quinta-feira, 13 de outubro de 2011

Grandes livros de Pedagogia: Ratio Studiorum - 2

Continuação do texto Grandes livros de Pedagogia: Ratio Studiorum – 1

“A importância do texto da Ratio de 1586 /B para o estudo da actividade pedagógica e intelectual dos Jesuítas na Europa moderna não é menor que a do texto de 1599. Além de conter a semente do que veio a ser todo o conjunto de Regras para os diversos ofícios do Colégio (estabelecidas na Ratio de 1599), expõe ainda uma série de princípios educativos que o texto oficial não conservou, nomeadamente uma longa e reflectida apologia do estudo das Humanidades e da Retórica.

Podemos considerar ter sido essa uma das principais características da educação da Companhia de Jesus: a inclusão das Humanidades como objecto de estudo tão relevante como a Filosofia e a Teologia, por um lado, e a convergência de todo o sistema escolar para o estudo da Retórica e da eloquência, agora tornada obrigatória para todos quantos quisessem progredir nos estudos.

O texto começa por enumerar as razões pelas quais se deve favorecer os estudos humanísticos, numa época em que eles são ainda subestimados pelo sentir da própria comunidade escolar. Porque Inácio de Loyola assim o quisera, de modo particular para os membros da Ordem (e por isso as Constituições da Companhia determinavam que houvesse colégios exclusivamente dedicados ao ensino e aprendizagem das línguas), e também por razões de justiça histórica, pois muitos eram os colégios cujas rendas se fundamentavam precisamente no ensino da Gramática e das Letras.

No entanto, a principal razão para o cultivo das Letras e Humanidades era de natureza ideológica. O bom uso da língua latina era indispensável para o avanço nos outros saberes, para a composição de livros e tratados, para o entendimento mais autêntico dos Santos Padres (uma das grandes fontes do cristianismo) lendo-os no original, e também para o entendimento entre as nações, já que a actividade escolar jesuítica não conhecia fronteiras. As Humanidades eram, pois, para os autores da Ratio, como as raízes das quais dependia todo o florescimento de ramagens, flores e frutos, constituídos por todos os saberes. Ou, noutra imagem, as Humanidades eram a planta que o agricultor devia semear e tratar com todo o esmero, ao passo que a Filosofia e a Teologia eram as plantas nascediças, que cresceriam sem a intervenção do agricultor.

Por isso, num primeiro momento a Ratio expõe meios muito concretos pelos quais se deve favorecer, nos colégios, o estudo das Humanidades – num trecho que revela muitas práticas habituais da gestão do quotidiano escolar do século XVI.

1. Depois, insiste na necessidade de proteger e favorecer os próprios professores de Humanidades.
2. Baseando-se no princípio de que “a honra eleva as artes”, o texto enuncia todo um conjunto de medidas a adoptar, para que os professores de Humanidades possam adquirir o prestígio que lhes é devido. O texto chega mesmo a afirmar a conveniência de, entre os candidatos à Companhia, dar preferência àqueles que mais se distinguirem nas disciplinas de Humanidades.
Finalmente, para que a valorização das Humanidades se estendesse também à Filosofia e à Teologia e assim se elevasse o nível daqueles estudos, a Ratio prescrevia que os professores de Filosofia e de Teologia fossem escolhidos de entre os mais hábeis nos estudos humanísticos, a fim de erradicar do seu ensino a barbárie (barbaries), e de convencer a todos que é indecoroso exprimir-se de modo inculto, incorrecto e impreciso, e que é belo exprimir-se em linguagem elegante (ut turpe sibi putent barbare et inquinate loqui; pulchrum diserte et latine).

Esse propósito tinha no entanto que lutar contra um preconceito geral que considerava afectada e artificial a ‘pureza’ da língua, principalmente se associada ao saber escolástico da Dialéctica e da Filosofia – como se associar a eloquência à filosofia fosse tão absurdo como juntar o carvoeiro ao homem da lavandaria, diz o texto. Os autores da Ratio tinham noção de quanto era forçoso combater essa mentalidade e bani-la da prática quotidiana dos colégios, pois aparentemente até os mais cultos contaminavam a sua linguagem para que os outros não troçassem deles como maçadores inoportunos. A consciência desta necessidade de lutar contra um preconceito constitui para nós uma prova evidente de que os professores jesuítas foram efectivamente agentes de mudança na valorização dos saberes.

A intenção dos autores da Ratio era, portanto, erradicar a barbaries, isto é, o latim menos culto, incorrecto, ou simplesmente falado por aqueles que não conheciam os textos da Antiguidade clássica. E essa obrigação impunha-se não apenas aos mestres e discípulos de Humanidades mas também, com igual exigência, aos mestres e discípulos de Filosofia e de Teologia, na afirmação explícita da aliança entre eloquência e filosofia.

Deste modo a Ratio oferecia aos outros saberes a porta para o aggiornamento necessário e declarava abertamente a sua filiação no programa do Humanismo.”

Margarida Miranda
Texto publicado no Boletim de Estudos Clássicos, n.º 45.

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