Início do livro "O jazz da Física" de Stephon Alexander, que acaba de sair na Gradiva:
"Ocorreu‑me por intuição e a música foi a força motriz por trás dessa intuição. A minha descoberta
resultou da minha percepção musical."
Albert Einstein (questionado sobre a sua teoria da relatividade)
"E, mais do que tudo, estimo as Analogias, os meus mais fidedignos mestres. Conhecem todos
os segredos da Natureza e não deveriam ser negligenciadas em Geometria."
Johannes Kepler
Os seres humanos são especiais. Onze mil milhões de anos após o nascimento do Universo, os oceanos efervescentes e ricos em minerais do planeta a que chamamos Terra tinham as condições ideais para gerar vida — um sobrevivente faminto, em mutação e evolução. Mesmo na última fase da vida do Universo, nós, seres humanos, crescemos a ponto de cultivar a Terra e de olhar os céus sem pruridos para perceber de onde viemos.
Todos os povos de todas as culturas já se interrogaram a respeito das suas origens e das origens do cosmos. Que espaço é este à nossa volta? De onde viemos? Sem dúvida que estas questões — que muitos de nós colocámos quando éramos crianças — continuam a ser algumas das mais prementes em ciência. Perguntas como estas denotam a nossa curiosidade inata sobre as nossas origens e, como fazem de resto as perguntas, os limites do nosso conhecimento. Durante milénios, apenas conseguimos responder a estas perguntas usando mitos. Mas, desde a Revolução Científica, temos tentado colocar os mitos de lado, deixando a exploração das origens dos seres humanos e do Universo a cargo dos cientistas e das suas metodologias baseadas em factos concretos. Os cosmólogos modernos, ainda que munidos de elegantes equações e experiências de tecnologia avançada, podem ser considerados os criadores dos mitos no nosso tempo. Apesar da nossa matemática precisa e das experiências cuidadas, surgiram novas surpresas na física e cosmologia modernas que levaram os físicos mais competentes a recorrer ao mito para tentar explicar a alucinante informação que desvendaram sobre a natureza do Universo.
Houve tentativas heróicas de transmitir os conceitos subjacentes à cosmologia moderna a leitores leigos, mas os livros ficam sempre aquém da sua promessa de explicar quase tudo. Pôr em palavras temas como a relatividade geral e a mecânica quântica, quando eles são normalmente transmitidos através da linguagem matemática, é uma tarefa inglória. Estas equações complexas conseguem até confundir os físicos, eles próprios desafiados a compreender completamente ou a visualizar o que as suas fórmulas traduzem, facto que salienta a necessidade de encontrar outras formas de conceptualizar a estrutura do Universo através de imagens físicas ou de analogias claras. Descobri que os livros mais bem‑sucedidos em comunicar ideias são os que encontram as melhores analogias para espelhar a física. De facto, o raciocínio analógico será uma força motriz essencial ao longo deste livro.
Espero levar o leitor numa viagem em primeira mão ao processo de descoberta na investigação de física teórica. Veremos que, ao contrário da estrutura lógica inata à lei física, nas nossas tentativas de revelar novas perspectivas no nosso entendimento, temos frequentemente de embarcar num processo irracional, ilógico, por vezes repleto de erros e pensamento de improvisação. Embora seja importante, quer para músicos de jazz quer para físicos, lutar pela mestria técnica e teórica nas suas áreas, a inovação exige que ultrapassem o conjunto de competências que já dominam. O poder do raciocínio analógico é fundamental para inovar em física teórica. Com este livro, pretendo mostrar como a arte de encontrar as analogias certas nos pode ajudar a abrir novos caminhos e a atravessar o mundo quântico escondido até chegar à vasta superestrutura do nosso Universo.
Neste livro, a música será a analogia que nos ajudará não só a compreender boa parte da física e cosmologia modernas, mas também a desvendar alguns dos recentes mistérios com que os físicos se defrontam. Mesmo enquanto escrevia, este raciocínio analógico ajudou‑me a descobrir uma abordagem nova para um problema antigo e por solucionar da cosmologia do início do Universo. Uma das questões principais para compreender esse problema, e uma grande questão em aberto da cosmologia, é saber como as primeiras estruturas emergiram de um jovem Universo vazio e indefinido. A forma intrincada como as leis fundamentais da física se articulam para criar e sustentar a estrutura global do Universo, responsável pela nossa própria existência, parece magia — não muito diferente da forma como o esqueleto da teoria da música deu origem a tudo, desde Brilha, Brilha Estrelinha a Interstellar Space, de Coltrane. Adoptando um foco interdisciplinar, inspirado por três grandes mentes (John Coltrane, Albert Einstein e Pitágoras), podemos começar a ver que o comportamento «mágico» do florescente cosmos se baseia em música.
Há cerca de uma década, estava sentado num café sombrio na rua principal de Amherst, Massachusetts, a preparar uma entrevista para um concurso a professor de Física na faculdade, quando fui assaltado por um estranho impulso. Encontrei uma cabine telefónica com uma lista telefónica local e consegui ganhar coragem para ligar a Yusef Lateef, um lendário músico de jazz, recentemente aposentado do Departamento de Música da Universidade de Massachusetts, em Amherst. Tinha algo para lhe dizer.
Como um viciado depois de mais uma dose, os meus dedos percorriam as páginas na ânsia de encontrar o número. Encontrei‑o. O refrescante vento do Outono de Nova Inglaterra batia no meu rosto enquanto ligava. Correndo o risco de me estar a impor de uma forma rude, deixei o telefone tocar durante algum tempo.
«Estou?», respondeu finalmente uma voz masculina.
«Olá, o Professor Lateef está?», perguntei.
«O Professor Lateef não está», disse a voz, de forma categórica.
«Poderia deixar‑lhe uma mensagem sobre o diagrama que John Coltrane lhe deu como presente de aniversário em 61? Acho que percebi o que significa.»
Houve uma longa pausa. «O Professor Lateef está aqui.»
Falámos durante cerca de duas horas sobre o diagrama que aparecia no seu aclamado livro Repository
of Scales and Melodic Patterns, uma compilação de escalas da Europa, Ásia, África e de todo o mundo. Expliquei‑lhe que achava que o diagrama se relacionava com uma outra área de estudo aparentemente díspar — a gravidade quântica — uma teoria grandiosa que pretendia unificar a mecânica quântica com a teoria da relatividade geral de Einstein. Disse a Lateef que me tinha apercebido de que o mesmo princípio geométrico que motivara a teoria de Einstein estava reflectido no diagrama de Coltrane. Einstein era um dos meus heróis. Assim como Coltrane e Lateef.
O Professor Lateef partilhou comigo alguma informação importante sobre o modo como o diagrama aproximava ciclos de quartas e quintas. Também se interessava muito por filosofia e física e deu‑me uma lição sobre o seu conceito de música «autofisiopsíquica», que é música do nosso eu físico, mental e espiritual. Este conceito iria ter um impacto fundamental na minha pesquisa subsequente sobre a relação entre a música e o cosmos. Lateef encorajou‑me e reiterou a minha esperança na existência de uma ligação profunda entre a música e a estrutura do Universo. Naquele dia, como se fosse uma imagem estereoscópica a ser focada, as minhas vidas paralelas de física e jazz uniram‑se, criando uma nova dimensão.
Coltrane era fascinado por Einstein e pelas suas ideias. Einstein era famoso por aquele que talvez seja o seu maior dom: a capacidade de transcender as limitações matemáticas com uma intuição física. Improvisava usando o que chamava Gedankenexperimente (a palavra alemã para experiências mentais), que lhe davam uma imagem mental do resultado de experiências que ninguém podia realizar. Por exemplo, Einstein imaginou como seria montar um feixe de luz. É preciso inspiração para fazer isto e ser bem‑sucedido. Outro recurso para Einstein era a música. Embora seja um facto pouco conhecido, Einstein tocava piano. Elsa, a sua segunda mulher, disse uma vez: «A música ajuda‑o quando está a pensar sobre as suas teorias. Vai para o escritório, volta, toca uns acordes no piano, anota qualquer coisa, volta para o escritório.» Por um lado, Einstein usava o rigor matemático e, por outro, a criatividade e a intuição. No fundo, era um improvisador, tal como o seu herói, Mozart. Einstein disse uma vez: «A música de Mozart é tão pura e bela que a vejo como um reflexo da beleza interior do Universo.»
O que a mandala de Coltrane me fez pensar foi que a improvisação é uma característica quer da música quer da física. De forma muito semelhante ao que Einstein fazia quando trabalhava nas suas experiências mentais, alguns improvisadores de jazz constroem padrões e formas mentais quando fazem solos. Suspeito que isto acontecia com Coltrane.
John Coltrane faleceu em 1967, dois anos depois de a radiação cósmica de fundo de microondas, uma relíquia do próprio big bang, ser descoberta por Arno Penzias e Robert Wilson. A descoberta aniquilou a teoria de um universo estático e confirmou a teoria de um universo em expansão, como previsto pela teoria da gravitação de Einstein. Entre os últimos álbuns que Coltrane gravou havia três intitulados Stellar Regions (Regiões Estelares), Interstellar Space (Espaço Interestelar), e Cosmic Sound (Som Cósmico). Coltrane brincava com a física na sua música e, incrivelmente, percebeu que a expansão cósmica era uma forma de antigravidade. Em combos de jazz, a força «gravitacional» vem do baixo e da bateria na secção rítmica. As músicas de Interstellar Space são uma mostra majestosa de solos de Coltrane a expandir‑se, libertando‑se da força gravitacional da secção rítmica. Era um músico inovador, com física nas pontas dos dedos. Einstein era um inovador em física, com música nas pontas dos dedos. No entanto, o que estavam a fazer não era novidade. Estavam ambos a reencenar a ligação entre a música e a física, conhecida há milhares de anos quando Pitágoras — o Coltrane do seu tempo — descobriu a matemática da música. A filosofia de Pitágoras tornou‑se «tudo é número» e quer a música quer o cosmos eram manifestações desta filosofia. Na matemática das órbitas dos planetas ecoava «a música das esferas», tocando uma harmonia com os tons de uma corda a vibrar.
(...)Stephon Alexander
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