quarta-feira, 5 de outubro de 2011
O NOBEL DA QUÍMICA E A CRISTALOGRAFIA
Post convidado de José António Paixão, professor de Física da Universidade de Coimbra e investigador do Centro de Difracção de Materiais por Raios X (na imagem padrão de difracção de um quase cristal):
O prémio Nobel da Química, hoje anunciado, atribuído a Daniel Shechtman pela sua descoberta dos quase-cristais, vem juntar-se à já longa lista de prémios Nobel atribuídos a descobertas relacionadas com a cristalografia. A cristalografia é uma ciência interdisciplinar que estuda os cristais – uma forma de organização da matéria com características peculiares ao nível do ordenamento atómico, bem visíveis nas belas simetrias exibidas pelas formas dos cristais. O primeiro prémio Nobel da Física, atribuído em 1901 a W. Roentgen pela descoberta dos raios-X, foi premonitório. Os raios-X permitiram o desenvolvimento da cristalografia moderna, que usa técnicas de difracção (com raios-X, mas também com electrões e com neutrões) como principal ferramenta analítica. Os prémios Nobel da Física dos anos 1914 e 1915 foram atribuídos aos pioneiros desta técnica, o alemão Max von Laue (1914), e os britânicos W.H. Bragg e W.L. Bragg (1915), pai e filho (o filho foi o mais novo Nobel da Física até agora!). Desde então, o número de prémios Nobel relacionados com a cristalografia não tem parado de crescer e está disperso por várias áreas científicas: Física, Química e Fisiologia e Medicina. Foi a cristalografia que nos deu a conhecer a estrutura em dupla hélice do DNA, da insulina, da vitamina B12, de várias enzimas, proteínas e do ribosoma. A União Internacional de Cristalografia gaba-se de ser a sociedade científica com maior número de prémios Nobel nos seus associados!
Mas a descoberta em 1984 dos quase-cristais por Daniel Shechtman caiu, na altura, como uma bomba na comunidade cristalográfica, uma vez que punha em causa um dos pilares da cristalografia. De facto, este físico tinha observado padrões de difracção com simetria pentagonal em cristais de uma liga de alumínio e manganês, algo que era incompatível com um empacotamento tridimensional periódico dos átomos – que era precisamente o que, na altura, se entendia por um cristal.
Shechtman teve grande dificuldade em publicar as suas observações, apesar da boa qualidade dos seus resultados experimentais. A maioria dos cristalógrafos acreditava que a explicação para os estranhos padrões de difracção seria a existência de defeitos de crescimento dos cristais a que se dá o nome de maclas. Mas Shechtman tinha examinado em pormenor os seus cristais e sabia que não havia nenhuma evidência para a ocorrência desse tipo de defeitos de crescimento. Entre os defensores da teoria da maclagem estavam nomes conceituados como Linus Pauling, duplo prémio Nobel e ele próprio um cristalógrafo muito conceituado, que rejeitou até ao final da sua vida outra interpretação. Mas a verdade acabou por se impor. A explicação para a existência de um padrão de difracção bem definido numa estrutura sem ordem tridimensional periódica veio, curiosamente, da Matemática. O matemático britânico Roger Penrose tinha investigado, na década de 70, um tipo de preenchimento aperiódico do plano por mosaicos com formas peculiares, que ficou conhecido por mosaico ou pavimento de Penrose. Alguns anos antes da descoberta de Shechtman, um cristalógrafo, Alan Mackay, tinha colocado a questão de saber se este tipo de mosaico aperiódico poderia dar origem a um padrão de difracção – e a resposta, que veio de uma experiência muito simples e convincente, realizada com um pedaço de cartão furado e um pequeno laser, foi afirmativa. Assim, não foi preciso esperar mais do que seis semanas após a publicação da descoberta da Shechtman na prestigiada Physical Review Letters, para que fosse publicada uma primeira teoria para a explicação do novo fenómeno, com base nas ideias de Penrose. Se os físicos ficaram, desde logo, entusiasmados, ainda demorou algum tempo para que estas novas ideias fossem plenamente aceites pelos cristalógrafos. Só em 1992 a União Internacional de Cristalografia alterou a sua definição de cristal para um “sólido que produz um padrão de difracção essencialmente discreto” e definiu “cristal aperiódico” (quase-cristal) como um cristal onde o ordenamento periódico tridimensional dos átomos está ausente. Mas a designação original de “quase-cristal” já estava popularizada e veio para ficar.
Hoje em dia já foram encontrados quase-cristais em mais de uma centena de sistemas intermetálicos, sendo que cerca de metade são compostos metaestáveis. Eles estão sobretudo presentes em ligas ternárias de alumínio que já tinham sido amplamente estudadas por muitos investigadores. É absolutamente certo que muitos cientistas, antes de Daniel Shechtman, já se teriam deparado com quase-cristais nas suas investigações, mas descartaram-nos como “amostras de má qualidade”, sem ensaiarem uma investigação mais profunda. Após o anúncio da descoberta, muitos foram os investigadores que encontraram quase-cristais em amostras relegadas para o fundo das gavetas.
Sendo os quase-cristais uma forma “peculiar” de ordenamento da matéria, os físicos foram os primeiros a acreditar que eles poderiam exibir propriedades extraordinárias. De facto, a quase-periodicidade tem consequências importantes para as propriedades electrónicas e para outras propriedades que envolvam, por exemplo, o espectro das vibrações dos átomos (fonões). Mas, na verdade, depois de um ímpeto inicial, o interesse por estes compostos tem vindo lentamente a diminuir, com excepção para as aplicações recentes na área da fotónica, que fizeram ressurgir este assunto. Por enquanto, e enquanto esperamos pelo desenvolvimento de aplicações nas áreas da fotónica e da optoelectrónica, o maior nicho de mercado dos quase-cristais está no seu uso como precipitados para endurecer alguns aços para aplicações especiais ou revestimentos, usados, por exemplo, em fritadeiras anti-aderentes.
Em Portugal, a cristalografia está razoavelmente desenvolvida, mas não parece haver actualmente actividade de investigação relevante em quase-cristais. As áreas de investigação com forte desenvolvimento são as da cristalografia das “grandes moléculas” de interesse biológico (por exemplo, proteínas), onde Portugal tem uma comunidade de excelência com relevância internacional. Também na área da cristalografia das pequenas moléculas e nas aplicações da cristalografia à ciências dos materiais, Portugal está bem representado. E a cristalografia ainda continuará, por certo, a contribuir para novas descobertas científicas de grande relevância.
José António Paixão
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