terça-feira, 11 de outubro de 2016

Os Jesuítas em Portugal e a ciência: Continuidades e rupturas (Séculos XVI-XVIII)

Extracto do artigo "Os Jesuítas em Portugal e a ciência: Continuidades e rupturas (Séculos XVI-XVIII)", escrito por mim e por José Eduardo Francom, que acaba de sair na revista Brotéria (183, pp. 9-28):

A Companhia de Jesus, fundada em 1534 por Santo Inácio de Loyola, que se instalou em Portugal em 1540, ano da sua confirmação pelo Papa, assumiu um papel relevante na Ciência e na Cultura, não só na metrópole mas também no vasto Império português, ao longo de um tempo prolongado, antes de ter sido extinta por acção do Marquês de Pombal, em 1759, uma acção que haveria de levar em 1773 à sua extinção universal pelo Papa franciscano Clemente XIV. [1]

Os Jesuítas foram rápidos e diligentes intermediários na chegada da Revolução Científica a Portugal e ao mundo. Foram eles que trouxeram para Portugal os métodos e as ideias de Galileu, foram eles que asseguraram durante mais de século e meio o funcionamento de uma brilhante escola de Matemática em Lisboa (a Aula da Esfera) e foram eles que levaram para o Oriente a nova ciência que tinha despertado na Europa, que incluía o uso de telescópios e de relógios mecânicos.

Nesse processo de globalização, valeu a Portugal no século XVI a sua posição geoestratégica na ponta da Europa: Lisboa era o único porto de onde então se partia para o Brasil, para a Índia, para a China e para o Japão. Com a sua forte missão evangelizadora, a Companhia de Jesus não demorou a chegar a Portugal.

No grupo inicial dos companheiros de Santo Inácio de Loyola estavam o português Simão Rodrigues e o basco Francisco Xavier. O primeiro ficou a organizar a Ordem em solo lusitano enquanto o segundo embarcava para o Oriente, onde veio a ganhar jus à santidade. Foi em Portugal que se estabeleceram os primeiros colégios da nova Ordem religiosa. O Colégio de Jesus em Coimbra
foi fundado em 1542. Nesse mesmo ano foi fundado também em Coimbra o Colégio das Artes, mas, passados seis anos, esta escola, que começou por ser gerida por mestres bordaleses, eivados do humanismo renascentista, foi entregue pela coroa aos Jesuítas, que construíram um novo edifício na Alta da Cidade, ao lado do Colégio de Jesus, formando  um amplo complexo, que esteve ligado por um refeitório comum.

Os dois colégios, com exceção da Igreja (hoje igreja diocesana, conhecida por Sé Nova), pertencem atualmente à Universidade de Coimbra. Os Colégios de Jesus e das Artes foram sítios de formação de gerações não só de Jesuítas como, em geral, de jovens que iam ingressar na Universidade e que ali faziam os estudos preparatórios.

Um dos estudantes mais notáveis do Colégio das Artes foi o jesuíta alemão Christophoro Clavius (1538-1612), que, tendo estudado durante cinco anos em Portugal (entre 1555 e 1560), haveria de se tornar astrónomo do Papa, sendo hoje reconhecido como o mais importante astrónomo do mundo entre Copérnico e Galileu e um fundador de uma escola matemática que teve um raio de acção global [2]. Foi ele um dos autores da Reforma do Calendário Gregoriano, que entrou em vigor nos países católicos, Portugal incluído, em 24 de Fevereiro de 1582. Foi para servirem em primeiro lugar no Colégio nas Artes que foram impressos entre 1592 e 1606 os Conimbricenses, comentários a Aristóteles que ganharam fama mundial. [3]

Em Lisboa os Jesuítas estabeleceram-se primeiro em Alfama, no Colégio de Santo Antão-o-Velho (a partir de 1542, o mesmo ano da fundação do Colégio de Jesus) e, depois, em 1579, transferiram-se para o Colégio de S. Antão-o-Novo, onde hoje é o Hospital de S. José, e onde, de 1590 a 1759, funcionou a Aula da Esfera, um curso de Matemática onde ensinou uma elite de professores Jesuítas [4], que incluiu muitos estrangeiros, em resultado da intensa circulação dos Jesuítas na sua rede de escolas, circulação essa beneficiada pelo facto de existir uma orientação pedagógica unificada. Em Évora os Jesuítas estabeleceram-se em 1559 no Colégio do Espírito Santo, onde foi e ainda hoje é a Universidade de Évora, que, como todos os outros estabelecimentos jesuítas, foi encerrado pela força das armas em 1759, precisamente ao fim de dois séculos de funcionamento. A Universidade de Évora, no seu primeiro período, foi uma escola inteiramente jesuíta. [5]

Neste trabalho de síntese, descreveremos sumariamente a ação científica dos Jesuítas, em Portugal e na província portuguesa da Ordem, entre os séculos XVI e XVIII, procurando identificar as principais linhas de continuidade assim como os principais eventos de rutura. Centramo-nos na matemática, astronomia, física e química.

Se é certo que a matriz pedagógica dos Jesuítas sempre foi o aristotelismo, pedra angular da escolástica medieval, não é menos certo que os Jesuítas não ficaram de modo nenhum imunes aos ventos de mudança trazidos pela Revolução Científica, não sendo inteiramente justa a fama de conservadorismo científico e filosófico que a forte propaganda pombalina fez abater sobre eles. [6] Muitos Jesuítas foram porta-vozes, em Portugal e no mundo,
da modernidade científica, protagonizando a quebra da tradição científica. O uso do telescópio galilaico em Portugal e a sua introdução no Oriente constitui um bom exemplo. [7]

(...)

NOTAS

[1] Para uma visão de conjunto da história da Companhia ver a nossa obra recente: José Eduardo
Franco e Carlos Fiolhais, Jesuítas, Construtores da globalização: Uma história da Companhia
de Jesus, CTT - Correios de Portugal, Lisboa, 2016. Para um resumo da história da ciência em
Portugal, incluindo a acção dos Jesuítas, ver Carlos Fiolhais e Décio Martins, Breve História
da Ciência em Portugal, Imprensa da Universidade de Coimbra e Gradiva, Coimbra, 2010, e
Carlos Fiolhais, História da Ciência em Portugal, Arranha Céus, Lisboa, 2013.
[2] Ugo Baldini, «A escola de Christoph Clavius: Um agente essencial na primeira globalização
da matemática europeia», in Carlos Fiolhais, Décio R. Martins e Carlota Simões (coords.), História
da Ciência Luso-Brasileira: Coimbra entre Portugal e o Brasil, Imprensa da Universidade,
Coimbra, 2013.
[3] Cf. Cristiano Casalini, Aristóteles em Coimbra. Cursus Conimbricensis e a educação no Collegium  Artium, Imprensa da Universidade, Coimbra, 2016.
[4] Henrique Leitão (Coord.), Estrelas de Papel. Livros de Astronomia dos séculos XIV a XVI,
Biblioteca Nacional de Portugal, Lisboa, 2008.
[5] Sobre a primeira Universidade de Évora ver os estudos numa obra que assinalou os 450
anos da sua fundação: Sara Marques Pereira e Francisco Lourenço Vaz (Coord.), Universidade
de Évora (1559-2009): 450 Anos de Modernidade Educativa, Chiado, Lisboa, 2012, passim.
[6] Cf. João Pereira Gomes, Obra Seleta – Os Jesuítas e a Ciência em Portugal: Debates, estereótipos
e conhecimento científico, Henrique Leitão e José Eduardo Franco (coords.), Esfera do
Caos, Lisboa, 2011.
[7] Cf. Henrique Leitão, «Galileo’s telescopic observations in Portugal», in José Montesinos y
Carlos Solís (eds.), Eurosymposium Galileo 2001, Orotava, 2001, pp. 903-913.

Sem comentários:

NOVOS CLASSICA DIGITALIA

  Os  Classica Digitalia  têm o gosto de anunciar 2  novas publicações  com chancela editorial da Imprensa da Universidade de Coimbra. Os vo...