Sebastião da Gama, o jovem poeta-professor ou professor-poeta, que nem trinta anos de vida teve para ser plenamente uma e outra coisa, dedicou o seu livro de 1951, Campo Aberto, a José Régio e a Virgílio Couto.
Esta dedicatória não pode deixar de se afigurar algo estranha, desequilibrada: um escritor de renome que não depende de Gama para ser recordado em paralelo com um metodólogo quase anónimo cuja invocação depende muito do legado de Gama.
Sem parecer dar conta que certas vidas se registam na memória colectiva e outras se esfumam nela, Sebastião da Gama prezava ambos com a mesma abnegação: se em Régio encontrou uma alma gémea de poeta; em Couto encontrou uma alma gémea de professor.
Porém, ao contrário dos poetas, os metodólogos ou os, agora denominados, orientadores de estágio, não deixam, em geral, obra escrita. A sua obra é efémera porque traduzida nas ideias e técnicas que vão trabalhando no dia-a-dia com os professores que ajudam a formar, os quais também raramente deixam obra material.
Mas Sebastião da Gama escreveu e na sua escrita, sobretudo no Diário, publicado postumamente em 1958, refere-se à experiência de estagiário, não se esquecendo de invocar o mestre da prática “de quem tão profundamente estimava a dedicação docente e o tino pedagógico”. Disse-o Hernâni Cidade, outro dos seus mestres, no caso na Faculdade de Letras de Lisboa, no prefácio a esse livro.
De Virgílio Couto, que também foi autor de manuais escolares, sabemos que, como metodólogo na Escola Veiga Beirão, em Lisboa, desenvolveu, pelo menos durante os anos quarenta e cinquenta, uma estratégia de formação de professores para o ensino técnico, à época, inovadora: para melhor pensar na acção docente e vir a melhorá-la, nada melhor do que escrever sobre ela num documento pessoal, designado por Diário.
Através do Diário de Sebastião da Gama perscrutamos essa estratégia de orientação:
11 de Janeiro de 1949. “Para começar o metodólogo falou connosco durante uma hora: De acordo com o que disse, vão ser as aulas de Português o que eu gosto que elas sejam: um pretexto para estar a conviver com os rapazes, alegremente e sinceramente (…). Depois, esta nota importantíssima: lembrar-se a gente de que deve aceitar os rapazes como rapazes; deixá-los ser (…). Houve nesta conversa uma palavra para guardar tanto como as outras, mais do que as outras: ‘O que quero principalmente é que vivam felizes’ ” (página 25).
11 de Fevereiro de 1949. “Chamou-me o metodólogo para me propor alguns trabalhos. Aceitas? Não aceitas? Dá-me liberdade plena e eu em geral aceito, porque são cheios de interesse" (página 43).
21 de Fevereiro de 1949 “(…) passei o resto da tarde com um colega e o meu metodólogo. Ele queria-nos sugerir, para o ano, umas sessões em que aos rapazes de noite se fosse lendo os Lusíadas. Precedidos de uma explicação dada nós, seriam declamados por alunos de dia os trechos mais importantes (…). Nós aceitámos o alvitre e vamos pensar na sua realização u em geral aceito, porque são cheios de interesse. Ó velhos, ó venerandos, ó encantadores professores de Português, que vai ser da língua e do bom gosto literário e do amor a Os Lusíadas dos rapazes de agora, a quem tão criminosamente escondem que ‘as armas e barões cantando espalharei’ é uma principal; ‘que por toda a parte’ é lugar onde?
A revolução continua – disse o metodólogo no primeiro dia" (página 55).
18 de Março de 1949. “Bem haja o metodólogo por esta ideia do diário. A gente assim pode olhar para trás e ver vida — tempo enchido com coração em lugar de com fórmulas. «Leitura e interpretação do trecho tal. — Faltei por doença. Exercício escrito». Tudo isto não nos diria nada; e como a gente tem memória fraca, olhava para o livro de ponto e era capaz de ter um angustiosa sensação de vazio. Com esta inovação, descobriu o nosso metodólogo nada mais nada menos do que a maneira de nos levar a fazer exame de consciência. E deixa-nos, ainda, um documento em que se regista o que está bem que se faça e o que está bem que se não torne. Além disso, como palavra puxa palavra, vou carreando para aqui coisas que me interessam (sombras da minha infância, luzes intensas dos meus últimos dias...) e o pó do tempo havia de velar um dia” (página 80).
25 de Maio de 1949. “Vá descansar – mandou o metodólogo – já sei de si o que tinha a saber. E eu vim. Quase não tive (nem tenho palavras para responder; nem soube clamar que levo os mocinhos atravessados na garganta. Vim” (página 139).
Referências bibliográficas:
Gama, S. (1993). Diário. Lisboa: Ática
Gama, S. (1951). Campo aberto. Edição não identificada
Herrero, J. (1951). Pedagogia de Sebastião da Gama: o “Diário” à luz da psicopedagogia. Lisboa: Editorial O Livro.
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2 comentários:
«ao Senhor Dr. Virgílio Couto» foi também dedicado um belíssimo poema: Louvor da poesia, que julgo inédito e aqui partilho
Sebastião da Gama
Louvor da poesia
Dá-se aos que têm sede,
não exige pureza.
Ah! Se fossemos puros,
p’ra melhor merecê-la!...
Sabe a terra, a montanhas,
caules tenros, raízes,
e no entanto desce
da Floresta dos Mitos!
Água tão generosa
como a que a gente bebe.
_ fuja dela Narciso
e quem não tenha sede.
Arrábida – 7.2.1950
Boa tarde.
Com vista à realização de um trabalho de Mestrado, gostaria de saber se alguém tem ou a forma de conseguir conteúdos acerca do Dr. Virgílio Couto. Biografia, CV, etc.
Ficaria muito agradecido que me enviassem para fernando.pires@sapo.pt
Obrigado.
Fernando Pires
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