Referências:

- Manuel Valente Alves, História da Medicina em Portugal. Origens, ligações e contextos, Porto: Porto Editora, 2014.
- Isabel Amaral, A emergência da bioquímica em Portugal: As escolas de investigação de Mark Athias e Kurt Jacobsohn, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia.
- Isabel Amaral,  Marck Anahory Athias (1875-1946),   http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p41.html#anchor4  (consultada em Dezembro de 2014)
- Fichas bibliográficas da responsabilidade da Universidade de Lisboa: http://memoria.ul.pt/index.php/Athias,_Marck e http://coleccoes-digitalizadas.fm.ul.pt/repo/professores/marck_athias.pdf (consultadas em Dezembro de 2014)
- C. Fiolhais, História da Ciência em Portugal, Lisboa: Arranha Céus, 2013, 2.ª edição revista 2015.
- Maria Eduarda Gonçalves e João Freire (coordenadores). Biologia e Biólogos em Portugal. Ensino, Emprego e Sociedade: Lisboa: Esfera do Caos, 2009.
- Manuel Machado Macedo, História da Medicina Portuguesa no Século XX, Lisboa: CTT, 1999.


Carlos Fiolhais
(Professor de Física da Universidade de Coimbra)


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