Minha entrada sobre o médico madeirense e Mark Athias, que saiu no vol. 1 do Grande Dicionário Enciclopédico "Madeira Global", que acaba de sair na Theia (eds. José EDuardo Franco e Cristina Trindade):
Mark Anahory Athias,
médico nascido no Funchal de uma família judaica (o seu pai era director de um
banco), foi professor universitário na Universidade de Lisboa, investigador em Ciências Biomédicas
e um pioneiro da Histologia e da Bioquímica em Portugal.
Foi bastante jovem
estudar para Paris, em cuja universidade se licenciou em Medicina no ano de
1897. Permaneceu na capital francesa, encontrando emprego num laboratório de
Histologia. Os seus trabalhos, premiados pela Faculdade de Medicina de Paris,
permitiram-lhe estagiar com diversos especialistas de Histologia e de Química,
entre os quais, a partir de 1894, o professor de Anatomia e Histologia Mathias-Marie Duval (1844 – 1907). Nos seus estudos foi muito influenciado
pelas ideias então muito discutidas de histofisiologia nervosa do médico Santiago
Ramón y Cajal (1852-1934), o único Prémio Nobel espanhol nas áreas das ciências
(recebeu-o em 1906, pelas suas investigações relativas ao sistema nervoso
realizadas em 1888). Apesar do anti-semitismo que se vivia em França nessa
época na sequência do famoso caso Dreyfus (como ficou conhecida a polémica à
volta do julgamento do capitão de artilharia francês Alfred Dreyfus, que, em
1894, foi injustamente acusado e condenado por alta traição, tendo padecido
cinco anos de presídio numa ilha ultramarina) Athias concorreu a um lugar no
laboratório parisiense onde trabalhava. Mas foi preterido por um colega francês.
Completada a sua
formação, e fracassada a intenção de se fixar em Paris, o médico regressou ao
Funchal tendo-se, em 1903, instalado em Lisboa. Ai , a convite do médico Miguel Bombarda
(1851-1910), que com ele partilhava a simpatia pelas ideias de Ramón y Cajal, foi
nomeado director do Laboratório de Histologia do Hospital de Rilhafoles (designado,
desde 1911, Hospital de Miguel Bombarda). Essa foi uma época de profunda renovação da
Medicina portuguesa, com a realização no novo edifício do Campo de Santana do
XV Congresso de Internacional de Medicina (onde Ramón y Cajal apresentou
comunicação) e com a criação, com base na Escola Médico-Cirúrgica, da Faculdade
de Medicina de Lisboa, impregnada pelo espírito positivista do movimento
republicano. A nova geração médica ficou conhecida por “geração de 1911” .
Athias soube
aproveitar não apenas as instalações e serviços da Faculdade de Medicina, mas
também de outras instituições. Dirigiu nessa altura o Serviço de Raiva do Instituto
Bacteriológico, fundado em 1892 por um outro médico madeirense, Luís de Câmara
Pestana (1863 – 1899), como serviço especializado do Hospital de S. José, e o
Instituto Pasteur de Lisboa, ligado ao de Paris, estabelecimento que
comercializava produtos médicos. Colaborou activamente com o Instituto Bento de
Rocha Cabral, fundado com base numa
doação deixada em testamento pelo multimilionário português com esse nome que
fez fortuna no Brasil e morreu em 1921
(o Instituto ainda hoje existe no Rato, embora apenas restrito a
actividades de história e divulgação). O primeiro director desta instituição,
escolhido pelo próprio Rocha Cabral. foi o médico Matias Ferreira de Mira ( 1875- 1953), professor de Química Fisiológica da Faculdade
de Medicina da Universidade de Lisboa, amigo e colaborador de Athias. Nesse instituto de investigação privado (o
primeiro em Portugal, pois longe vinham os tempos das Fundações Calouste
Gulbenkian e Champalimaud) haveria de ser criado um notável Laboratório de
Bioquímica dirigido por Kurt Jacobsohn (1904 - 1991), químico alemão de origem judaica exilado formado
em Berlim e exilado em Portugal em 1929, que, depois de ter trabalhado durante muitos
anos no nosso país, acabou por se retirar para Israel. Athias colaborou ainda com o Instituto
Português para o Estudo do Cancro, criado em 1923 pelo médico Francisco Gentil
(1878 - 1964), ao serviço do qual efectuou viagens de estudo internacionais. Em
1942 dirigiu o Instituto Português de Oncologia, criado na sequência do
anterior.
Para além do seu
trabalho de investigação laboratorial, Athias dedicou-se com entusiasmo ao
ensino da Histologia Médica, tendo começado por ministrar um curso de técnicas
histológicas para médicos. Esse curso desencadeou uma carreira científica
relevante na introdução das técnicas de investigação experimental no ensino e
na investigação biomédica em
Portugal. Em 1919 foi nomeado director do Instituto de
Fisiologia da Faculdade de Medicina de Lisboa, onde criou uma escola de
investigação permeada pela sua estratégia de renovação da Medicina portuguesa.
Nessa escola sobressaiu a acção do seu
maior discípulo, Augusto Celestino da Costa (1884-1956) , professor
da Faculdade
de Medicina de Lisboa de 1911 a 1947,
especialista em Histologia e Embriologia, que se
notabilizou como defensor da introdução da investigação científica nas Universidades
portuguesas, tendo dedicado boa parte da sua vida a tarefas de gestão do
sistema científico português (foi presidente entre 1934 e 1936 da Junta de Educação
Nacional e de 1936 a 1942 da instituição que
lhe sucedeu, o Instituto para a
Alta Cultura, as duas na base dos actuais Instituto
Camões e Fundação para a Ciência e Tecnologia). Antes
de Celestino da Costa, em 1931, Athias foi Presidente da Junta de Educação
Nacional.
Mark Athias fundou
em 1907, com Miguel Bombarda, Celestino da Costa e o biólogo portuense Augusto
Nobre (1865 - 1946), a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, SPCN, e, em 1920, com Celestino da Costa e o médico
portuense Abel Salazar (1889 - 1946) a Sociedade Portuguesa de Biologia,
SPB, as duas ainda hoje existentes,
sendo as mais antigas sociedades
científicas em Portugal nessas áreas (a primeira é albergada na Faculdade de
Ciências de Lisboa e a segunda no Instituto Rocha Cabral). A SPCN, proposta no
XV Congresso Internacional de Medicina, foi administradora a partir de 1909 do
Aquário Vasco da Gama, em Algés, criado pela Sociedade de Geografia de Lisboa
em 1896, tendo aí fundado a Estação de Biologia Marítima. Dados os interesses
oceanográficos do Rei. D. Carlos não admira que ele tenha sido escolhido para
primeiro presidente de honra. Entre os seus primeiros sócios honorários
estiveram o botânico de Coimbra Júlio Henriques (1838 - 1928) e Ramón y Cajal.
A SPB, que começou por se chamar Reunião Biológica de Lisboa e de início esteve
ligada administrativamente à primeira, foi uma filial da Societé de Biologie de
Paris, fundada em 1848 pelo fisiologista Claude Bernard (1813-1878). As duas
sociedades portuguesas desenvolveram políticas editoriais, publicando revistas
especializadas com avaliação por pares à semelhança do que já se fazia no
estrangeiro, que visaram acima de tudo a consolidação da comunidade científica
portuguesa e a sua internacionalização: a SPB publicou, a partir de 1920, os Archives Portugaises de Sciences Biologiques,
publicados a partir de 1920, revista que foi sucedida em 1940 pelo Bulletin de la Societé Portugaise
de Sciences Naturelles). Em 1941 realizou-se em Lisboa, com o apoio
daquelas sociedades, o I Congresso Nacional das Ciências Naturais. Athias foi ainda sócio correspondente da
Academia de Ciências de Lisboa.
Jubilado em 1945, atingida a idade
regulamentar, o Professor Mark Athias faleceu no ano seguinte, com 71 anos, em
Lisboa, nos tempos após a Segunda Guerra Mundial, quando em Portugal surgia
alguma esperança, que não se veio a confirmar, de afirmação de um ideal
democrático e com ele do desenvolvimento da ciência, como se verificou na
Europa Ocidental.
O professor e
investigador funchalense deixou 138 publicações, incluindo a sua dissertação
inaugural na Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa (A Anatomia da Célula Nervosa, 1905), numerosos artigos científicos
(a maior parte da sua produção bibliográfica, perfazendo 65 por cento dos
títulos, que incidiram sobretudo nas áreas de Histologia, Histofisiologia, Histopatologia, Fisiologia e Química
Fisiológica, devendo realçar-se trabalhos sobre endocrinologia do ovário e sobre a
influência das hormonas na evolução dos tumores), artigos didácticos (guias dos trabalhos práticos de fisiologia e de química fisiológica didácticos destinados aos alunos da Faculdade de Medicina e manuais como,
entre outros, o Manual de Fisiologia,
Lisboa: J. Rodrigues, 1941), obras
de divulgação científica (biografias
científicas, entre outras, do rei D. Carlos, de
Miguel Bombarda e de Ramón y Cajal, e o livro escrito em colaboração O Problema do Cancro, Lisboa: Biblioteca
Cosmos, 1941), várias conferências como aquelas que proferiu no Instituto Bento
de Rocha Cabral) e relatórios
diversos (incluindo relatos de viagens e de actividades de instituições onde
trabalhou). Entre as suas obras merece destaque por sumariar a sua obra
científica o livro Introdução
do Método Experimental e suas Principais Aplicações às Ciências Médicas e
Biológicas em Portugal (Coimbra:
Congresso da Actividade Científica Portuguesa, 1940). Ver uma lista de publicações em http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p41.html
Há hoje uma rua com o seu nome em Lisboa no Lumiar.
Pode-se considerar Mark Athias um pioneiro em Portugal da Biomedicina por,
inspirado em ideias que recolheu em França, ter chamado a atenção dos médicos
portugueses para o papel da célula, alvo da Biologia Celular, quando antes o
foco estava no órgão, e ter prenunciado a importância que, dentro da célula,
haveria mais tarde de assumir a molécula, alvo da Medicina Molecular. Defensor
das metodologias experimentais, soube chamar a si estudantes e fazer
discípulos, deixando por isso uma escola, a Escola de Histologia Portuguesa,
feito raro entre nós (conseguiu-o na mesma época também na Medicina António de
Egas Moniz, 1874-1955, o nosso até agora único Nobel nas ciências). Conseguiu
cruzar instituições, algo difícil num país onde os organismos, públicos e
privados, trabalham normalmente de costas voltadas. Obedecendo sempre ao seu
impulso congregador, fundou duas importantes associações na Biologia, uma área
que até então tinha permanecido relativamente apartada da Medicina mas que hoje
sabemos estar intimamente relacionada com ela. Contribuiu para o crescimento e
afirmação da ciência em Portugal pela procura de padrões internacionais,
designadamente ao defender a união fecunda entre a universidade e a
investigação científica que o visionário William Humboldt já tinha proposto e
proselitado no alvorecer do século XIX, ao fundar em 1810 a Universidade de
Berlim.
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Referências:
- Manuel Valente Alves, História da Medicina em Portugal. Origens,
ligações e contextos, Porto: Porto Editora, 2014.
- Isabel Amaral, A emergência da bioquímica em Portugal: As escolas de
investigação de Mark Athias e Kurt Jacobsohn, Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian e Fundação para a Ciência e Tecnologia.
- Isabel
Amaral, Marck
Anahory Athias (1875-1946), http://cvc.instituto-camoes.pt/ciencia/p41.html#anchor4 (consultada em Dezembro de 2014)
- Fichas bibliográficas da responsabilidade
da Universidade de Lisboa: http://memoria.ul.pt/index.php/Athias,_Marck
e http://coleccoes-digitalizadas.fm.ul.pt/repo/professores/marck_athias.pdf
(consultadas
em Dezembro de 2014)
- C. Fiolhais, História da Ciência em Portugal, Lisboa: Arranha
Céus, 2013, 2.ª edição revista 2015.
- Maria
Eduarda Gonçalves e João Freire (coordenadores). Biologia e Biólogos em
Portugal. Ensino, Emprego e Sociedade: Lisboa: Esfera do Caos, 2009.
- Manuel Machado Macedo, História da Medicina Portuguesa no Século
XX, Lisboa: CTT, 1999.
Carlos Fiolhais
(Professor de Física da Universidade de Coimbra)
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