sexta-feira, 21 de outubro de 2016

A ENTREVISTA DE FERNANDA CÂNCIO A UMA PROFESSORA DO 1.º CICLO DO BÁSICO


“O que em sociedade desagrada aos grandes espíritos 
é a igualdade de direitos e, portanto, de pretensões, 
em face da desigualdade de capacidades, 
de realizações (sociais) dos outros. 
A chamada boa sociedade admite méritos de todo o tipo, 
menos os intelectuais: estes chegam a ser contrabando”.

Arthur Schopennauer

No Dia do Professor, Fernanda Câncio, com o apelativo título “Faltam professores com boa disposição e alegria”, traça o perfil da docência com a ajuda de uma professora  que, aos 59 anos de idade, diz ser preciso ‘sangue novo’ nas escolas” (Diário de Notícias, 05/10/2016).

Fundamenta-se esta peça jornalística no testemunho de Teresa Santos Costa, com 36 anos de docência do 1.º ciclo do ensino básico e, há  quatro anos, ‘professora de apoio’, por ‘achar a função mais adequada à sua idade e por se sentir muito cética, muito desencantada com o momento presente por entender que a escola se tornou numa coisa pouco interessante”. E logo  acrescenta que esse desencanto  possa ser fruto da idade dos professores, como em outras profissões, mas quem sai prejudicado são os alunos: “é aborrecido quando há um número significativo de professores que não estão satisfeitos, estão aborrecidos” (sic.). E aqui se encontra fundamento para  a falta de boa disposição e alegria dos professores “velhotes”! “

A professora em causa, nasceu em Moçambique e veio para Portugal em 1974, aos 16 anos, tendo tirado  o curso do magistério primário (curso  de ensino médio), tendo obtido, posteriormente,  a licenciatura e o mestrado e, ipso facto,  encontra-se hoje no topo de uma carreira docente que mete no mesmo saco docentes do 1.º ciclo do básico e professores do ensino secundário  “ao contrário do que se passa  na generalidade  dos países da OCDE”, como ela própria reconhece. Pelo que julgo saber (que me corrijam se eu estiver enganado), isto passa-se não na generalidade, mas na totalidade dos países deste organismo internacional. A única razão que concedo para o desencanto da entrevistada  pode residir no facto de ter antigas colegas do magistério do 1.º ciclo do básico que,  até uma determinada altura, se reformaram com 32 anos de serviço e 52 anos de velhice mais do que precoce!

Para não serem  tidos como excepção os inúmeros artigos de opinião críticos por mim escritos, ao longo de anos, no “Público” e no blogue “De Rerum Natura”, tendo como leitmotiv a temática da profissão docente, trago à colação passagens de  “uma carta  ao director”, subscrita por  António Cândido Miguéis. Escreve ele, com o desassombro de uma escrita  bem fundamentada que corta a direito:
“Actualmente, existe uma situação no sistema educativo, pós-25 de Abril, que muita gente tem receio de aflorar pelo melindre, pelo desconforto e pelo conflito que, eventualmente, poderá provocar em ambiente laboral, agora que existem os Agrupamentos Verticais (adoro este designação), que mais não trouxeram do que confusão e burocracia, fazendo jus ao anexim de que ‘muita gente junta não se salva’.
(…) quem mais beneficiou com a revolução abrilina foi a classe dos professores primários, hoje designados, e bem, professores do 1.º ciclo. Se no regime autoritário do professor António O. Salazar já era uma classe simpática, respeitada e dignificada – lembremo-nos nas aldeias a ‘importância’ do sr. Cura, do médico e do professor primário, com o 25 de Abril ainda se tornaram mais simpáticos, mais respeitados (e ladinos) ao alcançarem a proeza de ingressar na Carreira Única, igualando (nalguns casos ultrapassando) e colocando-se ao nível do designado professor do liceu de outrora, que, nestes tempos ensandecidos, desceu de ‘importância’ e é um Zé-ninguém” (Público, 24 de Abril de 2010).
De idêntico  modo, vinte anos atrás, foi com uma paz de alma muito reconfortante que li a belíssima crónica da festejada académica Clara Pinto Correia, sobre os professores do liceu, quiçá, porque “o  mundo das palavras cria o mundo das coisas” (Lacan), em que ela escreve  que “mesmo que o liceu, estabelecimento de ensino que ministrava do 5.º  ao 12.º anos de escolaridade, em terminologia dos nossos dias, seja uma palavra que já não se usa, dá jeito, no caso vertente, para simplificar o discurso”.

Transcrevo um pequeno trecho do seu exaltatório e premonitório texto, intitulado “O render dos heróis”:
“A barbárie não anda longe. Nunca andou. É contra o seu fundo de trevas que se desenha o brilho da civilização e a escuridão total desce sobre a floresta. É cíclico. Já aconteceu antes. Mais que uma vez. Não temos nenhuma razão, pelo contrário, para pensar que não a acontecer. Para evitar que assim sejas temos nos professores do liceu a mais importante das nossas arma. Devíamos beijar-lhes as fímbrias do manto” (Diário de Notícias, 22/10/1955).
Refere, ainda, esta professora do 1.º ciclo do  ensino básico que, após o seu curso do magistério primário, obteve uma licenciatura e um mestrado que dava acesso ao topo da carreira docente. Colho de Adam Smith que  “a ambição dos homens é colherem aquilo que nunca plantaram”. Ou seja, um percurso académico plantado sem oportunismos de qualquer espécie!

Ora, para além de um grande facilitismo  de que se revestiram esses diplomas, outorgados por determinadas escolas de ensino superior privado, que distribuíam diplomas qual duvidosa padaria que vende a granel pão de má qualidade e  mal cozido, debrucemo-nos com seriedade  sobre a realidade dos factos. Até ao recente congelamento das carreiras docentes, o acesso dos professores ao 10.º escalão era feito num processo avaliativo de arrepiante facilitismo. Ou seja, esse acesso dependia, apenas, de um pequeno relatório auto-avaliativo relativo à qualidade dos anos de serviço prestados  e da frequência de acções de formação meramente presenciais, por vezes, em temáticas nada relacionadas com as disciplinas ministradas. Não considerando os casos de indivíduos que entretanto faleceram ou desistiram da docência, tratava-se, portanto, de um processo de avaliação laxista em que a percentagem dos que chegavam ao 10.º escalão devia rondar os 100 por cento. Para uma maior clarificação desta situação, seria conveniente que essa percentagem constasse de dados oficiais devidamente publicitados!

Ou seja, todo este aberrante e inédito estatuto da Carreira Docente, arrancado a fórceps em parto demorado, desenrolou-se em reuniões, com o ministro da Educação da altura, politizadas até ao tutano pela Fenprof em nome de uma pretensa democracia que anulou todo e qualquer diferença e postergou  todo e qualquer valor talvez porque “en politique une absurdité n’est pas un obstacle”, como reconheceu Napoleão!

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