quinta-feira, 6 de outubro de 2011

Grandes livros de Pedagogia: Ratio Studiorum - 1

Tencionamos, como dissemos, dar conta, no De Rerum Natura, de livros de pedagogia que marcaram ou marcam na maneira como entendemos e conduzimos a educação escolar.

Não podíamos deixar de começar pela Ratio Studiorum da Companhia de Jesus. A razão encontramo-la na maravilhosa História do Ensino em Portugal (1996) de Rómulo de Carvalho, que considera este projecto pedagógico como "um verdadeiro monumento teórico e prático".

Para o apresentar, damos a palavra a Margarida Miranda, professora de Estudos Clássicos da Universidade de Coimbra, que, pelo estudo e
tradução que fez da Ratio, a conhece profundamente.


“Falar da Ratio Studiorum é falar de um texto fundador que permitiu o desenvolvimento de um sistema escolar de alcance internacional e europeu. A rede de colégios que os Jesuítas criaram em toda a Europa constituiu efectivamente um sistema escolar dotado de um plano de estudos e regulamento próprios, cuja existência se deveu a uma reflexão prévia que acompanhou 50 anos de experiência, em todas as províncias.

O cânone de estudos da Companhia era muito mais do que um regulamento de disciplina escolar. Era um verdadeiro projecto pedagógico, com a originalidade de resultar de uma prática testada durante décadas e com a autoridade que dela decorria.

A longa reflexão a que me refiro fez com que a versão definitiva da Ratio fosse precedida de três redacções sucessivas, com diferenças e semelhanças entre si. Enquanto as duas primeiras (1586/A e 1586/B) consistem numa espécie de tratado sobre os estudos superiores e inferiores, as duas seguintes (1591 e 1599) tomaram a forma de conjuntos de regras práticas para as diversas funções - embora respeitem os mesmos princípios pedagógicos enunciados nas versões anteriores, bem como na Parte IV das Constituições.

Se a primeira e a terceira redacção eram documentos provisórios para submeter à opinião das províncias, a segunda e a quarta constituíam redacções finais resultantes de uma revisão que pretendia atender às observações de cada província. O último texto, de 1599, vinha portanto substituir todos os anteriores, de tal maneira que o Padre Geral, Cláudio Acquaviva, mandou queimar todas as cópias das edições precedentes.

Foi portanto com base neste plano de estudos que os Jesuítas desenvolveram a sua actividade pedagógica e intelectual em todo o mundo, ao longo de cerca de dois séculos, até 1773, ano em que a Companhia foi extinta.

A Idade Média já conhecera outros planos de estudos de menor alcance, intitulados Ratio Studiorum, que se destinavam a pequenas comunidades religiosas e eclesiásticas (os Agostinianos, por exemplo). Mas a Ratio da Companhia de Jesus impunha-se desde logo por uma diferença: além de se destinar quer a futuros clérigos quer a leigos, num sistema de ensino mais alargado e gratuito, ela não se limitava a deliberar sobre a Filosofia e a Teologia (os estudos tradicionalmente mais próprios do estado clerical), mas passava a incluir também entre o curriculum de todos os estudantes o estudo das Humanidades e da Retórica.

A proposta pedagógica dos Jesuítas enfim amadurecida na Ratio Studiorum vinha transfigurar o programa escolástico medieval, com a introdução sistemática dos estudos de Humanidades e Retórica e a diferente valorização dos saberes que estava subjacente ao fenómeno do Humanismo. Assim, o programa humanístico do Renascimento (que incluía a Gramática, a Poesia, o Teatro, a Retórica e a História) não só ganhava cidadania nos estudos eclesiásticos, como se expandia à sociedade civil, aos leigos que frequentavam o ensino e às cidades que acolhiam os colégios – num século em que a procura da escolaridade crescia exponencialmente.

A Ratio Studiorum não pode, portanto, ser vista apenas como a responsável por um certo imobilismo criativo literário – acusação que resulta de nela ser sustentada uma certa reserva metódica em relação à inovação. Ela definiu o projecto pedagógico daqueles que foram efectivamente os educadores da Europa ao longo de várias gerações, durante mais de dois séculos. Ela foi também a responsável por uma subida em flecha da actividade editorial, ligada à própria actividade pedagógica (em que abundam efectivamente os textos clássicos pagãos) e por uma alteração substancial da valorização dos saberes.”

A importância do texto da Ratio de 1586 /B para o estudo da actividade pedagógica e intelectual dos Jesuítas na Europa moderna não é menor que a do texto de 1599. Além de conter a semente do que veio a ser todo o conjunto de Regras para os diversos ofícios do Colégio (estabelecidas na Ratio de 1599), expõe ainda uma série de princípios educativos que o texto oficial não conservou, nomeadamente uma longa e reflectida apologia do estudo das Humanidades e da Retórica.

Podemos considerar ter sido essa uma das principais características da educação da Companhia de Jesus: a inclusão das Humanidades como objecto de estudo tão relevante como a Filosofia e a Teologia, por um lado, e a convergência de todo o sistema escolar para o estudo da Retórica e da eloquência, agora tornada obrigatória para todos quantos quisessem progredir nos estudos.

O texto começa por enumerar as razões pelas quais se deve favorecer os estudos humanísticos, numa época em que eles são ainda subestimados pelo sentir da própria comunidade escolar. Porque Inácio de Loyola assim o quisera, de modo particular para os membros da Ordem (e por isso as Constituições da Companhia determinavam que houvesse colégios exclusivamente dedicados ao ensino e aprendizagem das línguas), e também por razões de justiça histórica, pois muitos eram os colégios cujas rendas se fundamentavam precisamente no ensino da Gramática e das Letras.

No entanto, a principal razão para o cultivo das Letras e Humanidades era de natureza ideológica. O bom uso da língua latina era indispensável para o avanço nos outros saberes, para a composição de livros e tratados, para o entendimento mais autêntico dos Santos Padres (uma das grandes fontes do cristianismo) lendo-os no original, e também para o entendimento entre as nações, já que a actividade escolar jesuítica não conhecia fronteiras. As Humanidades eram, pois, para os autores da Ratio, como as raízes das quais dependia todo o florescimento de ramagens, flores e frutos, constituídos por todos os saberes. Ou, noutra imagem, as Humanidades eram a planta que o agricultor devia semear e tratar com todo o esmero, ao passo que a Filosofia e a Teologia eram as plantas nascediças, que cresceriam sem a intervenção do agricultor.

Por isso, num primeiro momento a Ratio expõe meios muito concretos pelos quais se deve favorecer, nos colégios, o estudo das Humanidades – num trecho que revela muitas práticas habituais da gestão do quotidiano escolar do século XVI.

1. Depois, insiste na necessidade de proteger e favorecer os próprios professores de Humanidades.
2. Baseando-se no princípio de que “a honra eleva as artes”, o texto enuncia todo um conjunto de medidas a adoptar, para que os professores de Humanidades possam adquirir o prestígio que lhes é devido. O texto chega mesmo a afirmar a conveniência de, entre os candidatos à Companhia, dar preferência àqueles que mais se distinguirem nas disciplinas de Humanidades.

Finalmente, para que a valorização das Humanidades se estendesse também à Filosofia e à Teologia e assim se elevasse o nível daqueles estudos, a Ratio prescrevia que os professores de Filosofia e de Teologia fossem escolhidos de entre os mais hábeis nos estudos humanísticos, a fim de erradicar do seu ensino a barbárie (barbaries), e de convencer a todos que é indecoroso exprimir-se de modo inculto, incorrecto e impreciso, e que é belo exprimir-se em linguagem elegante (ut turpe sibi putent barbare et inquinate loqui; pulchrum diserte et latine).

Esse propósito tinha no entanto que lutar contra um preconceito geral que considerava afectada e artificial a ‘pureza’ da língua, principalmente se associada ao saber escolástico da Dialéctica e da Filosofia – como se associar a eloquência à filosofia fosse tão absurdo como juntar o carvoeiro ao homem da lavandaria, diz o texto. Os autores da Ratio tinham noção de quanto era forçoso combater essa mentalidade e bani-la da prática quotidiana dos colégios, pois aparentemente até os mais cultos contaminavam a sua linguagem para que os outros não troçassem deles como maçadores inoportunos. A consciência desta necessidade de lutar contra um preconceito constitui para nós uma prova evidente de que os professores jesuítas foram efectivamente agentes de mudança na valorização dos saberes.

A intenção dos autores da Ratio era, portanto, erradicar a barbaries, isto é, o latim menos culto, incorrecto, ou simplesmente falado por aqueles que não conheciam os textos da Antiguidade clássica. E essa obrigação impunha-se não apenas aos mestres e discípulos de Humanidades mas também, com igual exigência, aos mestres e discípulos de Filosofia e de Teologia, na afirmação explícita da aliança entre eloquência e filosofia.

Deste modo a Ratio oferecia aos outros saberes a porta para o aggiornamento necessário e declarava abertamente a sua filiação no programa do Humanismo.”

(Continua aqui)

Margarida Miranda
Texto publicado no Boletim de Estudos Clássicos, n.º 45.

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